Revista Exame

A IA que vai no bolso: a Qualcomm aposta nos smartphones para democratizar a IA

Liderada pelo brasileiro Cristiano Amon, a empresa é uma das líderes do setor de semicondutores para smartphones. O próximo passo será aproveitar o poder computacional dos aparelhos para reduzir os custos da inteligência artificial — e tornar qualquer dispositivo um aparelho conectado

Cristiano Amon, CEO da Qualcomm: o brasileiro que lidera a principal fabricante de chips para smartphones do mundo (Qualcomm/Divulgação)

Cristiano Amon, CEO da Qualcomm: o brasileiro que lidera a principal fabricante de chips para smartphones do mundo (Qualcomm/Divulgação)

André Lopes
André Lopes

Repórter

Publicado em 21 de novembro de 2024 às 06h00.

Última atualização em 21 de novembro de 2024 às 06h30.

A primeira vez do CEO da Samsung, Lee Jae-Yong, no Havaí não foi para tomar sol em uma das 125 praias das oito ilhas que formam o isolado estado americano. Uma pena, pois, apesar da aproximação do inverno no Hemisfério Norte em outubro, a temperatura no meio do Oceano Pacífico não oscila. O calor e a brisa são constantes.

A missão do líder da principal empresa da Coreia do Sul era participar do evento Snapdragon Summit e renovar os votos de uma parceria de 15 anos com a anfitriã Qualcomm, a empresa responsável pela fabricação dos processadores da linha de smartphones Galaxy. Ao ser anunciado para a audiência do evento, Lee recebeu um abraço caloroso — o gesto pouco comum em sua cultura — do único brasileiro liderando uma big tech global, Cristiano Amon, que o convidou para falar sobre inteligência artificial no arquipélago vulcânico.

“Até o fim do ano, 200 milhões de dispositivos Galaxy terão inteligência artificial. Em cada etapa, mantemos nosso compromisso de minimizar o uso inadequado da IA e maximizar seus benefícios.” O tom de Lee, com foco na escala para a IA, foi adotado também por uma série de outros CEOs que participaram presencialmente ou em vídeo no evento.

De Mark Zuckerberg, da Meta, a Sam Altman, da OpenAI, todos prometeram que o sonho idealizado para a IA — de auxiliar pessoas comuns em uma variedade de tarefas do dia a dia — está mais próximo do que nunca. Será uma “companheira de vida” para todos e um serviço básico oferecido, claro, pelas big techs.

A iminência desses avanços se deve ao progresso da silenciosa Qualcomm. Avaliada em 190 bilhões de dólares, ela é uma pioneira dos dispositivos móveis, e viu no setor um caminho quase livre para crescer. Desde que começou a atuar com smartphones, em 2008, galgou marcos tecnológicos que permitem rodar chatbots, como o ChatGPT ou o Copilot, diretamente nos dispositivos, sem a necessidade de acesso a um servidor em nuvem.

Essa capacidade elimina o custo energético elevado, levando em conta que, atualmente, o resfriamento após um simples comando consome até quatro litros de água nos data centers. Para Alex Katouzian, gerente-geral de dispositivos móveis da fabricante, levar a IA para o bolso é urgente, pois a chegada dos modelos de linguagem em larga escala criou um ponto de inflexão para a indústria.

“Rodar a IA localmente garante aos consumidores que nada mude na experiência que possuem nos dispositivos. Teremos o mesmo desempenho, longa duração de bateria e design fino, mas agora aplicados a uma computação ainda mais pessoal.”

O Snapdragon 8 Elite, a plataforma de processamento da Qualcomm apresentada durante o evento, é a base para esse novo modelo. No comparativo com rivais como Intel, AMD e Apple, o chip aparece como o mais poderoso já lançado.

E faz sentido: ele foi projetado especialmente para o uso de IA multimodal, o tipo de IA que entende áudio, imagens e texto, facilitando, por exemplo, que empresas de software desenvolvam seus sistemas integrados e capazes de rodar em diferentes dispositivos.

Cristiano Amon, que trabalha na Qualcomm desde 1995, diz que a empresa tem uma posição única no setor, e menciona um longo e minucioso trabalho de parcerias. “Somos uma plataforma, e estar próximo e em sintonia com líderes como Satya Nadella, da Microsoft, foi o que tornou possível, por exemplo, toda uma nova geração de notebooks com IA e que ficam até 20 horas longe da tomada”, diz Amon.

Além dos smartphones e, mais recentemente, computadores, outra aposta agressiva da Qualcomm é o setor automotivo. Sabendo que, com o avanço dos elétricos e autônomos, a demanda por gestão energética e dados em carros cresceria, a empresa desenvolveu uma plataforma de chips dedicada a veículos.

Em pouco mais de dois anos, a área dominou o setor, com chips vendidos para quase todas as fabricantes do mundo. Hoje, representa quase 7% da receita total da companhia. Para Vinesh Sukumar, líder de IA generativa na Qualcomm, existe uma corrida para diminuir o tempo de resposta da IA. No caso dos carros, enquanto processa um pedido do motorista, o veículo estará cuidando de uma centena de outros detalhes, além de exibir informações em telas de alta resolução e, em alguns casos, ele próprio estar dirigindo.

“É preciso levar em conta que não estamos mais falando de coisas simples. A inteligência artificial consiste em produtos variados, com dispositivos igualmente diversos e capazes de entender o mundo”.

Notebooks com Copilot, da Microsoft: processamento neural e chips de nova geração (Andrej Sokolow/Picture Alliance/Getty Images)

Embora a promessa de um hardware ideal pareça bem encaminhada, a Qualcomm tem concorrentes de peso, como a Nvidia, a enfrentar. Há cerca de cinco anos, a Qualcomm valia mais do que sua rival e chegou a pressionar a empresa de Jensen Huang a sair do mercado de chips móveis.

No entanto, a trajetória das duas companhias tomou rumos distintos: enquanto a Qualcomm permaneceu dependente das vendas cíclicas de smartphones, a Nvidia expandiu-se além das GPUs para jogos, direcionando seus esforços para tecnologias avançadas de data centers. Essa estratégia permitiu que a Nvidia capitalizasse em 3,5 bilhões de dólares no mercado de IA.

Uma parte representativa dos ganhos da Qualcomm ainda vem do licenciamento de tecnologia patenteada que permite que os celulares se conectem às torres de telefonia móvel. É uma garantia confortável de receitas e bastante favorecida pela guerra comercial travada entre Estados Unidos e China, e que impede que players como a Huawei exerçam pressão competitiva.

“O 4G transformou a Qualcomm, originalmente uma fornecedora de comunicação, em uma empresa de computação avançada. O plano agora é fazer essa ‘revolução móvel’ para tudo que ainda não está integrado à internet das coisas”, diz Amon. Dentro ou fora do bolso, a Qualcomm busca um novo espaço definitivo — um lugar para o qual só ela vai.

* O repórter viajou para Maui (Havaí), a convite da Qualcomm


“O smartphone será a base de todas as IAs

Cristiano Amon, CEO da Qualcomm, comenta o papel do smartphone na expansão da IA, as parcerias estratégicas com gigantes da tecnologia e o potencial do Brasil para inovar no setor | André Lopes

Cristiano Amon, CEO da Qualcomm: aposta no potencial do Brasil como criador de IA (Qualcomm/Divulgação)

A Qualcomm está se transformando para liderar a “computação inteligente conectada”. Em entrevista, o CEO Cristiano Amon fala sobre o futuro da empresa e explica como o smartphone será a base da IA para bilhões de pessoas. Com parcerias globais e foco em inovação, a Qualcomm busca expandir sua atuação para setores como automotivo e industrial, enquanto vê no Brasil um terreno fértil para soluções locais.

A Qualcomm já foi chamada de empresa de telecomunicações e até de empresa de chips, mas atualmente parece uma visão desatualizada. Qual é a direção da empresa neste momento?

Temos uma longa história de reinvenção. Se olharmos bem, fomos evoluindo ao longo dos anos. Inicialmente, o negócio era focado em interfaces de rádio para celular e se tornou muito conhecido pela tecnologia de CDMA, que veio antes dos famosos chips GSMs no Brasil. Depois, fomos o motor de expansão do Android nos smartphones. Hoje, estamos em um processo de transformação em IA, que começou nos últimos anos. A vantagem é que somos líderes em processamento de alta velocidade com eficiência energética, e isso gera uma grande oportunidade de aplicar a inteligência artificial na última ponta, que é a do usuário. Logo, temos uma direção atualizada para algo que chamo de “computação inteligente conectada”.

E como essa nova direção está sendo implementada?

No setor automotivo, por exemplo, vimos uma mudança em que o carro deixou de ser apenas um veículo para se tornar um computador sobre rodas. Para esse setor, criamos uma plataforma para que os fabricantes possam desenvolver veículos mais digitais e conectados, chamada de Snapdragon Digital Chassis. Essa solução tem sido um sucesso absoluto, e hoje trabalhamos com praticamente todos os fabricantes: americanos, europeus, japoneses, coreanos e chineses. Outro exemplo é o mercado de PCs. Sempre acreditamos na convergência entre smartphones e PCs. Com o lançamento de um chip neural, feito para IA, criamos o lar para o Copilot, da Microsoft.

A ideia de levar a IA para o bolso do usuário parece ser um plano bastante simples e direto. Mas quais são os desafios de distribuição e implementação da tecnologia nessa escala?

Estamos ao lado de líderes como Satya Nadella, da Microsoft, e Sam Altman, da OpenAI, demonstrando que essa é uma missão para todo o setor. O que vai acontecer será semelhante ao que vimos na transição do celular com funcionalidades básicas para o smartphone. Inicialmente, veremos dezenas de aplicações de IA; depois centenas; até que, em alguns anos, a inteligência artificial será a base de funcionamento de qualquer smartphone. Como os smartphones têm ciclos de substituição curtos, podemos distribuir rapidamente essas novas funcionalidades para milhões de pessoas, promovendo essa transformação de forma abrangente.

O carro elétrico SU7 Ultra, da Xiaomi: equipado com um processador exclusivo da Qualcomm (Ying Tang/NurPhoto/Getty Images)

Hoje o Brasil é um país com perfil mais para consumidor de IA do que produtor. Qual oportunidade o país terá nessa transição tecnológica?

Historicamente, vimos que o país adota novas tecnologias com muita rapidez, como foi o caso da internet móvel e da popularização dos smartphones. Além disso, o país possui uma grande economia e indústrias diversificadas, o que cria oportunidades para inovar em áreas específicas. A Qualcomm no Brasil está se organizando para contribuir nesse processo, com projetos focados em setores como agro, varejo e saúde. Acredito que essa transformação pela inteligência artificial permitirá que o país vá além do consumo e crie soluções que somente o Brasil será capaz de criar para o Brasil.

A Qualcomm ao longo dos últimos anos fez algumas aquisições para complementar o portfólio de produtos. Recentemente, especulou-se que a empresa poderia comprar a Intel, que está em um momento complicado, a fim de trazer uma seara nova para dentro de casa. A possibilidade é real?

A Qualcomm está focada em sua estratégia principal, que é desenvolver tecnologia e soluções internamente. Quando entramos no setor automotivo, muitos acharam que precisaríamos adquirir uma empresa para sermos bem-sucedidos. Consideramos algumas aquisições no passado, mas optamos por uma pequena compra da Vionier, para criar o sistema Arriver, e desenvolvemos toda a plataforma Snapdragon Digital Chassis internamente. O mesmo aconteceu com o setor de PCs. Questionaram se conseguiríamos criar uma plataforma robusta para o Windows, e o Snapdragon X Elite se tornou um grande sucesso. Então, confiamos em nossa capacidade de criar as tecnologias necessárias sem, por exemplo, pensar em adquirir uma empresa como a Intel.

Pessoalmente, qual trabalho você acha que precisa entregar e deixar como legado na Qualcomm?

Entrei na Qualcomm em 1995 e tenho uma afinidade muito grande com a empresa. Para mim, é um privilégio ser CEO dessa companhia. Estamos criando novos mercados e fazendo dela uma referência em cada um desses setores. Por mais específico que seja o trabalho de uma empresa que cria processadores, hoje temos uma marca lembrada por sua qualidade e suas características. O trabalho é levar todos os nossos parceiros, nomes que vão de Samsung a Meta, a um patamar de tecnologia que mude o mundo todos os dias.


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