Revista Exame

Alex Atala foi do Oiapoque ao tucupi

Pobre e atrasada, a agricultura familiar nunca conseguiu decolar no Brasil. Alex Atala, dono do quarto melhor restaurante do mundo, saiu da cozinha para tentar mudar essa história

O chef Alex Atala: nova marca para vender jiquitaia, baunilha do cerrado e tucupi nos supermercados do país (Germano Lüders/EXAME.com)

O chef Alex Atala: nova marca para vender jiquitaia, baunilha do cerrado e tucupi nos supermercados do país (Germano Lüders/EXAME.com)

DR

Da Redação

Publicado em 10 de março de 2013 às 08h21.

São Paulo - Chefs de cozinha podem até ser grandes estrelas, mas o que importa mesmo são os ingredientes. Quem costuma dizer isso é o francês Paul Bocuse, considerado o melhor chef do século 20. O dinamarquês René Redzepi, dono do Noma, o melhor restaurante da atualidade, valoriza tanto seus ingredientes que serve pratos quase in natura.

Isso inclui camarões vivos e cenouras sujas de terra — pescados e colhidos, respectivamente, num raio de 100 quilômetros de seu fogão. O chef  brasileiro Alex Atala, dono dos paulistanos D.O.M. e Dalva e Dito, é adepto da mesma escola. Quem prova suas criações não encontra receitas com caviar, trufas ou foie gras.

Atala renunciou aos clássicos da cozinha internacional no fim de 2009 e fez questão de escrever os motivos a mão em todos os seus cardápios. Basicamente, ele acredita que pode fazer pratos mais saborosos usando ingredientes locais, como tucupi, pupunha e carne de queixada (uma espécie de javali nativo das Américas).

Foram eles que levaram Atala por sete anos consecutivos ao ranking dos 50 melhores restaurantes do mundo da revista inglesa Restaurant. Na última lista, divulgada em abril, ele aparece em quarto lugar, posição inédita para um latino-americano.

A cozinha deu a Atala tudo o que tinha de dar. Agora, ele prepara um novo passo em sua carreira: em vez de apenas usar os melhores ingredientes, ele começará a produzi-los.

A nova fase começou em março, com uma caixinha de papelão de 10 por 20 centímetros. Dentro dela, 1 quilo de uma variedade inédita de miniarroz, que só existe no Vale do Paraíba, em São Paulo.

É o primeiro produto da marca Retratos do Gosto, que Atala criou em parceria com a empresa de alimentos orgânicos Mie — que tem entre seus sócios Maurício Amaro, presidente do conselho de administração da Latam. A ideia é vender nos empórios e supermercados ingredientes típicos do Brasil, que são usados nas cozinhas dos principais chefs do país.

Depois do miniarroz, devem ser lançados mais dez produtos nos próximos 12 meses. Todos eles cultivados por pequenos agricultores e chancelados por um chef (embora a marca seja de Atala). O próximo da lista é uma farinha de milho avalizada pela chef paulistana Heloisa Bacellar, do restaurante paulistano Lá da Venda.


Depois, virá uma série de ingredientes garimpados por Atala em suas viagens pelo país, como pimenta jiquitaia da Amazônia, baunilha do cerrado e tucupi do Amapá.

Em suas andanças para descobrir esses ingredientes, Atala chegou a comprar uma fazenda perto do Oiapoque, no Amapá, e já foi até sequestrado por índios tapirapés no Alto Araguaia, no Amazonas, há 14 anos. “Lançar uma marca para que esses produtos cheguem aos supermercados era um sonho antigo”, diz ele. 

Lucro zero 

Pode parecer poético, mas a verdade é que Atala não quer ficar rico com a empreitada. Tudo o que faturar com sua participação na marca será reinvestido nas fazendas de seus fornecedores. Se quisesse ganhar dinheiro, ele teria caminhos mais seguros. Seu colega pe­rua­no Gastón Acurio, o segundo melhor chef do continente, aproveitou a fama para abrir 30 restaurantes (inclusive o La Mar, em São Paulo).

Gordon Ramsay, um dos mais premiados chefs britânicos, abriu hotéis, entrou para a televisão e hoje só pisa na cozinha para espezinhar os participantes de seus reality shows. Atala continua com a barriga no fogão.

Trabalha das 10 da manhã à meia-noite, dividindo o tempo entre seus dois restaurantes — separados por pouco mais de 100 metros, no bairro paulistano dos Jardins. Reconhecimento à parte, ele diz que os restaurantes não o deixaram rico e que as dívidas são constantes em sua vida.

O pano de fundo da empreitada de Atala é a situação pouco animadora da agricultura familiar no Brasil. Cerca de  12 milhões de pessoas dependem da agricultura para sobreviver — mas mal conseguem sobreviver da agricultura. Responsáveis por cultivar 70% do feijão, 46% do milho e 38% do café do país, os 4 milhões de pequenas propriedades brasileiras lutam para pagar suas contas.

Um terço dessas famílias produz apenas para se alimentar e nem sequer vende a produção. Entre as demais, a renda média é de apenas 13 600 reais por ano — o que coloca as famílias dentro da classe D. É um setor preso a ambiente de pouco capital e tecnologia, enquanto o aumento de produtividade nas grandes fazendas fez do Brasil um dos líderes mundiais na produção de itens como soja, cana e carne. 


Com a Retratos do Gosto, Atala pretende atacar os dois grandes gargalos da agricultura familiar: a qualidade dos alimentos e o acesso ao mercado. O primeiro passo é fugir dos produtos tradicionais, que são cultivados pelas grandes fazendas com mais eficiência e menores custos.

“A agricultura familiar tem outras vocações. Não é produzir commodities, que necessitam de escala, de grandes volumes. É atender os mercados locais com variedade e qualidade”, diz Paulo Moruzzi Marques, professor da escola de agronomia Esalq e um dos maiores especialistas no tema no país.

Atala também acredita que a chancela de um chef pode abrir as gôndolas dos supermercados para os produtos cultivados nas pequenas propriedades. Com Francisco Ruzene, fornecedor do miniarroz que já está à venda, o início é animador. Por mais de 30 anos, Ruzene plantou arroz-agulhinha, uma das variedades mais comuns do produto. Teve lucro em apenas três.

“Acumulei dívidas enormes. Precisei vender o carro e os tratores”, diz. Sob o olhar desconfiado de seus vizinhos em Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba, há seis anos Ruzene começou a pesquisar outras variedades de arroz. Semeou alguns de seus 90 hectares com arroz preto, arbóreo e tailandês.

Foi quando conheceu Atala e topou fornecer 30 toneladas do miniarroz. Enquanto o quilo do agulhinha custa 2 reais, o do miniarroz chega a valer 20. Hoje, Ruzene tem até um centro de pesquisas em sua propriedade com mais de 100 variedades em teste. Algumas delas já são vendidas para marcas como La Pastina, La Rioja e Camil. 

A parceria entre Atala e Ruzene segue um modelo consagrado na Europa. Na França, meca da alta gastronomia, os grandes chefs têm diálogo intenso com os agricultores de sua região. Ninguém compra ingredientes por atacado ou importados dos quatro cantos do mundo, como ainda é comum no Brasil.

Carnes, queijos e até lentilha são protegidos com selos de denominação de origem. Se não tiverem altíssima qualidade e não forem produzidos na região, não entram nos cardápios dos grandes chefs — nem na cozinha das pessoas comuns.

“É um caminho sem volta também no Brasil. Quem insistir em cultivar os mesmos produtos e competir pelo preço mais baixo vai continuar a ter dificuldades”, diz Xico Graziano, ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo. É uma realidade que Atala, de minigrão em minigrão, pretende transformar.

Acompanhe tudo sobre:AgriculturaAlex AtalaChefscomida-e-bebidaEdição 1018EmpreendedoresEmpreendedorismoGastronomiaNomaPequenas empresasTrigo

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025