Sede da Anheuser-Busch nos Estados Unidos: foram necessários quase 20 anos para que os empresários brasileiros conseguissem comprar a cervejaria americana (Joe Raedle/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.
Parecia um conto de fadas. Os protagonistas da história tinham nome de nobres, viviam num mundo encantado de cavalos de raça e hotéis cinco estrelas, pilotavam seus próprios aviões e passavam o tempo livre jogando golfe em clubes exclusivíssimos. Durante décadas, foi assim que viveram os membros da família Busch, dona da mais tradicional e celebrada cervejaria americana, a Anheuser-Busch, fundada em 1852, em St. Louis, às margens do rio Mississippi. Tudo — no clã e na empresa — era superlativo. Fabricante da Budweiser, um ícone do consumo nos Estados Unidos, a Anheuser-Busch chegou a ter mais da metade do mercado americano e ostentava o título de maior cervejaria do mundo.
A fartura era grande. E, a partir de determinado momento, a tentação de esbanjar foi irresistível. Na família Busch se pagava por qualquer coisa que parecesse interessante, prazerosa ou exótica — uma das aquisições
mais bizarras foi o direito de explorar a imagem da baleia assassina Shamu, a maior atração do parque Sea World, na Flórida (ele próprio parte do patrimônio da AB).
Enquanto os executivos da AB se refestelavam em jantares de 1 000 dólares no Ritz de Nova York, concorrentes expandiam seus domínios por outras regiões do planeta. Perdulária e ineficiente, a AB passou a viver uma história de rápida e profunda decadência. Em novembro de 2008, veio o golpe definitivo: a belgo-brasileira InBev, controlada pelo trio de empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, comprou a gigante americana por 52 bilhões de dólares. Era o fim de uma dinastia empresarial. E a “América engarrafada”, como o presidente da InBev, Carlos Brito, chamou a Budweiser, agora tinha um dono estrangeiro.
A história de ascensão e queda daquela que foi uma das famílias mais poderosas dos Estados Unidos é o ponto central de Dethroning the King — The Hostile Takeover of Anheuser-Busch, an American Icon (ou “Destronando o rei — A aquisição hostil da Anheuser-Busch, um ícone americano”). Recém-lançada nos Estados Unidos, a obra foi escrita pela jornalista Julie Macintosh, ex-correspondente do diário inglês Financial Times em Nova York.
Boa parte do livro é dedicada à tarefa de construir um retrato detalhado — e cruel — dos Busch. Julie mostra como a família disfuncional acabou por se tornar o embrião da ruína da empresa. O declínio atravessou as últimas três gerações. A cada sucessão, normalmente pontuada por lances de drama e traição shakespearianos, a empresa se esgarçava um pouco mais. Os protagonistas dessa história foram August Busch Júnior (conhecido como “Gussie”), seu filho August Busch III (o “Terceiro”) e o neto August Busch IV (o “Quarto”). Em Wall Street, os sucessores de Gussie ganharam apelidos menos edificantes: “Crazy” e “Lazy” (“Maluco” e “Preguiçoso”), respectivamente.
Baixinho, charmoso e amigo pessoal de presidentes americanos, Gussie era um marqueteiro nato. Na década de 50, comprou o time de beisebol St. Louis Cardinals e inaugurou o parque Busch Gardens, na Flórida — tudo para expor a marca Budweiser às grandes massas. Sua permanência à frente da Anheuser-Busch parecia não ter fim, sobretudo para o Terceiro, descrito por Julie como um sujeito ambicioso e de temperamento mercurial. Em 1975, aos 37 anos de idade, o filho de Gussie tomou o poder. Convenceu a maioria dos membros do conselho de administração de que seu pai estava velho para o cargo e de que ele deveria ser empossado. Sentindo-se traído, Gussie deixou a companhia — ele e o filho ficaram sem se falar pelos quase dez anos seguintes.
Truculento e centralizador, o Terceiro reinava pela força. “Ele exigia lealdade completa, quase como um monarca faria no passado”, afirma no livro um executivo de uma das agências de publicidade da cervejaria. Mas não há como negar que, a despeito de seu gênio detestável, Busch III levou a Anheuser-Busch a outro patamar. “A participação de mercado da companhia no mercado americano dobrou de 22% para 44% entre 1977 e 1990, e quatro anos depois a Bud Light superou a Miller Lite, tornando-se a cerveja light mais vendida do país”, afirma a autora. (O auge dessa trajetória aconteceu em 1995, quando a empresa atingiu 60% de participação no mercado americano.) Centrar fogo no consumo doméstico e praticamente ignorar o que acontecia no resto do mundo acabaria por se tornar uma bomba que o Quarto não conseguiu desarmar.
Persistência
A sucessão do Terceiro não foi mais simples. Em 2002, aos 65 anos, o Terceiro teve de passar o bastão, seguindo uma regra estabelecida pela própria empresa. Seu escolhido, porém, não foi o filho. Ele optou por Pat Stokes, executivo que havia feito carreira na AB. O Quarto só alcançou o poder quatro anos depois, mas nunca conseguiu sair da sombra do pai. As disputas internas e a perda da relevância no cenário global tornaram a Anheuser-Busch um alvo fácil. “Há um tubarão na água e esse tubarão é a InBev”, afirma no livro um executivo da cervejaria americana que não foi identificado. Não se pode acusar os empreendedores Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira de falta de persistência.
Suas primeiras investidas sobre a Anheuser-Busch se deram já em 1991. Em 2007, num encontro informal entre Lemann e o Quarto, o empresário brasileiro sugeriu que AB e InBev deveriam considerar uma fusão. Busch IV não entendeu — ou fez que não entendeu — o recado. “Como a Budweiser, uma cerveja sinônimo da cultura americana, poderia ser produzida por um gigante belga cujos executivos falavam português no escritório? Era simplesmente impensável”, escreve Julie. No ano seguinte, o trio conseguiria fechar o negócio ensaiado por quase duas décadas.
Enfraquecida e sem um líder forte, a Anheuser-Busch não conseguiu resistir (numa passagem do livro, a autora diz que o Terceiro foi favorável à venda desde o início da última investida, embora jamais tivesse declarado oficialmente seu apoio). O que se viu depois foi o banho de gestão típico da cultura corporativa forjada por Lemann, Telles e Sicupira, baseada em cortes profundos de custos e meritocracia, e executada com maestria por Carlos Brito. Foram-se os parques, os aviões e os hotéis luxuosos. Para muita gente, além dos próprios Busch, o conto de fadas tinha chegado ao fim.