Revista Exame

Quais impactos das criptomoedas no futuro do dinheiro e da política

As criptomoedas atingem novos patamares e chegaram para ficar. Que implicações isso terá para o dinheiro e para a política?

Computadores: custos energéticos da mineração colocam criptomoedas em xeque (Akos Stiller/Bloomberg/Getty Images)

Computadores: custos energéticos da mineração colocam criptomoedas em xeque (Akos Stiller/Bloomberg/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 19 de novembro de 2021 às 06h00.

Com o preço do bitcoin atingindo novos patamares, e El Salvador e Cuba decidindo aceitá-lo como moe­da corrente legal, as criptomoedas estão aqui para ficar. Que implicações isso terá para o dinheiro e para a política?

Dinheiro depende de confiança. Ele é aceito em trocas de bens e serviços somente porque as pessoas podem presumir com confiança que outros vão aceitá-lo no futuro. Isso é verdadeiro para o dólar americano e também para o ouro. Argumentar que as criptomoedas, como o bitcoin, são apenas um jogo de confiança — ou uma bolha especulativa, como muitos economistas têm enfatizado — é ignorar sua popularidade.

No entanto, faltam às criptomoedas os pilares institucionais estáveis necessários para reforçar a confiança do público nelas. A confiança, assim, vai e vem, tornando-as frágeis e voláteis, como as oscilações selvagens do ­bit­coin vêm demonstrando em vários casos.

Além disso, o bitcoin e outras crip­tomoe­das dependem de mecanismos de “prova de trabalho” (protocolo usado para prevenção de ataques cibernéticos), com transações que têm de ser verificadas e registradas continuamente em um livro-razão descentralizado (nesse caso, baseado em blockchain). Isso requer que milhões de computadores operem continuamente para atualizar e verificar transações — trabalho incentivado pela oportunidade de ser recompensado com bitcoin recém-cunhado.

A energia consumida nessas operações de “mineração” hoje supera a de um país de médio porte, como a Malásia ou a Suécia. Agora que o mundo está acordando para os perigos das mudanças climáticas (e para a insignificância de nossa resposta a eles até agora), esse gasto maciço de recursos deve tornar o bit­coin bastante desinteressante.

No entanto, apesar de sua volatilidade, fragilidade e imensa pegada de carbono, cinco fatores estão conspirando para tornar o ­bitcoin uma proposta atraente para muita gente: sua narrativa política; as atividades criminosas que ele permite; a senhoriagem que ele distribui; o tecno-otimismo da era atual; e o desejo de enriquecer depressa em um momento em que poucas outras oportunidades econômicas acenam. Consideremos cada fator por vez, em ordem inversa.

Vivemos em uma era de perspectivas econômicas em declínio. Mesmo trabalhadores com diploma universitário não conseguem mais ter garantia de emprego estável com salário bom e crescente. Quando as oportunidades econômicas estão tão escassas, esquemas para ficar rico depressa se tornam particularmente sedutores. Sem surpresas, há hoje uma indústria inteira dedicada a dizer às pessoas que elas podem tirar a sorte grande investindo em bitcoin. Dinheiro tem sido despejado na criptomoeda porque milhões de pessoas nos Estados Unidos e ao redor do mundo pensam que podem obter retornos significativos com ela.

A narrativa de retornos robustos obtidos por investidores amadores e de varejo com uma criptomoeda é apropriada para nossa era obcecada por tecnologia. Ouvimos constantemente que a engenhosidade tecnológica está criando um futuro ainda mais brilhante. E, na superfície, não há como negar que o bitcoin é uma maravilha da inovação tecnológica. Foram necessárias criatividade e maestria genuínas para criar um sistema descentralizado tão complexo, capaz de funcionar sem nenhuma supervisão ou reforço do governo.

Senhoriagem, ou o poder de compra adicional conferido (tradicionalmente aos governos) por meio do controle da oferta de dinheiro, é outro fator que explica o apelo do bitcoin. Quando o governo dos Estados Unidos coloca uma nova moeda em circulação, ele pode usá-la para comprar serviços ou pagar sua dívida. A perspectiva de obter senhoriagem é muito atraente, e provavelmente ajuda a explicar por que há hoje mais de 1.600 criptomoedas listadas. No caso do bit­coin, a ausência de uma autoridade centralizada significa que a senhoriagem é distribuída, oferecendo assim um incentivo aos esforços de mineração (hoje conduzidos por mais de 1 milhão de pessoas ao redor do mundo).

Uma fonte dedicada de demanda pode ajudar uma nova moeda a estabelecer uma posição segura. Para as criptomoedas em geral, e para o bitcoin em particular, essa âncora está plantada firmemente no mundo do crime. Em seus primeiros dias, a demanda por bitcoin foi impulsionada por sites da dark web como o Silk Road, que permitiam todo tipo de transações ilícitas. Até hoje, atividades criminosas representam quase metade das transações de bitcoin, segundo algumas estimativas de pesquisadores.

El Salvador: o país passou a aceitar bitcoin como moeda oficial (Camilo Freedman/Bloomberg//Getty Images)

Cada um desses quatro fatores vem impulsionando artificialmente o bitcoin. Obviamente, os males econômicos de nossa sociedade não serão resolvidos por pessoas que ganham dinheiro com bitcoin. Nem o humor tecno-otimista predominante ganhou apoio no mundo real. E, quaisquer que sejam os benefícios da distribuição de senhoriagem por meio da mineração, eles são mais do que compensados pelo enorme desperdício de energia.

Com isso, resta o argumento político em defesa do bitcoin. Ele vai nos libertar do poder estatal indevido sobre a economia? Na verdade, não. É fato que o Federal Reserve dos Estados Unidos às vezes age de maneiras misteriosas, e o socorro econômico a Wall Street durante a crise financeira de 2008 foi corretamente visto como um conchavo que beneficiou bancos e banqueiros à custa das pessoas comuns. O desejo de reduzir o poder excessivo dos políticos e formuladores de políticas é, portanto, compreensível.

Mas o bitcoin não é a resposta. Ele apela à ideologia libertária pueril em que um gênio solitário combate um estado sufocante para libertar a excelência individual. De fato, a pessoa — ou as pessoas — do mundo real que idealizou o bitcoin e escreveu seu inspirador manifesto usando o pseudônimo de Satoshi Nakamoto é ainda mais digna do título de “visionário” do que o fictício John Galt (herói de A Revolta de Atlas, de Ayn Rand).

No entanto, a visão em si é pura fantasia. O risco de governos ocidentais produzirem inflação descontrolada ou enfraquecerem o sistema monetário internacional é infinitamente baixo. A verdadeira ameaça existencial está hoje na polarização política, no desmantelamento da democracia e na incapacidade dos sistemas políticos democráticos de manter elites econômicas e políticos autoritários sob controle.

Uma nova moeda não vai resolver esses problemas. O que é preciso são medidas para garantir que políticos, burocratas e magnatas do Vale do Silício e de Wall Street­ ajam com responsabilidade. Isso exige participação democrática e engajamento cívico ativo. Truques como o ­bitcoin são uma distração do trabalho real que precisa ser feito.

(Arte/Exame)


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