Revista Exame

Michael Klein assinou, mas não gostou

Menos de cinco meses após acertar a associação entre casas bahia e pão de açúcar, Michael Klein decidiu rever o negócio - em entrevista exclusiva a EXAME, ele explica por quê

Michael Klein, da Casas Bahia: para ele, o contrato não reflete o que estava combinado com Abilio Diniz (Germano Lüders/EXAME.com/Exame)

Michael Klein, da Casas Bahia: para ele, o contrato não reflete o que estava combinado com Abilio Diniz (Germano Lüders/EXAME.com/Exame)

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Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2013 às 10h27.

No dia 4 de dezembro do ano passado, quando anunciou a união entre os dois maiores varejistas de eletrodomésticos do país, a Casas Bahia e o Ponto Frio, o empresário paulista Abilio Diniz parecia entusiasmado, e com razão. Em menos de seis meses, e com apenas dois movimentos, ele havia se tornado líder num setor em que seu Grupo Pão de Açúcar era irrelevante. Primeiro, comprou o contwrole do Ponto Frio em junho. Depois, assinou o acordo com a Casas Bahia. Pelo que foi divulgado na época, a família Klein assumiria 49% da nova empresa. Abilio e o Pão de Açúcar ficariam com 51%. “Isso é um jogo de ganha-ganha-ganha, não só para as empresas mas também para seus controladores”, disse Abilio durante a coletiva. A seu lado na mesa, no entanto, Michael Klein já tinha motivos para pensar de forma diferente. Filho primogênito de Samuel Klein, o imigrante polonês que fundou a Casas Bahia 57 anos atrás, Michael havia sido o principal responsável por negociar a associação com os Diniz. Naquele dia, as ações do Pão de Açúcar na bolsa tiveram valorização de quase 10%. Os investidores, normalmente desconfiados de fusões e aquisições, davam um sinal inequívoco: se o negócio havia sido muito bom para alguém, esse alguém não era Michael Klein.

A transação anunciada em dezembro, que tinha como objetivo juntar os Klein e os Diniz num só time, acabou colocando as duas famílias mais poderosas do varejo brasileiro em campos opostos. Em sigilo, os dois lados passaram a defender interesses distintos logo após o anúncio do negócio. Insatisfeitos com o acordo que eles mesmos assinaram, os Klein tentavam mudar a estrutura da parceria; Abilio lutava para mantê-la o mais perto possível do acordo original. As negociações cozinharam em banho-maria até o dia 12 de abril, quando EXAME.com revelou, com exclusividade, que os Klein queriam rever o contrato original. Nos bastidores, o dia 12 foi marcado também por uma radical mudança de postura dos Klein. Numa reunião na sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, no ABC paulista, Samuel disse a Abilio que gostaria de desfazer o negócio. Em paralelo, seus advogados enviaram ao Pão de Açúcar uma notificação, documento legal que inicia uma contagem de 30 dias necessária para que uma das partes possa recorrer aos tribunais de arbitragem para a resolução de conflitos. O recado era cristalino — caso Abilio não cedesse, o maior negócio da história do varejo brasileiro poderia se transformar numa batalha jurídica. No dia do fechamento desta edição, as negociações entre os Klein e Abilio Diniz avançavam. Havia, nas palavras de um executivo envolvido, mais de 50% de chance de terminarem de forma amigável. Mas nada garante que a disputa em torno do contrato acabará bem. Os envolvidos já se preparam para enfrentar o outro cenário possível, a ida do caso aos tribunais. Segundo EXAME apurou, os Klein não descartam adotar uma postura ainda mais belicosa. Estudam levar o Pão de Açúcar à Justiça comum, sob alegação de estelionato (o famoso artigo 171 do Código Penal) — as avaliações são preliminares, mas criminalistas já foram consultados. Ou seja, o que já está ruim pode ficar ainda pior.


Embora tenha se tornado pública, a disputa entre Casas Bahia e Pão de Açúcar ainda é repleta de mistérios. Os principais se referem à surpreendente conduta dos Klein. Por que eles assinaram  um acordo que hoje consideram tão prejudicial? O que justifica o desejo de desfazer o negócio? Para tentar esclarecer essas dúvidas, EXAME ouviu Michael Klein. Foi a primeira e única entrevista concedida por ele sobre o imbróglio com o Pão de Açúcar. Cercado por assessores e advogados, Michael mediu as palavras, mas suas respostas ajudam a entender os motivos da briga com Abilio Diniz. Embora não fale disso abertamente, um de seus principais objetivos parece ser desfazer a percepção de que vendeu sua empresa para o Pão de Açúcar. “Eu não passei a Casas Bahia para a frente”, afirma, ciente de que seus sócios têm um ponto de vista diferente. Segundo ele, os problemas começaram já no primeiro dia, no fato relevante enviado pelo Pão de Açúcar à Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O documento afirma que a Casas Bahia transferiu à nova empresa uma dívida de 950 milhões de reais — segundo Michael, essa dívida nunca existiu. “No fato relevante, houve o primeiro erro deles”, diz. “Eu não entrei com dívida nenhuma. Não sei de onde eles tiraram aquilo.” A menção à dívida criou a impressão de que a empresa estava à beira de um colapso e que a transação teria sido uma espécie de resgate disfarçado. Procurado, o Pão de Açúcar preferiu não se manifestar oficialmente sobre o assunto.

No centro da controvérsia entre a família Klein e Abilio Diniz está um contrato de 29 páginas assinado no início da manhã de 4 de dezembro. Para os assessores dos Klein, o contrato é lesivo à Casas Bahia. Eles elencam uma série de razões para chegar a essa conclusão. Entre elas está o fato de a união do Ponto Frio com a Casas Bahia ter sido feita com critérios financeiros desiguais para os dois lados. A apuração do valor de mercado do Ponto Frio teria usado o preço de suas ações na bolsa como referência. Já o valor da Casas Bahia, uma empresa fechada, foi calculado tendo como base seu valor contábil (em resumo, a soma de seus ativos). A alegação da equipe dos Klein é que o valor de mercado de uma empresa saudável é quase sempre superior a seu valor contábil, e deve ser calculado tendo como base outros indicadores, como a geração de caixa, e não o valor dos ativos. Segundo as contas da equipe da Casas Bahia, a diferença de critérios representou um prejuízo de cerca de 2 bilhões de reais aos Klein. Ainda de acordo com esses executivos, uma série de termos acertados verbalmente com Abilio Diniz, entre eles uma garantia de que os Klein continuariam mandando na nova empresa — mesmo sem a maioria no conselho de administração, que é controlado pelo Pão de Açúcar —, não apareceu na versão final do documento. “O contrato não reflete tudo o que foi negociado pelos controladores dos dois grupos”, diz Michael Klein.

De todos os aspectos pitorescos da briga, nenhum é tão espantoso quanto a conclusão de que a família Klein padeceu de altos graus de ingenuidade na negociação com Abilio Diniz. Eles são, afinal de contas, os controladores do varejista que estraçalhou cada um de seus rivais nas últimas duas décadas e que acabou, assim, tornando-se uma das empresas mais poderosas do país. Por que os Klein assinaram o contrato se ele era tão prejudicial e não traduzia o que havia sido combinado? Aqui, as versões de cada um dos lados divergem. Um aspecto comum a ambas é o fato de que, originalmente, o negócio não seria anunciado no dia 4 de dezembro, mas foi antecipado devido a um pedido de explicações da Bovespa no início daquele mês (os papéis do Ponto Frio disparavam na bolsa, num forte indício de vazamento). Fora isso, tudo é diferente.


Segundo executivos ligados ao Pão de Açúcar, o advogado Syllas Tozzini, contratado pelas duas empresas para redigir o contrato, leu o documento na madrugada do dia 4 de dezembro para os Klein, que decidiram ir adiante com o negócio — que já havia sido amplamente discutido e estava maduro. A versão difundida pelo lado da Casas Bahia é diferente. Abilio, que estava voando para a França para comunicar a transação a seus sócios da rede de varejo Casino, voltou no meio do caminho e pediu aos Klein que assinassem o que tinham em mãos, mesmo que o contrato estivesse longe de ser concluído e fosse sabidamente imperfeito. Para convencê-los a ir em frente, Abilio teria prometido corrigir o contrato depois. Sua posterior relutância em cumprir a promessa teria, então, desencadeado a confusão.

Seja qual for a versão que mais se aproxima da realidade, o fato é que, para os Klein, os tempos de ingenuidade ficaram para trás. Para rediscutir o contrato, eles contrataram um batalhão de advogados e banqueiros de investimento. Mais de 30 assessores externos participam das discussões pelo lado da Casas Bahia, um número que chama ainda mais a atenção se contrastado com a completa ausência de assessores exclusivos na primeira negociação (do lado do Pão de Açúcar estava, e ainda está, o banqueiro Pércio de Souza, fundador da butique de investimento Estáter e um dos mais conceituados negociadores do país). Mais do que discutir se o contrato é bom ou não para os Klein, os assessores da Casas Bahia atacam sua validade. Para eles, o documento assinado em dezembro não passa de um “pré-contrato” vago, insuficiente para criar uma nova empresa (o Pão de Açúcar o considera “válido e perfeitamente eficaz”). Apesar da total diferença de ponto de vista, Abilio Diniz decidiu sentar-se à mesa para negociar. “O Pão de Açúcar tem muito mais a perder com uma briga do que os Klein”, diz um banqueiro de investimento que conhece as duas empresas. No dia em que as negociações foram confirmadas, as ações do Pão de Açúcar caíram 5% na bolsa de São Paulo. Segundo um alto executivo que acompanhou todas as discussões pelo lado dos Diniz, o contrato original era tão bom para o Pão de Açúcar que ainda vale a pena perder um pouco de dinheiro e poder para manter o negócio vivo.


É exatamente o que vem acontecendo. Segundo executivos que participam das conversas, o Pão de Açúcar já cedeu em alguns pontos, entre eles o direito a veto em questões como aquisição de outras empresas e mudanças na política de dividendos da companhia. Há, no entanto, alguns pontos-chave que ainda não foram definidos. Um dos principais é a conta do prejuízo que os Klein teriam levado no primeiro contrato. Segundo EXAME apurou, o Pão de Açúcar já aceitou aumentar sua contribuição em ativos à nova empresa, mas a quantia exata ainda precisa ser estabelecida (quando as negociações ficaram mais duras, em meados de abril, os Klein chegaram a pedir um cheque que compensasse o prejuízo). Outro ponto em aberto é a definição de como será estruturada uma possível venda de parte das ações nas mãos dos Klein. Como o Ponto Frio tem baixíssima liquidez na bolsa, a venda de participações é difícil — por isso, os Klein querem estabelecer uma data-limite para que o Pão de Açúcar faça uma emissão de ações da nova empresa, o que abriria a porta para a venda. “Nós não queremos sair em dois, três ou quatro anos”, diz Michael Klein. “Queremos apenas que essa empresa tenha liquidez no mercado.”

Pergunte aos envolvidos qual é o melhor desfecho possível para essa disputa e a resposta será sempre a mesma: uma saída negociada. O que torna a situação imponderável, segundo executivos que participam das negociações, é que ninguém parece entender o que exatamente os Klein querem desta vez — em outras palavras, em que ponto eles estarão dispostos a apertar a mão de Abilio de novo. Nas palavras de um interlocutor dos Klein: “Aparentemente, o Michael não quer apenas fazer um bom negócio, mas também ser reconhecido como alguém que fez um bom negócio e consertou os erros da transação anterior. Isso faz toda a diferença”. Para Michael, os poucos meses de sociedade deram um colorido todo especial ao velho ditado imortalizado por seu pai — “Quem tem sócio tem patrão”. Do lado da Casas Bahia, é comum ouvir termos como “humilhação” e “rainha da Inglaterra” para descrever os primeiros meses de convivência entre Abilio e os Klein. Michael teria ficado incomodado com o tratamento dispensado a ele por Abilio. Na primeira visita dos dois ao Cade, órgão governamental de defesa da concorrência, Abilio teria apresentado os conselheiros a Michael (que julgava dispensar apresentações). Segundo um interlocutor dos acionistas da Casas Bahia, esse conjunto de fatores pode colaborar para que a decisão mais racional do ponto de vista dos negócios não seja, necessariamente, a mais provável.


Por outro lado, a ida à arbitragem pode ser algo extremamente desgastante. Abilio Diniz passou por uma experiência dessas recentemente. Em 2003, o Pão de Açúcar comprou metade do capital da rede carioca Sendas, fundada pelo empresário Arthur Sendas. Dois anos depois, Sendas recorreu à arbitragem para obrigar o Pão de Açúcar a comprar o resto das ações do grupo por 700 milhões de reais. A disputa durou três anos, até ser vencida por Abilio — no período, no entanto, a operação carioca se tornou uma fonte contínua e segura de tormento para ele. Eleve essa dor de cabeça à enésima potência e é possível imaginar a confusão que uma ida dos Klein à arbitragem poderia causar. Juntos, Casas Bahia e Ponto Frio são o maior anunciante do país, faturam cerca de 18 bilhões de reais, empregam quase 70 000 pessoas e são os maiores clientes de uma miríade de fornecedores. Uma longa disputa nos tribunais, como mostra o caso Sendas, pode trazer efeitos nocivos à gestão e aos resultados. Caso a disputa vá para arbitragem, um dos cenários possíveis é uma acareação entre Abilio e Michael Klein para tentar definir o que aconteceu na já famosa madrugada do dia 4 de dezembro. “Imaginar o que pode acontecer caso a disputa vá para a arbitragem é o melhor incentivo que os dois lados têm para fechar um acordo”, diz um executivo que acompanha as discussões. Desfazer o negócio significaria, ainda, enfrentar sozinho uma concorrência fortalecida. Em 2010, a fusão entre a Ricardo Eletro e a Insinuante criou um grupo com faturamento de 5 bilhões de reais. Em março, o Magazine Luiza, presidido por Luiza Helena Trajano, cresceu 43%. A concorrência, como se vê, não assistirá passivamente a uma possível briga jurídica entre os Klein e os Diniz.

A pergunta que fica é: há clima para manter de pé uma sociedade após a confusão causada pela renegociação do contrato? Nos últimos três anos, Abilio e os Klein protagonizaram algumas idas e vindas. Em 2007, o Pão de Açúcar negociou a compra da Casas Bahia (os executivos da empresa apelidaram o projeto secreto de “Big One”), mas as conversas sofreram uma reviravolta quando os dois lados estavam se preparando para aprofundar as negociações — os Klein desistiram. No ano passado, quando foi divulgada a saída de Saul Klein, irmão de Michael, da sociedade, Abilio sentiu que era hora de ressuscitar o projeto “Big One” (que foi rebatizado de BOB, ou “Big One Bahia”). Tudo caminhou bem, até que, após o anúncio de dezembro, deu no que deu. Dados os interesses envolvidos na busca de um acordo, porém, não convém duvidar da hipótese de Abilio e Michael Klein aparecerem sorrindo juntos mais uma vez. “Ninguém está arrependido”, diz Klein, para quem a união entre as empresas continua fazendo sentido. “A gente começou uma coisa e eu quero que ela acabe da maneira correta.” Só falta, portanto, aquele detalhe — que a família Klein e Abilio Diniz decidam qual é a forma correta de terminar essa história.

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