Cofundadores da NotCo: Karim Pichara, Matias Muchnick e Pablo Zamora se conheceram nos Estados Unidos, para onde agora querem levar a empresa (NotCo/Divulgação)
Rodrigo Loureiro
Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h15.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h45.
Havia um líquido azulado dentro do copo oferecido para Matias Muchnick. O aroma, a textura e o gosto eram conhecidos do empresário chileno cofundador da NotCo. “Isso é leite?!”, perguntou a seu grupo de pesquisadores. Era leite, como o que é vendido em qualquer supermercado. Mas também não era.
Aquele havia sido feito com uma combinação de moléculas vegetais sugerida por meio de técnicas de inteligência artificial e replicada por uma equipe de chefs. A história se passa no começo de 2019, poucos meses antes de a NotCo, startup chilena que atua no ramo de foodtechs, lançar no mercado o NotMilk. É uma imitação da bebida láctea feita à base de chicória, abacaxi e repolho. O “não leite” da “não companhia” cofundada em 2015 por Karim Pichara e Pablo Zamora era o segundo produto que chegava às lojas após o sucesso de uma maionese totalmente vegana e já ofertada em quatro versões.
Era nesse momento que a NotCo atraía a atenção do mundo, captava mais dinheiro e abria um leque de possibilidades para explorar um mercado que poderá valer 31 bilhões de dólares em 2026, segundo a consultoria Allied Market Research. “Está havendo uma mudança no comportamento do consumidor em relação aos produtos de proteína vegetal”, diz Muchnick. Essa mudança, segundo ele, tende a ser acelerada pela pandemia do coronavírus, que antecipou o futuro e nublou o presente. “Parece existir um entendimento de que a covid-19 tem uma grande relação com a forma como interagimos com os animais”, diz. “Vai existir uma mudança no comportamento do consumidor para produtos plant-based” (veja entrevista abaixo). Para uma empresa que mira o futuro, sua antecipação é um bom sinal em meio ao caos.
A EXAME visitou a sede da NotCo em fevereiro, quando viajar não era um dilema. Em Santiago, viu por que a empresa chamou a atenção de Jeff Bezos. Em 2019, o fundador da Amazon fez, ao lado de fundos como Kaszek Ventures e Maya Capital, um aporte de 30 milhões de dólares na foodtech chilena. O dinheiro foi usado para ampliar o portfólio, agora composto também de sorvete (em três sabores) e, nos próximos meses, de hambúrguer.
Também foi graças à cifra que a companhia redesenhou seu plano de negócios internacional. Fora do Chile há negócios na Argentina e no Brasil, além de um plano para chegar aos Estados Unidos ainda neste ano. Por aqui, a empresa opera desde janeiro do ano passado, mas inicialmente só com a importação de produtos feita pela rede varejista GPA. “A gente entendeu que precisaria mudar a estratégia se quisesse crescer no Brasil”, diz Luiz Augusto Silva, diretor da NotCo no país. Isso foi feito em agosto. Agora a NotCo exporta somente a pré-mistura da maionese, do sorvete e do leite. O restante é envasado no próprio país com o auxílio de empresas locais. O ponto positivo é que a principal rival da companhia, pelo menos nas maioneses, não opera no Brasil. Trata-se da Just, startup americana fundada em 2011 e com mais de 220 milhões de dólares em aportes recebidos. Se os cofres estão mais cheios, o catálogo de produtos da Just é mais reduzido. São apenas duas maioneses, uma regular e outra picante.
A NotCo nasceu de uma primeira experiência falha. Em meados de 2013, Muchnick passou a observar mais de perto o mercado de alimentos alternativos. “Eu queria entender o que estava acontecendo na indústria vegana e por que as comidas eram tão ruins”, afirma. A resposta veio após a contratação de uma empresa que criava formulações para desenvolver uma maionese sem ovos para a recém-criada Eggless Company. “Depois de um ano de trabalho, em que três caras vestidos de cientistas ficavam em um laboratório trabalhando com alguns artigos que haviam sido escritos ainda na década de 1980, foi apresentado um produto. Era incomestível”, diz Muchnick. “Nós não entendíamos que comida realmente era. Como poderíamos replicar uma comida que tivesse aparência, aroma e gosto exatamente como um produto de origem animal utilizando apenas proteína vegetal se nós não entendíamos o que era aquele alimento?”, diz o empresário. A companhia foi vendida em 2015 e Muchnick foi para os Estados Unidos. Lá, estudou processos de bioquímica, começou a entender como funcionavam os processos de combinação de moléculas da indústria farmacêutica e conheceu os futuros sócios: Karim Pichara, cientista da computação, e Pablo Zamora, formado em biotecnologia. A união do trio permitiu que a NotCo saísse do papel já como uma startup que aliava ciência e tecnologia.
Antes de criar qualquer produto, a startup que se estabeleceu com uma sede simples em Santiago, no Chile, desenvolveu um programa de computador para armazenar grande quantidade de dados relacionados aos alimentos que seriam copiados. Sabor, aroma, textura, aparência, tudo é transformado em informação. O mesmo processo é feito com as propriedades químicas, físicas e estruturais de itens da flora. Nessa seara entram legumes, vegetais, flores e as demais proteínas e fibras encontradas em plantas do mundo inteiro. Abastecido de grande quantidade de dados, o computador batizado de Giuseppe usa inteligência artificial para combinar as moléculas e replicá-las utilizando apenas as que podem ser extraídas de vegetais. “O algoritmo tenta entender o que é o leite e como os ingredientes vegetais podem ser usados para replicar isso”, diz Muchnick. Basta digitar o nome de um produto qualquer no computador e o sistema vai indicar como é possível replicá-lo utilizando apenas compostos vegetais. “Testar a comida é algo extremamente humano. O grande desafio é criar uma inteligência artificial humanizada”, afirma Pichara.
Mas nem só de tecnologia vive o empreendedorismo. Por mais que Giuseppe possa ditar com certa precisão as receitas para imitar qualquer alimento com base nas informações armazenadas em sua memória digital, o computador não é à prova de falhas. O primeiro leite, por exemplo, saiu azul. Com as receitas em mãos, chefs da NotCo criam os produtos nas medidas exatas descritas pela máquina. Nem um grama a mais nem uma pitada a menos. Depois, tudo é novamente transformado em informações computacionais e catalogado no computador para munir a máquina de ainda mais informações. Esse processo é repetido dezenas de vezes todos os meses até que um produto perfeito seja criado. Quando isso acontece, a decisão sobre o lançamento leva em conta critérios comerciais e estratégicos. “Antes de expandir a linha é preciso ter foco e disciplina nos produtos que já temos. Não queremos ser um pato que voa, nada e anda, mas não faz nada direito”, afirma Muchnick. Por isso ainda não foram lançados produtos já testados e desenvolvidos, como queijo, manteiga, iogurte e até um creme de avelã apelidado de NotElla.
Enquanto esconde a sete chaves o próximo produto que pretende lançar, a NotCo volta seu olhar para a indústria de carne vegetal. Em fevereiro, a empresa anunciou uma parceria com o Burger King no Chile. A companhia será a fornecedora oficial do hambúrguer vegetal utilizado no sanduíche Rebel Whopper. O lanche foi lançado no Brasil em agosto do ano passado e só desembarcou no Chile meses depois. Por aqui, assim como na Argentina e no Uruguai, a carne vegetal é fornecida pela Marfrig Global Foods. Maior produtora de hambúrguer animal do planeta, a empresa brasileira perdeu a concorrência para a startup para o fornecimento no Chile. O fator de ser uma empresa local e a possibilidade de a startup fornecer, além do hambúrguer, outros produtos para a rede local pesaram na escolha. Se a batalha está perdida, a guerra está longe de terminar. “Ainda vão ouvir falar da Marfrig no Burger King do Chile”, diz Rui Mendonça, diretor de produtos industrializados da empresa brasileira. “Nós também não vamos desistir do Brasil. Nós temos a ciência e a tecnologia que eles nunca terão. Nosso sanduíche é provavelmente mil vezes melhor do que o deles”, afirma Muchnick.
No Brasil, a disputa é mais ampla e envolve outros gigantes do mercado de carne. A Marfrig, por exemplo, registrou crescimento de 50% em seu segmento de proteína vegetal em 2019 e está costurando uma parceria com a BRF nesse segmento. “Queremos garantir a experiência sensorial da carne sendo um produto alternativo”, diz Miguel Gularte, presidente da Marfrig. A BRF, por sua vez, opera com a linha Veg&Tal, da Sadia, com hambúrguer, nuggets e tortas veganas. A Seara, da JBS, tem um portfólio com pratos como hambúrguer, quibe, frango empanado, salsicha e escondidinho e vai lançar costela, isca de peixe e linguiça defumada feita com vegetais. Há ainda o temor da vinda das americanas Impossible Foods e Beyond Meat. A primeira já recebeu 1,2 bilhão de dólares e tem entre os investidores personalidades como a tenista Serena Williams e os cantores Jay-Z e Katy Perry. A segunda captou 122 milhões de dólares antes de abrir o capital, em maio do ano passado, e vale cerca de 3,6 bilhões de dólares. Para enfrentar esses Golias do mercado, a NotCo pode se inspirar em um Davi local. Fundada no ano passado, a Fazenda Futuro já recebeu 8,5 milhões de dólares em aportes e é uma das principais marcas de hambúrgueres veganos do país. “Os frigoríficos operam sem propósito. Eles querem somente estender sua linha. O consumidor não compra um hambúrguer, ele compra a experiência completa de mudar o mundo”, diz Marcos Leta, fundador da Fazenda Futuro. “Já os entrantes estrangeiros chegam com um valor muito alto e se descolam do que o consumidor pretende pagar.”
É justamente no preço que está o maior desafio para a NotCo operar no Brasil — e também para as outras companhias estrangeiras do mercado de comida plant-based. O hambúrguer de planta ainda não tem preço sugerido no Brasil e o valor é uma incógnita. A maionese sem ovo custa de 10 a 13 reais — preço compatível com o mercado. O preço do sorvete varia em torno de 30 e 35 reais o pote de 473 mililitros — mesmo valor praticado por marcas premium, como Häagen-Dazs e Ben & Jerry’s. O problema é o leite. O litro do NotMilk tem preço sugerido de 17,90 reais — muito acima da faixa de 3 a 5 reais do litro de leite convencional. “A tributação não é competitiva”, diz Luiz Augusto Silva, diretor da NotCo no Brasil. “Se os governos querem incentivar a população a migrar, esses produtos devem ter tributação melhor do que os outros. A gente só quer paridade para competir de igual para igual.” Porém, mesmo com uma tributação baixa, Silva admite que o produto ainda custaria mais de 10 reais. Para o executivo, diminuir o preço vai além de conversas com o governo para reduzir a tributação sobre produtos veganos e dar incentivos fiscais à indústria — como já acontece na indústria láctea. Abaixar esse valor só seria possível com o ganho de escala de produção para a diminuição de custos. Enquanto isso não acontece, o leite vegano da NotCo pode até ter passado de azul para branco, mas ainda terá a missão dura de conquistar o consumidor que está com a conta no vermelho.