Revista Exame

Agora os produtos globais nascem nos países emergentes

A lógica tradicional na qual a criação de novos produtos globais se concentrava apenas em países ricos não vale mais. Nessa inversão histórica, os países emergentes se tornam os novos centros de inovação


	Devastação causada pelo furacão Sandy em Nova York: uma casa de 300 dólares poderia servir de moradia temporária
 (Stan Honda/AFP)

Devastação causada pelo furacão Sandy em Nova York: uma casa de 300 dólares poderia servir de moradia temporária (Stan Honda/AFP)

DR

Da Redação

Publicado em 30 de novembro de 2012 às 05h00.

São Paulo - Historicamente, o caminho da inovação  manteve um único vetor. Grandes empresas globais inovavam em um país rico, como os Estados Unidos, e vendiam os produtos resultantes em países pobres, como o Brasil. A inovação reversa está fazendo exatamente o oposto.

Trata-se de inovar em países como o Brasil e vender os produtos nas nações ricas, como os Estados Unidos. É algo que contraria absolutamente todas as expectativas. Por quê? É perfeitamente lógico entender as razões que levam o pobre a querer o produto do rico.

O rico dirige um carro, o pobre quer um carro. O rico tem um celular, o pobre também quer um celular. Não é tão claro assim entender por que o rico desejaria o produto do pobre. Essa é a essência da inovação reversa, que vai criar um crescimento signi­fi­cativo para as empresas nas próximas décadas e transformar cada setor — saúde, energia, transporte, bens de consumo ou tecnologia.

Por que um rico desejaria o produto de um pobre? Tomemos como exemplo o sistema de assistência médica. Nos Estados Unidos, gastamos muito dinheiro com saúde. E, mesmo depois de gastarmos tanto dinheiro, a qualidade não é consistentemente a melhor do mundo.

Além disso, não conseguimos assegurar uma assistência médica universal, e 60 milhões de americanos ficam sem atendimento. Se eu lhe dissesse que há experimentos em assistência médica em países pobres que se baseiam em custo ultrabaixo, qualidade de classe mundial e acesso universal, o rico não ficaria interessado? Em minha pesquisa, identifiquei alguns desses experimentos com saúde em países pobres.

Considere o exemplo da fabricante americana General Electric. A GE produz equipamentos de produção de imagens, como aparelhos para radiografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética e eletrocardiograma. Tome, por exemplo, este último. O aparelho de eletrocardiograma é o primeiro ponto de diagnóstico da doença cardíaca.

Nos Estados Unidos, o equipamento pode custar aproximadamente 10 000 dólares. A GE, claro, vende seu aparelho superior e caro na Índia aos 10% do topo da pirâmide econômica. Afinal, há ricos em países pobres da mesma forma que há pobres em países ricos. Esses representam apenas os 10% do topo da pirâmide econômica — mas e os 90% restantes?

Os 90% restantes da Índia estão principalmente na área rural e ganham apenas 2 dólares por dia ou até menos que isso. Quando se ganha tão pouco, um eletrocardiograma num aparelho caro está fora de seu alcance. Então, a primeira e mais importante razão pela qual 90% dos indianos não podem usar produtos desenvolvidos para o consumidor americano é a capacidade de pagar. Mas essa dificuldade não é a única razão.


Mesmo que alguém na Índia rural possa pagar por um eletrocardiograma, existe um problema adicional. Nos Estados Unidos, há muitos hospitais. Tipicamente, um hospital terá um centro de diagnóstico por imagem com equipamentos grandes e caros. Quando o médico pede ao paciente que vá ao centro de diagnóstico por imagens, o paciente vai. Esse é o modelo de negócios normal nos Estados Unidos.

Pense agora em 90% da Índia. Em 90% da Índia não existem hospitais. Se não há hospitais, não se pode pedir ao paciente para ir ao hospital. O hospital tem de ir até o paciente. Isso significa que alguém terá de levar o aparelho de eletrocardiograma de porta em porta. Isso seria impossível com um aparelho de 10 000 dólares que pesa 135 quilos.

Não dá para pegar algo tão pesado, colocar numa mochila e levar de porta em porta. Mas suponha que alguém conseguisse levar esse volumoso aparelho num ônibus para a Índia rural. Outro problema surgiria. O aparelho de 10 000 dólares funciona somente com eletricidade. Na Índia rural, a eletricidade não está disponível ou não é confiável. Portanto, mesmo que alguém pudesse levar o aparelho para lá, não conseguiria operá-lo.

Vamos supor que se encontre eletricidade numa localidade rural; ainda outro problema surgiria. O aparelho caro e pesado também é muito sofisticado e só pode ser operado por técnicos treinados. Na Índia rural, técnicos treinados ou são inacessíveis ou são extremamente caros.

Portanto, o eletrocardiograma tradicional é absolutamente inútil para 90% da Índia. Isso não significa que 90% dos indianos não sofram de problemas cardíacos. Os pobres têm os mesmos problemas que os ricos. O desafio do atendimento existe — mas ele só será resolvido com uma solução fundamentalmente distinta da pensada até hoje.

A inovação reversa não tem a ver só com baixar custos. Tem a ver com mudar a relação preço-desempenho. Tem a ver com oferecer valor a um custo mais baixo. Em 2008, a GE inovou criando um aparelho de eletrocardiograma altamente acessível, de 500 de dólares, tendo como alvo 90% da Índia.

O aparelho de 500 dólares é extremamente leve. Ele pesa menos do que uma lata de Coca-Cola. Portanto, dá para colocá-lo numa mochila e levá-lo de porta em porta. O pequeno aparelho de eletrocardiograma opera com bateria e pode ser usado mesmo quando não há rede elétrica disponível.

Finalmente, ele é extremamente fácil de usar. Tem apenas dois botões: um verde e um vermelho. Quando se pressiona o botão verde, a máquina funciona. Quando se pressiona o vermelho, ela para. Se a pessoa souber ler os sinais de trânsito, ela poderá operar esse aparelho.


O pequeno equipamento de 500 dólares proporcionou crescimento à GE na Índia. Mas o verdadeiro bônus é que o aparelho hoje está à venda em 19 países, entre eles os Estados Unidos. Imagine por um momento que ocorra um acidente em uma estrada e a ambulância esteja indo para lá.

Não se pode colocar um volumoso aparelho de eletrocardiograma de 10 000 dólares dentro da ambulância, mas pode-se pôr ali uma versão de bolso que custa menos de um décimo do valor. Esse é um caso clássico de inovação reversa. Uma inovação que começou num país pobre como a Índia transformou o mundo.

Da mesma maneira, nos últimos anos, empresas como a indústria de bens de consumo Procter & Gamble, a fornecedora de serviços de tecnologia EMC e a fabricante de tratores Deere & Company, que desde 2005 mantêm centros de pesquisa em mercados emergentes, experimentam essa inversão histórica pela primeira vez. A inovação reversa tem o potencial de transformar todos os setores. Veja o exemplo da habitação.

Há aproximadamente um ano escrevi com Christian Sarkar um artigo na revista Harvard Business Review, no qual questionávamos por que ninguém havia inventado uma casa de 300 dólares para os pobres. Existem hoje no mundo 75 milhões de pessoas sem teto, que dormem ao relento nas calçadas.

Eu me pergunto: isso está certo? Não deveríamos nos indignar? Até uma aranha tem um lar, não é? Uma moradia é um direito humano. O propósito de ter o valor de 300 dólares como alvo é desafiar nossa sabedoria convencional sobre habitação. A casa poderia servir a habitantes em países paupérrimos e também como moradia temporária para desabrigados de furacões, como o Sandy, ou por militares.

Não comecemos pela casa como a conhecemos hoje, que custa 500 000 dólares, tem cinco quartos, quatro banheiros, e depois tentemos diminuí-la para servir aos pobres. Em vez disso, imaginemos ter pousado em Marte. Ainda não sabemos nada sobre a casa. Como criaremos uma? A casa de 300 dólares não é uma questão de reduzir os custos. E sim de mudar o paradigma preço-desempenho. Diz respeito a oferecer mais valor por um custo menor. 

Nós argumentamos que deveríamos oferecer mais saúde com a casa de 300 dólares, mais educação, criar mais empregos para os pobres. Como isso será possível? Tomemos o exemplo da saúde. A saúde não é oferecida somente por hospitais. Ela é oferecida também se pudermos planejar de maneira inteligente a casa de 300 dólares. Há três doenças que matam milhões de pobres em todo o mundo: tuberculose, cólera e malária.


A tuberculose é uma doença transmitida pelo ar. Imagine um casebre numa favela onde dormem dez pessoas. Essa casa não tem insolação ou ventilação apropriadas. Se uma das pessoas que moram ali contrai tuberculose, as outras nove serão infectadas. Daí meu desafio aos projetistas: por que não criamos uma casa com insolação e ventilação corretas para reduzir consideravelmente a incidência de tuberculose?

O cólera é uma doença transmitida pela água. Por que não podemos projetar de maneira inteligente a casa de 300 dólares com água potável e limpa, diminuindo, assim, dramaticamente a incidência do cólera? A malária é transmitida por mosquito. Por que não podemos projetar a casa de 300 dólares de forma a cobrir as partes expostas com telas contra mosquito, diminuindo a incidência de malária?

Da mesma forma, tome-se o caso da educação. A educação não é oferecida somente em escolas. A educação é oferecida também por um projeto inteligente da casa. Considere um país como o Haiti. Seus habitantes não têm acesso a eletricidade. Isso significa que, mal o sol se põe, o país inteiro fica às escuras e as crianças haitianas não podem fazer a lição de casa. Minha ideia é: podemos planejar a casa de 300 dólares de tal maneira a fornecer uma fonte de energia renovável barata, e com isso oferecendo mais educação. 

Quando escrevemos esse artigo, houve tanta repercussão que criamos um site (www.300house.com). Mais de 2 000 pessoas se juntaram à comunidade, contribuindo com ideias para o projeto. Depois fizemos um concurso global e esco­lhemos seis vencedores. Eles vieram ao campus do Dartmouth College, em New Hampshire, e efetivamente realizamos a casa para os pobres. Trata-se de um pro­tótipo. O próximo passo será ver como po­de­mos construir esse protótipo de povoado no Haiti. 

A inovação reversa seguramente mudará a habitação, a educação, a saúde, a fabricação e os produtos de consumo. Apesar de multinacionais poderem se beneficiar da inovação reversa, há companhias no Brasil extremamente bem posicionadas para capitalizar essa oportunidade. Afinal, pense em quem compreende melhor os consumidores brasileiros: as empresas multinacionais ou as locais?

As empresas pequenas e médias no Brasil deveriam concentrar-se nos 90% dos consumidores no Brasil que atualmente não têm acesso a todos os produtos de que os consumidores ricos podem desfrutar. E companhias brasileiras precisam primeiramente inovar para consumi­dores brasileiros, e depois poderão criar crescimento global e oportunidades globais com base nessas inovações. É uma virada histórica a que assistimos hoje. Neste século, a inovação se tornará cada vez mais uma via de mão dupla.

Acompanhe tudo sobre:Edição 1030gestao-de-negociosInovaçãoPaíses emergentes

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025