(Victor Vilela/Divulgação)
Thiago Lavado
Publicado em 5 de novembro de 2020 às 05h32.
Última atualização em 11 de fevereiro de 2021 às 15h06.
Quando Sundar Pichai, presidente do Google, e Tim Cook, presidente da Apple, foram fotografados em uma mesa à janela de um restaurante vietnamita em Palo Alto em 2017, a internet foi tomada por um furor. As duas empresas, que são competidoras em vários campos — fabricam software de mapas, smartphones, laptops, sistemas operacionais móveis, assistentes de voz, entre outras tecnologias —, reforçavam ali uma aliança comercial de suma importância para ambos os negócios. Um acordo que prevê que o Google seja o buscador-padrão nos iPhones. A parceria é antiga e importante para ambas as empresas: estima-se que o Google pague de 8 bilhões a 12 bilhões de dólares ao ano para a Apple apenas para que as buscas feitas no iPhone e no navegador Safari sejam processadas no serviço.
O acordo representa de 14% a 21% do lucro anual da Apple e ganhou ainda mais importância nos últimos anos. Uma reportagem da Bloomberg calcula que o valor pago pelo Google era de apenas 1 bilhão de dólares em 2014. Agora, além de um jantar regado a vinho e pratos vietnamitas, há mais sobre a mesa. O acordo entre as empresas é um dos principais alvos de uma ação judicial movida pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos contra o Google por monopólio no mercado de buscas. O processo é a maior ação antitruste contra uma companhia de tecnologia em uma geração, desde que a Microsoft esteve sob os holofotes nos anos 1990 por uma acusação parecida: incluir o navegador Internet Explorer no Windows e usar isso para manter seu poderio. De acordo com a ação apresentada no final de outubro, o acordo entre o Google e a Apple é tão importante e tão lucrativo para o Google que se estima que quase 50% do tráfego de buscas da empresa tenha origem nos iPhones.
A ribalta do palco regulatório não é nova para o Google. A empresa já tem um histórico de enroscos na Europa, com casos de antitruste que renderam três multas bilionárias. O mais conhecido deles resultou em uma pena de 5 bilhões de dólares em 2018 por causa de acordos com fabricantes de smartphones Android para que os aplicativos do Google (buscador, YouTube, o navegador Chrome) viessem pré-instalados. Mas o novo processo, até por ser movido pelo governo dos Estados Unidos, pode trazer complicações.
De acordo com Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) e professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, até mesmo a escolha da busca como ponto central da ação é particular. “Quando o Departamento de Justiça se debruça sobre a busca, ele olha para um mercado em que a predominância do Google é indiscutível. O argumento é que, ao fechar acordos de exclusividade com fabricantes de carros, celulares, alto-falantes inteligentes, o Google protege sua predominância no mercado de buscas e impede a entrada de novos concorrentes”, diz Affonso. Ele espera que a ação se arraste por anos e termine em um eventual acordo e pagamento de multa, que pode ser pesada pelo tamanho da empresa. A consequência mais importante, no entanto, é o efeito para a indústria de tecnologia. “Deve haver um menor impulso das empresas de fechar acordos de exclusividade assim. Não é uma mudança radical, mas é um efeito importante”, diz o professor.
O Google se defende das acusações afirmando que a concorrência está a um clique de distância. A empresa diz que é possível trocar o buscador e o navegador-padrão no Android e no iOS (sistema operacional da Apple) e que os usuários usam os serviços porque gostam e porque são eficientes e gratuitos. Para o gigante da tecnologia, o processo do Departamento de Justiça é “profundamente falho” e pode criar custos adicionais aos usuários e piorar os serviços. “A ação não ajudaria os consumidores em nada. Ao contrário, promoveria artificialmente alternativas de pesquisa de qualidade inferior, aumentaria os preços dos smartphones e tornaria mais difícil o acesso das pessoas aos serviços de pesquisa que desejam usar”, diz o Google em nota. A EXAME apurou que o Google acredita que a discussão levará anos em trâmites judiciais. O principal problema é colocar a questão do monopólio no debate público de maneira prolongada, com o risco de acentuar as animosidades contra a empresa. Para o gigante, as leis antitruste são capazes de lidar com problemas de concentração de mercado, mas, no caso específico das buscas, elas são falhas. O Google diz fazer o que empresas de bens de consumo fazem há anos: pagar para que seu produto fique visível aos olhos do consumidor, e não no fundo da prateleira.
ALÉM DO GOOGLE
O processo atrai visibilidade e movimenta a opinião pública contra o Google, mas o debate também recai sobre os demais gigantes da tecnologia. A ação é o epítome de uma discussão cada vez mais quente e que extrapola os limites econômicos e tecnológicos e toma até contornos políticos. Por um lado, as empresas de tecnologia têm trazido ganhos para acionistas, comprado concorrentes menores e agido em parceria umas com as outras. De acordo com a investigação, funcionários do Google e da Apple chegaram até a trocar e-mails afirmando que “na nossa visão é como se fôssemos uma só companhia”. Por outro lado, há claro interesse dos reguladores em um processo que tem tudo para ser histórico, atraindo os olhares de políticos. Republicanos reivindicam a liberdade de expressão e acusam as empresas de suprimir conteúdo conservador na internet. Já os democratas se preocupam com o papel dos gigantes da tecnologia na disseminação de desinformação.
Um relatório publicado no início de outubro, como parte de uma investigação conduzida pelo Congresso americano, já trazia a discussão. De acordo com o texto, essas companhias, que um dia foram novatas desafiando o statu quo, “se tornaram o tipo de monopólio que vimos na era dos barões do petróleo e magnatas das estradas de ferro”. O texto não inclui só o Google e a Apple, mas também a varejista online Amazon e a rede social Facebook.
O processo contra o Google pode respingar em cada uma das empresas de maneira diferente. O Facebook é dono das maiores redes sociais e serviços de mensagens do mundo — porque detém o Instagram e o WhatsApp —, com uma dominância de mais de 70% do mercado de redes sociais. A Apple tem a exclusividade da loja de aplicativos em seus aparelhos, cobrando uma taxa draconiana de 30% na venda de aplicativos. Essa polêmica rendeu à empresa um processo da fabricante de jogos Epic Games, que questiona o poderio da Apple em cobrar a taxa dos desenvolvedores. Já a Amazon, que detém 49% das vendas pela internet nos Estados Unidos, é acusada de manobrar o marketplace, escolhendo quais vendedores têm visibilidade na loja online — e consequentemente mais vendas. A possibilidade de uma regulação está no radar: de 2015 para cá, as quatro investiram mais de 260 milhões de dólares em lobby para acompanhar as discussões no Congresso. As empresas estão entre as que mais desembolsam recursos nos Estados Unidos, segundo a organização sem fins lucrativos Center for Responsive Politics, baseada em Washington.
As aquisições dos gigantes também são usadas para questionar seu poderio econômico. Dados da empresa de análise de mercado PitchBook apontam que Facebook, Google, Amazon e Apple adquiriram 385 outras empresas americanas desde 2005. A Alphabet, holding que controla o Google, lidera o ranking com 185 negócios. Essas aquisições movimentaram 86 bilhões de dólares. Algumas, como a compra do WhatsApp pelo Facebook por 22 bilhões de dólares, estão no panteão dos maiores negócios do mercado de tecnologia. A compra da empresa de publicidade digital DoubleClick pelo Google em 2007, por 3,1 bilhões de dólares, ajudou a consolidar o buscador no mercado de anúncios online. Questiona-se se as aquisições não são uma prática de controle econômico, que reforça a posição das empresas e tira do mercado startups que poderiam trazer inovações.
A Apple se defende afirmando que mantém uma loja única para fins de segurança. Ao controlar o que entra na plataforma, a empresa mantém os iPhones com um índice baixo de fraudes e softwares malignos. O Facebook afirma que tem concorrentes fortes em todos os ramos — o TikTok nas redes sociais; o Google e a Amazon no mercado de publicidade digital; o YouTube nos vídeos; o Telegram e o Signal nos aplicativos de mensagens. Segundo a EXAME apurou, a visão interna é de que existe uma dinâmica na internet que faz surgir competidores a todo instante. Empresas que um dia foram grandes hoje perderam espaço, como é o caso do Yahoo. Para a rede social, esse é um sinal de que há ampla concorrência. “Com o sucesso, vêm o escrutínio e o cerco de autoridades nos Estados Unidos e em outros países. Mas não faz muito sentido dividir uma empresa como o Facebook”, disse o britânico Nick Clegg, vice-presidente de relações públicas e comunicação do Facebook, num encontro recente com jornalistas, com a participação da EXAME. Clegg, que já foi deputado e vice-primeiro-ministro do Reino Unido, defende que os governos precisam definir de quem é a responsabilidade sobre o discurso de ódio na internet e também o que pode ser publicado online numa campanha eleitoral e como pode ser feita a portabilidade dos dados dos usuários. “Nenhum desses temas vai ser resolvido nos tribunais, mas com uma regulação apropriada”, afirma.
O Facebook enxerga uma separação forçada dos negócios como algo prejudicial aos consumidores. A medida, segundo o raciocínio, não resolveria os principais problemas de interesse público, como privacidade, mau uso de dados, controle de publicações nocivas e manipulação eleitoral. Em áudios vazados de uma reunião no ano passado, o presidente e cofundador Mark Zuckerberg disse que, se mandatários quisessem dividir a empresa em várias, o que ele faria é “entrar no ringue e lutar”. Ele se referia à então pré-candidata à Presidência americana Elizabeth Warren, que defende a divisão dos gigantes da tecnologia.
A ideia de regular empresas tem extrapolado cada vez mais o debate sobre o poderio econômico. De acordo com Priscila Brolio Gonçalves, doutora pela Universidade de São Paulo e advogada com mais de 20 anos de experiência em direito da concorrência, uma das discussões é se o foco deve ser somente a relação entre empresas e consumidores ou se é necessário considerar o efeito sobre os pequenos negócios e também sobre a própria democracia. “O relatório do Congresso americano foi redigido com essa visão de que o antitruste tem de atender a mais interesses”, diz.
Para Affonso, do ITS-Rio, o foco das ações precisa ser não o tamanho das empresas ou como elas alcançaram a posição dominante, mas como elas mantêm seu status. “Ter predominância num mercado não é necessariamente ilícito. É importante entender quais as condutas que a empresa adota para manter a posição e impedir a entrada de novos competidores”, diz. Nesse sentido, a investigação antitruste contra o Google deve olhar para os contratos com parceiros e determinar se isso impediu os concorrentes de competir. Adversários no mercado de buscas, como a americana DuckDuckGo, a alemã Ecosia e as francesas Lilo e Qwant, assinaram uma carta aberta à vice-presidente executiva da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, para que ela dê atenção à dominância da empresa no mercado de buscas.
E A INOVAÇÃO?
Uma das preocupações dos reguladores é com a redução da inovação. Em um artigo publicado na revista MIT Technology Review, Alec Stapp, diretor de política e tecnologia do think tank Instituto de Política Progressiva — organização que recebe doações de Amazon, Facebook e Google —, argumenta que a inovação não está morta por causa do tamanho das empresas, tampouco houve prejuízo para o consumidor. Ele cita o caso do Zoom, aplicativo de videoconferências que cresceu mesmo enfrentando concorrência acirrada de empresas como Google e Microsoft. O Zoom tinha 10 milhões de participantes em reuniões diárias em dezembro e passou para 300 milhões em abril de 2020, impulsionado pela pandemia. Stapp também critica o relatório do Congresso americano que defende a divisão dos gigantes da tecnologia. Para ele, isso dissolveria as plataformas e tornaria inviáveis os negócios.
Para Gene Munster, sócio executivo na firma de capital de risco Loup Ventures, não existe uma barreira à inovação com a dominância dessas empresas. “As plataformas ajudam a acelerar a inovação, permitindo que pequenas empresas fiquem maiores”, diz. “O desafio da inovação em setores como transporte e energia é difícil de ser solucionado por startups, pois requer muito dinheiro.” Munster acredita que os gigantes vão sobreviver ao risco regulatório. A razão para isso é que os consumidores não apenas querem os serviços das empresas mas precisam deles e, por isso, as autoridades não podem puni-las de maneira muito dura. Os gigantes da tecnologia não vão deixar de existir de uma hora para a outra. Mas será um caminho com muitos obstáculos.