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Da espiga ao combustível: o salto do etanol de milho no Brasil

A produção do biocombustível deve triplicar nos próximos anos e agregar valor ao grão e ao agronegócio nacional,

Lavoura de milho: a Conab estima que a colheita chegue a 117,6 milhões de toneladas na safra 2023/24 (Mailson Pignata/Getty Images)

Lavoura de milho: a Conab estima que a colheita chegue a 117,6 milhões de toneladas na safra 2023/24 (Mailson Pignata/Getty Images)

Mariana Grilli
Mariana Grilli

Repórter de Agro

Publicado em 25 de janeiro de 2024 às 06h00.

Muito se fala da soja, cuja trajetória produtiva espetacular das últimas décadas posicionou o Brasil no mapa das exportações mundiais. Mas outro grão teve um crescimento extraordinário. De 1983 a 2023, a produção de milho cresceu quase seis vezes e se consolidou como coadjuvante de luxo do agronegócio nacional. E a cultura vive um novo momento, com a explosão do etanol de milho, cuja oferta deve triplicar até 2030. Trata-se de um fenômeno paralelo ao crescimento do biodiesel e dos painéis solares, que vem na esteira da agenda de energia limpa e biocombustíveis. Uma junção de fatores, do campo ao mercado externo, vem contribuindo para que o biocombustível tenha ficado mais atrativo nas últimas décadas, dando sinais de um futuro promissor — e lucrativo.

Em 2012, a Usimat foi a primeira empresa a processar etanol de milho por aqui. Daí, então, a escalada começou. Dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) mostram que o Brasil possui atualmente 24 usinas dedicadas ao etanol do grão — 22 delas no Centro-Oeste. Há quem dedique as usinas de etanol de cana também para a produção de etanol de milho — operação chamada flex. Em outros casos, as usinas nascem 100% voltadas para o grão — operação full. Há, ainda, a possibilidade de uma usina ter ambas as operações, simultânea e paralelamente — flex-full.

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Os dados da União Nacional de Etanol de Milho (Unem) revelam que a produção está estimada em mais de 6 milhões de metros cúbicos para a safra 2023/24. Na temporada 2013/14, esse dado foi de 37.000 metros cúbicos. Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), destaca que a quantidade atual — de 4,1 milhões de metros cúbicos — representa 20% do etanol total produzido no país. O restante vem da cana-de-açúcar. “Entendemos que até 2030 o etanol de milho dobrará essa participação. Vamos falar de 12 milhões de metros cúbicos”, ele projeta.

A efervescência das novas plantas de etanol de milho tem vários motivos. Segundo Vinicius Damazio, especialista de mercado de etanol na Argus, “o etanol de cana está menos competitivo do que o de milho”, e uma das razões é que a cana-de-açúcar está em um momento de teto produtivo. “A cana está se movimentando para buscar novos mercados, além de o etanol de segunda geração, para o mercado externo, ser superpremiado. Nisso, vemos o etanol de cana deslocado para o exterior, enquanto o milho aumenta a competitividade no mercado interno”, diz.

Além disso, pontua, o milho pode ser armazenado e processado posteriormente. Já a cana, uma vez colhida, não pode ficar armazenada. Nesse calendário, as usinas precisam moer a cana entre abril e novembro. De dezembro a março, sem a cana, que já foi moída, o volume de etanol cai e aumenta o risco de elevação no preço. O milho preenche justamente essa lacuna da entressafra. Para fins de regulação de preço e flexibilidade entre oferta e demanda, o cereal se mostra mais vantajoso. “Se tem etanol de milho correndo o ano todo, você acaba quebrando essas noções que estão enraizadas na trading brasileira. A competição no mercado interno de etanol está cada vez mais acirrada”, afirma o especialista da Argus.

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Construções em campo

Os números oficiais da ANP e do Mapa não dão a real dimensão da velocidade que o segmento de etanol do cereal ganha no campo. Mas as instituições não levam em consideração outros cultivos, além de cana e milho, para produção do etanol. Uma pesquisa realizada pela Argus constatou 15 novas plantas de etanol que usaram outras matérias-primas que não a cana-de-açúcar ao longo de 2023. Vinicius Damazio diz que o retorno sobre investimento nos projetos de milho está mais rápido do que o da cana, exatamente por causa dessa disponibilidade ao longo do ano, em diferentes safras.

Ainda não constam na lista dos órgãos federais investimentos como o do Grupo Inpasa-, produtor de etanol de milho e alimentação animal com atuação no Centro-Oeste e no Paraguai. A companhia anunciou no ano passado o aporte de 2,5 bilhões de reais na construção de uma planta de produção do etanol no Maranhão. Também a 3tentos, empresa com capital aberto focada em grãos e insumos agrícolas, anunciou neste mês que investirá 1 bilhão de reais até 2030 para entrar na atividade do etanol de milho, com uma usina em Mato Grosso.

Nas contas do BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME), o custo de construção de 3,2 reais por litro implícito no investimento da 3Tentos em Porto Alegre do Norte, em Mato Grosso, é mais baixo do que o que a São Martinho gastou recentemente em sua unidade de processamento de milho, apesar de compartilhar infraestrutura com a produção de uma usina de cana-de-açúcar. 

Para o banco, o beneficiamento do milho originado em Mato Grosso, onde mais da metade das áreas cultivadas com soja já cultiva milho segunda safra, deverá fortalecer, ainda, o braço varejista da -3tentos. No estado, há 12 usinas de etanol de milho, concentradas no centro e no oeste. “A localização da nova usina no extremo leste do estado deverá amenizar a pressão competitiva com as 12 usinas de etanol de milho já existentes”, afirmaram os analistas do BTG, que no ano passado publicaram um relatório mostrando que o milho destronaria a cana na produção de etanol.

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De olho na proporção que o etanol de cereais pode tomar, a Be8, líder em vendas de biodiesel no Brasil e integrante da holding ECB, quer se dedicar a essa produção no Rio Grande do Sul. O estado importa todo o etanol que utiliza, principalmente de São Paulo. O CEO Erasmo Carlos Battistella quer mudar essa realidade. “A unidade que estamos desenhando é uma unidade flex para cereais. Nós acreditamos que, pelas características regionais, a tendência é usar mais trigo e triticale do que milho. Mesmo assim, o estado é um grande produtor e consumidor de milho, e a unidade vai processá-lo também”, diz. O aporte anunciado é de 556 milhões de reais no município de Passo Fundo.

Segunda safra para transição energética

Segundo a Agência Internacional de Energia, o uso da bioenergia terá de triplicar no planeta até 2030. O Brasil tem a capacidade de estar à frente da pauta por causa da extensão de terras agricultáveis, e esse é o ponto de convergência entre agricultura e transição energética.

O plano do governo para recuperar pastagens estima transformar cerca de 40 milhões de hectares de áreas de baixa produtividade em talhões de alto rendimento — e o milho pode ser um caminho. Renata Miranda, secretária de Inovação e Desenvolvimento Sustentável do Mapa, diz que a pasta “tem visto esse aumento da importância do milho dentro da matriz de etanol no Brasil”, o que deriva de um amplo portfólio maior de cultivares de milho, principalmente para a segunda safra.

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Até o início dos anos 2000, o Brasil não tinha tradição como exportador de milho. Em 2008, uma mudança importante aconteceu: o uso de cultivares transgênicas de milho foi liberado para comercialização no Brasil. Isso significou, na época, a permissão de adquirir sementes geneticamente modificadas, mais resistentes a pragas e doenças. Naquele ano, a produção era de 58 milhões de toneladas. Na safra encerrada em 2023, o país colheu 131 milhões de toneladas — aumento de 124%.

A mudança de paradigma do milho no campo, 15 anos atrás, agora permite ao setor vislumbrar outros horizontes, fazendo inveja ao norte global. Mesmo os Estados Unidos sendo o maior produtor de etanol de milho do mundo, cujo consumo é o dobro do tamanho do Brasil, o mercado nacional tem vantagens competitivas — mas é preciso mostrá-las.

O processo de fabricação estadunidense conta com o uso do vapor de gás natural, ou seja, emitindo ainda gases poluentes. No Brasil, o Ministério de Minas e Energia esclarece que as usinas utilizam fontes renováveis de energia, como a biomassa do eucalipto, o que reduz a pegada de carbono e faz parte do previsto no Plano Combustível do Futuro. “A consolidação do milho como matéria-prima vem ao encontro dos desafios enfrentados pelo setor de transportes, em seus diferentes segmentos: rodoviário, aéreo e marítimo”, diz o MME em nota. Daí surge, por exemplo, o potencial para atender à demanda de combustível sustentável de aviação, chamado de SAF.

Evandro Gussi, presidente da Unica: “O etanol é bioenergia tropical produzida com sustentabilidade” (Unica/Divulgação)

A sustentabilidade pode ser o trunfo brasileiro, inclusive pela ótica da maior participação dos setores envolvidos no Renovabio, em busca dos créditos de descarbonização. Ainda assim, as fontes ouvidas pela EXAME reforçaram a necessidade de maior rastreabilidade da espiga ao combustível, inclusive para atender à demanda da Comissão Europeia por zero desmatamento.

Outra crítica de países desenvolvidos ganha corpo na discussão de comida versus combustível (food X fuel, em inglês). Na Europa, onde há limitação de área agricultável, a competição para que o milho seja dedicado a uma ou outra finalidade preocupa as distintas cadeias produtivas. No Brasil, não há esse risco — e deve ter milho para todo mundo.

Mesmo o atual momento, com previsão de quebra de safra para o milho, não deve afetar o crescimento do etanol.  No levantamento de janeiro da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a colheita para 2023/24 está estimada em 117,6 milhões de toneladas, redução de 10,9% em relação à temporada anterior. Para Evandro Gussi, da Unica, os investimentos são feitos pensando no longo prazo, avaliando a série histórica de alta produção. “O etanol de milho não pressiona o desmatamento e não tem concorrência com os alimentos. Por isso dizemos que é bioenergia tropical produzida com sustentabilidade”, afirma.

Da espiga ao combustível, é mais uma etapa de valor econômico e sustentável ao agronegócio brasileiro.

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