Revista Exame

Brasil vive a tragédia da polarização política

Para superar o clima de nós contra eles, o Brasil vai precisar encontrar novas maneiras de lidar com as diferenças — agora tão expostas

Fila para pedir emprego em Curitiba: a desilusão ajuda a criar radicalismo (Rodolfo Buhrer/La Imagem/Fotoarena/Exame)

Fila para pedir emprego em Curitiba: a desilusão ajuda a criar radicalismo (Rodolfo Buhrer/La Imagem/Fotoarena/Exame)

DC

David Cohen

Publicado em 11 de outubro de 2018 às 05h54.

Última atualização em 11 de outubro de 2018 às 05h54.

Dentro de alguns poucos dias, a disputa apaixonada que tomou conta do Brasil vai ser resolvida. Haverá um lado vencedor, outro perdedor. Mas a polarização política, que atingiu um nível raramente visto neste país, tende a se manter — porque ela é sintoma de uma divisão mais profunda, que não será resolvida nas urnas.

“Nós estamos vivendo a questão trágica”, diz o psicanalista e psiquiatra Jorge Forbes, presidente do Instituto da Psicanálise Lacaniana. “A tragédia se caracteriza por um embate impossível de resolver, porque os argumentos respondem a lógicas distintas.”

O exemplo mais citado de situação trágica vem do mito de Antígona, filha do rei Édipo. Ela queria dar um enterro digno ao irmão, Polinice, morto ao tentar tomar o poder em Tebas. Seu tio, Creonte, não permite, justamente por ele ter traído e atacado a cidade. Creonte obedece à lei da cidade. Antígona obedece à lei da família. “Isso não se resolve”, diz Forbes.

Na atual cisão da sociedade brasileira, um lado se diz defensor da democracia, e define o opositor como fascistoide. O outro lado se diz defensor da moralidade, e chama os opositores de corruptos.

Não é que estejam errados. É que raciocinam com dicotomias diferentes. “A dualização é uma forma simplificada de lidar com uma realidade complexa”, afirma o psicanalista Christian Dunker, professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Na dualização, o debate é dominado por afetos, e o afeto predominante é o ódio.

“Existem dois tipos de ódio”, diz Dunker. No primeiro, sente-se raiva pelo que a pessoa fez. Esse ódio reivindica desculpas e reparação. No segundo, sente-se raiva pelo que a pessoa é. “Nesse caso, não se quer mais solução, não se busca consenso.” De acordo com Dunker, a sociedade brasileira passou do primeiro para o segundo tipo de ódio.

Não é um fenômeno apenas brasileiro. Ele tem a ver com as transformações por que passa a sociedade no mundo todo. Há algumas causas comuns para isso, como a ênfase adquirida pelas políticas identitárias. Passada a Guerra Fria, e mais ou menos consolidada a globalização, a política passou a girar mais em torno de valores de grupos do que de valores nacionais: os direitos de negros, mulheres, gays, transgêneros, imigrantes… Ao mesmo tempo, vivemos um processo de abandono das estruturas de mediação da sociedade, com uma crescente desconfiança da imprensa, do Judiciário, dos intelectuais. “Essas instâncias, que mediavam o diálogo, agora são interpretadas como partes interessadas, e portanto não mais isentas”, diz Dunker.

O avanço das redes sociais é outro motivo. Elas facilitam a despersonalização do interlocutor. Além disso, ajudam na formação de grupos de interesse homogêneos, que reforçam uma visão de grupo. E promovem uma espécie de narcisismo social. “A possibilidade de se expressar que foi dada a todos alimenta a crença de que a opinião da pessoa é muito mais importante do que realmente é”, afirma Dunker. Quando a realidade não confirma isso, a tendência é aumentar o volume.

No Brasil, houve ainda dois fatores intensificadores da polarização: as crises política e econômica. A percepção de que os processos políticos tradicionais estão corrompidos — evidenciada e amplificada pela Operação Lava-Jato — leva à sensação de caos. E aí, segundo Dunker, “o indivíduo se demite do uso da razão”. A crise econômica facilita a radicalização por outro mecanismo, o da desilusão. De acordo com os psicólogos Paul Maher e Eric Igou, da Universidade de Limerick, na Irlanda, a desilusão leva as pessoas a buscar sentido em ideologias políticas. Essa busca, dizem os dois, com frequência as faz radicalizar suas crenças. Num estudo que eles realizaram com 234 pessoas recrutadas online, Maher e Igou pediram que metade dos voluntários pensassem em temas que lhes causavam desilusão. Em um questionário posterior, esse grupo demonstrou intenções mais extremadas.

A era da razão sensível

Nos Estados Unidos, onde a polarização vem se cristalizando há décadas, diversos estudos mostram que liberais e conservadores dão graus de importância diferentes a valores diferentes. “Liberais tendem a endossar mais valores como igualdade, justiça, cuidado e proteção”, diz Robb Willer, sociólogo da Universidade Stanford, na Califórnia. Os conservadores dão mais apoio a valores como lealdade, patriotismo, respeito pela autoridade e pureza moral.

Até aí, não há grande desvio em relação ao senso comum. O grande problema é que, quando discutem, cada campo tenta convencer o outro com base em seus próprios argumentos. De acordo com Willer, teriam muito mais chance de sucesso se baseassem o discurso nos princípios morais do oponente.

Em uma experiência, progressistas incentivados a pedir apoio de conservadores para o casamento entre pessoas do mesmo sexo só recorriam aos valores mais conservadores, como lealdade e autoridade, em 9% dos casos, mesmo tendo sido instruídos a fazê-lo. De outro lado, os conservadores instados a convencer progressistas a apoiar a adoção do inglês como língua oficial do país só recorriam a princípios liberais, como justiça e proteção contra a discriminação, em 8% dos casos.

De acordo com outro pesquisador, o psicólogo social Jonathan Haidt, da Universidade de Virgínia, e autor do livro The Righteous Mind (“A mente do justo”, numa tradução livre), os dois grupos são incapazes de enxergar que o outro pensa de forma diferente. Após diversos estudos e a pesquisa de milhares de pessoas online, Haidt e seus colegas catalogaram seis princípios fundamentais dos sistemas morais: cuidado, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade. Os progressistas enfatizam os três primeiros, os conservadores são mais ligados aos três últimos. Segundo Haidt, os progressistas são piores do que os conservadores em prever o raciocínio dos oponentes.

Protesto LGBT em Porto Alegre: a política identitária realça divergências | Maria Ana Krack/PMPA

Daí que, nas discussões políticas, cada lado usa argumentos racionais que não ecoam no conjunto de valores do oponente. Não há consenso nem sequer para começar a discussão. “Testemunhamos o fim da razão ascética”, diz o psicanalista Forbes. “Vivemos a era da razão sensível, contaminada pelas paixões.”

Não é uma opinião muito diferente da que tinha o filósofo escocês David Hume. No século 18, Hume já afirmava que a razão servia apenas para ser escrava das paixões. “A gente costuma achar que a informação é a chave da mudança, mas ela nunca é assimilada de forma neutra”, diz Luiza Almeida Santos, que faz doutorado em psicologia na Universidade Stanford, sob orientação de Willer. O normal é que prestemos muito mais atenção — e aceitemos com muito mais facilidade — às informações que corroborem nossas opiniões. Mesmo que sejam fake news.

Do laço vertical para o horizontal

Um estudo de três pesquisadores, das universidades de Winnipeg, no Canadá, e Illinois, nos Estados Unidos, chegou a colocar um valor monetário para a aversão a ouvir opiniões contrárias às nossas. Na pesquisa, com 202 americanos, separaram os grupos contra e a favor do casamento homossexual e deram a ambos a chance de ganhar 10 dólares para ler e responder um questionário com opiniões contrárias. Alternativamente, eles podiam concorrer a um prêmio de 7 dólares para ler opiniões coincidentes. Cerca de dois terços, em ambos os grupos, preferiram a chance de ganhar menos dinheiro, para não ser expostos a opiniões divergentes.

Sair desse beco da polarização, portanto, não é tão simples. Até porque, como diz Dunker, “a falta de cuidado com a palavra é atraente”. Para subir o nível da civilidade, vamos precisar reaprender que nossas palavras têm consequências, que o ambiente das redes não é o da vida social. “A verdade é que eu não sei como chegamos a essa situação”, diz Forbes. “As explicações que eu encontro como cientista social não me satisfazem, não são suficientes.” Para Forbes, nós estamos passando do laço social vertical — o sistema hierarquizado, com padrões de certo e errado — para o laço social horizontal, da pós-modernidade, com uma proliferação de opiniões.

Onde esse processo vai dar, ninguém sabe. Mas ele não tem volta. A única nota de otimismo é que “já existe uma sensação de que ninguém aguenta mais esse clima de divisão”. Mas quanto tempo vai levar até que se estabeleçam novas formas de convivência? Talvez nas próximas eleições, diz Forbes. “Esse choque começou com a eleição de 2014. Segundo Jacques Lacan, um dos mais importantes sucessores de Freud, na primeira vez, você vê; na segunda, compara; e na terceira, conclui.” 

Acompanhe tudo sobre:Eleições 2018PolíticaPolítica no Brasil

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda