Revista Exame

Adiós , moléculas, diz Adrià

O chef espanhol Ferran Adrià causou comoção ao anunciar o fechamento de seu estrelado restaurante El Bulli — um novo livro mostra que seu legado ficará

Ferran Adrià: "'Criatividade'" era um termo usado por artistas e músicos, nunca por chefs de cozinha" (Francesc Guillaumet/Divulgação)

Ferran Adrià: "'Criatividade'" era um termo usado por artistas e músicos, nunca por chefs de cozinha" (Francesc Guillaumet/Divulgação)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

No começo deste ano, o restrito (mas barulhento) mundo da alta gastronomia foi surpreendido com a notícia de que o El Bulli, restaurante espanhol que desde 2006 era considerado o "melhor do planeta", fecharia em 2011. Para muitos foi motivo de luto, o fim do sonho de provar incríveis receitas como esponja de gergelim preto ou anêmonas com cérebro de coelho e ostras. Para outros, o fim do El Bulli significa a passagem de uma modinha, um delírio em que a comida tomou caminhos estranhos, que nunca deveriam ter sido trilhados. Goste-se ou não do tipo de comida oferecido por lá, o fato é que a moda das esferas, espumas e esponjas pegou mundo afora. O que causava frisson uma década atrás já pode ser considerado parte de um repertório gastronômico bem conhecido, ao lado de classicões como o linguado à belle meunière ou o tiramisu

. O responsável pela invenção desse novo vocabulário na alta gastronomia tem nome e endereço: Ferran Adrià, praia de Cala Montjoi, 170 quilômetros ao norte de Barcelona, na Catalunha. Contextualizar esse lampejo de criatividade é o objetivo do recém-lançado Ferran: The Inside Story of El Bulli and the Man Who Reinvented Food (ou "Ferran: a história do El Bulli e o homem que reinventou a comida"), de Colman Andrews.

Bancado pelo sonho gourmet de um médico alemão, Hans Schilling, e de sua mulher, Marketta, nos anos 50, o El Bulli nasceu modesto. Estava mais para um boteco de praia (chamava-se originalmente Bar Alemany) que servia peixe grelhado, Coca-Cola e gaspacho aos banhistas e mergulhadores que se aventuravam na praia de Cala Montjoi. Os perseverantes Schilling foram colocando o El Bulli na rota da alta gastronomia. Para isso, abandonaram a Coca-Cola e investiram no que havia de mais chique na época, a comida francesa. Somente em 1987, Adrià tomou as rédeas do El Bulli, como chef de cozinha. Tinha então 25 anos. Foi num encontro com o chef francês Jacques Maximin que Adrià ouviu a lição que, segundo ele, mudou a história do El Bulli. "Criatividade significa não copiar", disse o veterano chef ao novato. "Naquela época, 'criatividade' era um termo usado por artistas e músicos, nunca por chefs de
cozinha", diz Adrià no livro.


A criatividade de Adrià acabou salvando o El Bulli. Apesar das duas estrelas Michelin que o restaurante já ostentava à época, a clientela só se animava a enfrentar o caminho para Cala Motjoi no verão. Nos meses de baixa temporada, o restaurante permanecia fechado. Pois foi esse período de ócio que permitiu a Adrià colocar as instruções de seu colega francês em prática. "Como ficávamos fechados durante tanto tempo, nos sentíamos obrigados a reabrir com um menu totalmente novo." A cozinha usava uma tabela que associava todos os ingredientes disponíveis e as técnicas de preparo utilizadas no restaurante. Todas as combinações possíveis eram postas à prova e catalogadas. As possibilidades, mesmo que muitas, eram finitas. Confinadas numa matriz limitada, as receitas acabariam repetindo velhas fórmulas. E criatividade significava não copiar.

O caminho era mudar as regras do jogo, buscar novas formas de preparo e apresentação. Nasceu, assim, a hoje célebre "cozinha molecular", rótulo que Adrià repudia até hoje. As espumas foram um dos primeiros alvos do ataque da equipe do El Bulli. A espuma sempre foi tolerada em bebidas (chope com colarinho) e na confeitaria (chantilly). Mas no mundo dos salgados o surgimento de espumas era considerado ererro de preparação. Assumir defeitos para transformá-los em qualidade não é lá uma ideia muito nova. Mas, aplicado ao universo gastronômico, esse conceito se provaria genial. A transgressão sistemática das texturas originais dos alimentos, em busca da surpresa e do estranhamento, abriu espaço para a "desconstrução".

A ideia de desmembrar os componentes de uma receita familiar em formas inusitadas (esferas, espumas, pó...) acabou sendo copiada por cozinhas do mundo inteiro. Em 1996, o surto de inovação rendeu ao El Bulli a cobiçada terceira estrela do Guia Michelin, mais conceituada publicação gastronômica do mundo. Aos poucos, ele deixaria de ser um chef renomado para se tornar um pop star. E o El Bulli entraria para a cultura popular como o restaurante mais inacessível da história. Estatísticas — um tanto suspeitas, é verdade — falam em 2 milhões de pedidos de reserva para os 8 000 lugares disponíveis a cada ano. Além de receber títulos de doutor honoris causa e lecionar em Harvard, em 2007, Adrià (que largou os estudos antes da faculdade) foi convidado a participar do Documenta de Kassel, o evento de arte contemporânea mais importante do mundo — não como cozinheiro, mas como artista.

Tamanha exaltação deu origem a uma vigorosa turma de inimigos. O chef Santi Santamaria (também catalão, também triestrelado) personificou a oposição a Adrià. Em 2007, Santamaria foi ovacionado em uma de suas palestras pela seguinte declaração: "(esses chefs de cozinha criativa) são uma gangue de charlatões que se detém em distrair os esnobes". Ele também publicou uma série de livros em que defendia a pureza e a simplicidade dos alimentos, e o fim dos aditivos químicos na cozinha. Tratava-se de uma crítica direta aos emulsificantes e texturizadores usados na produção de algumas mágicas do El Bulli.

Não chega a surpreender que o autor do livro se coloque ao lado de Adrià na briga. Sua importância para a gastronomia mundial, argumenta Andrews, só aumenta com as críticas. Em 2011, depois que o restaurante servir sua última refeição, a ideia é transformar o El Bulli em uma fundação dedicada exclusivamente à criatividade, sem a preocupação de servir os resultados a clientes pagantes, a críticos de guias especializados ou à imprensa. Trata-se de um caminho arriscado: foi exatamente equilibrando-se na tensão entre criatividade e mercado que Adrià fez história. Sem comensais disputando reservas, nem as notas dos guias, suas criações dificilmente terão a mesma repercussão de antes. Aconteça o que acontecer com o El Bulli, seu legado está garantido — ao transformar gastronomia em arte, o catalão abriu um caminho que não tem mais volta.

Acompanhe tudo sobre:carreira-e-salarioscomida-e-bebidaEdição 0981GastronomiaInovação

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025