Revista Exame

"A Chrysler é uma missão pessoal"

Em entrevista exclusiva, o presidente da Fiat e da Chrysler, Sergio Marchionne, conta como pretende tirar a montadora americana do atoleiro-e o papel do Brasil

MARCHIONNE, PRESIDENTE DA FIAT E DA CHRYSLER: ele carrega três BlackBerries e três iPhones (Alexandre Battibugli/Site Exame)

MARCHIONNE, PRESIDENTE DA FIAT E DA CHRYSLER: ele carrega três BlackBerries e três iPhones (Alexandre Battibugli/Site Exame)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

Quando os presidentes das três maiores montadoras americanas prostaram-se diante do governo atrás de socorro financeiro, em dezembro de 2008, havia duas grandes certezas e uma dúvida. As certezas diziam respeito à Ford e à General Motors. Por ter criado um colchão de segurança, penhorando a própria marca, a Ford não precisaria de nem um centavo sequer da Casa Branca. A GM, por seu simbolismo, seria resgatada a todo custo (no caso, um custo de 28 bilhões de dólares). A dúvida era a Chrysler. Terceira maior montadora dos Estados Unidos (e quinta em participação de mercado), com vendas de pouco mais de 1 milhão de veículos, a empresa vinha definhando havia anos. Seus modelos estavam ultrapassados. A união com a alemã Daimler havia terminado num penoso divórcio. Não havia um plano de negócios confiável que justificasse qualquer aporte de dinheiro público. Por outro lado, o crescente interesse na marca por parte de montadoras chinesas causava calafrios em Washington. Eis que surge, então, a Fiat. Sem
desembolsar um único tostão, a montadora italiana arrematou 20% do controle da Chrysler em junho de 2009. E nomeou Sergio Marchionne seu presidente — o mesmo que ganhou fama no mundo corporativo ao tirar a Fiat da bancarrota. Quando Marchionne assumiu o comando da empresa, em 2004, a Fiat perdia 2,4 milhões de dólares por dia. No ano seguinte, após uma série de reestruturações, a empresa estava no lucro.

Agora, quase um ano e meio à frente da Chrysler, Marchionne expõe seus primeiros resultados. Em agosto, a Chrysler foi a única das grandes montadoras a registrar aumento nas vendas nos Estados Unidos: 7%, ao passo que as vendas da GM caíram 24,5%, e as da Ford, 11%. "Não há garantia melhor de continuidade do sucesso que o próprio sucesso", diz o executivo.

É verdade que Marchionne assumiu o comando da Chrysler numa situação bem mais confortável que a da Fiat em 2004. Poucos meses antes, nos 42 dias em que a companhia esteve em concordata, o governo americano havia liberado um empréstimo de 7,4 bilhões de dólares para fi nanciar sua recuperação. Dinheiro, portanto, não faltava. "A Chrysler padecia com uma linha de produtos envelhecida e uma administração lenta", diz David Cole, presidente do Center for Automotive Research. Como uma de suas primeiras medidas, Marchionne cortou seis níveis hierárquicos do organograma da Chrysler, reduzindo-os a apenas quatro entre ele e o chão de fábrica. Além disso, criou uma estrutura em que 25 executivos de áreas como engenharia, marketing, jurídico e recursos humanos se reportam diretamente a ele — um espelho do que acontece na Fiat, com estrutura direta composta de 21 executivos. Aos 58 anos de idade, Marchionne teve de se dividir em dois para comandar uma companhia com sede em Turim, na Itália, e outra baseada em Auburn Hills, cidade próxima a Detroit, nos Estados Unidos. Sua onipresença intelectual — fisicamente, ele passa quatro dias em Turim e três dias em Detroit — é garantida pela tecnologia. Para manter-se em contato constante com todos os seus subordinados diretos, ele carrega três BlackBerries e três iPhones. "Marchionne responde qualquer e-mail em apenas 2 minutos", diz Cledorvino Belini, presidente da Fiat no Brasil. Até o fi nal do ano, a Chrysler pretende lançar, entre modelos 100% novos e reestilizações, 16 carros — o equivalente a 75% do portfólio atual da empresa.


Desafios

Ao analisar alguns números da Fiat — e da própria Chrysler —, fica fácil entender por que Marchionne tem pressa. A montadora italiana levou um tombo e tanto com a crise, justamente por ser tão dependente do mercado europeu. No ano passado, a receita líquida do Grupo Fiat caiu 15%, para 50 bilhões de euros. O lucro de 1,7 bilhão de euros em 2008 foi convertido num rombo de 850 milhões de euros. Para reverter esse quadro, resta a Marchionne investir em duas frentes. A primeira é o Brasil, o mercado mais importante da Fiat fora da Itália. "Vamos injetar 10 bilhões de reais no país até 2015", disse a EXAME. "A esmagadora maioria desse dinheiro irá para novos produtos e tecnologias." Na Chrysler, segundo pilar da estratégia de Marchionne, a ordem é crescer, crescer, crescer. Seu plano é dobrar o número de unidades vendidas pela montadora, para 2,5 milhões, nos próximos cinco anos.

Antes de chegar lá, Marchionne deverá enfrentar dois importantes testes. O primeiro será o desempenho das vendas do novo Jeep Grand Cherokee, o primeiro carro lançado sob sua gestão. O burburinho em torno do lançamento, no início de junho, levou o presidente Barack Obama a visitar a fábrica em que o veículo está sendo produzido — o fato de Marchionne ter anunciado a contratação de 1 100 operários na combalida Detroit ajudou, ainda que o salário deles seja a metade do que recebem os funcionários mais antigos. Mas o maior desafi o virá com o início das vendas do compacto 500, da Fiat, nos Estados Unidos, previsto para janeiro. Será o primeiro carro da marca italiana vendido no país desde 1985, quando a Fiat foi praticamente enxotada devido à má qualidade de seus carros. A meta é vender 50 000 unidades do modelo já no primeiro ano, tarefa que está longe de ser cumprida com facilidade. Das 200 concessionárias que a Fiat pretendia abrir para o 500, apenas 165 foram aprovadas.

A obstinação de Marchionne em fazer da Chrysler um exemplo de sucesso não é apenas uma questão de vaidade pessoal — mas de sobrevivência do negócio. A crise que assolou as economias desenvolvidas de 2008 para cá expôs as mazelas de um setor que operava de maneira ineficiente, com custos elevados e margens em queda. No auge da turbulência, em janeiro de 2009, o próprio Marchionne chegou a afirmar que só restariam no mapa as montadoras capazes de produzir pelo menos 6 milhões de veículos por ano. Era um recado para os concorrentes, mas principalmente para os acionistas da Fiat. A montadora italiana produz pouco mais de 2 milhões de unidades ao ano e vem perdendo participação de mercado na Europa. A fatia da Fiat na região caiu de 8,5%, em 2008, para pouco mais de 6,5%, em agosto deste ano. (Hoje, um terço do lucro da Fiat vem do Brasil.) "É nesse contexto que entra a Chrysler", diz Stephan Keese, da consultoria Roland Berger, especializada no setor automotivo. "A empresa produz anualmente 1,3 milhão de carros. E pode contribuir ainda mais tão logo a economia americana se recupere." Ao longo de seus 85 anos de história, a Chrysler foi resgatada duas vezes pelo governo americano. Na primeira, em 1980, o então presidente da montadora, Lee Iacocca, chegou a gravar uma série de comerciais na TV pedindo aos americanos que continuassem comprando os carros da empresa. Os consumidores atenderam em peso ao pedido — ajudado, em boa parte, pelo fato de a Chrysler ter lançado a primeira minivan do mercado, segmento que virou febre nos anos seguintes nos Estados Unidos.


Desta vez, tanto a ajuda financeira por parte da Casa Branca quanto a chegada de um controlador como a Fiat foram celebradas com alívio dentro e fora da indústria. Marchionne, assim como Alan Mulally, presidente mundial da Ford, e o brasileiro Carlos Ghosn, à frente da Renault-Nissan, faz parte de um grupo de executivos forasteiros que vêm mudando a face do setor. Marchionne é egresso da suíça SGS, empresa especializada em testes e certificação de produtos. Mulally presidia a Boeing antes de assumir a Ford. E Ghosn comandou a operação da fabricante de pneus Michelin na América do Norte. Dos três, Marchionne é o que fica mais fora da caixa. Nascido na Itália, foi criado no Canadá, onde se formou em contabilidade e em direito. Gosta de citar Karl Marx, o pai do comunismo, e Albert Einstein em seus longos discursos. Para administrar ao mesmo tempo a Fiat e a Chrysler, ele aproveita a diferença de fuso horário entre Turim e Auburn Hills para dormir no avião. Recusa-se a vestir paletó e gravata — e, ao contrário de seu antecessor, o americano Robert Nardelli, optou por trabalhar numa sala ao lado da área de engenharia, no quarto andar do prédiosede da Chrysler, em Detroit.

Se quiser fazer da aliança Fiat-Chrysler uma potência verdadeiramente global, nos moldes do que acontece com a Volkswagen ou a Toyota, Marchionne terá, antes, de convencer consumidores do mundo inteiro a confiar em seus carros novamente. Boa parte do aumento nas vendas da Chrysler registrado em agosto nos Estados Unidos deveu-se ao fornecimento de automóveis para frotistas, que rendem margens até 50% menores do que os carros comprados nas concessionárias. Muitos consumidores se ressentem dos constantes problemas de qualidade apresentados pela montadora. Segundo dados da consultoria JD Power&Associates, a Chrysler possui um dos piores desempenhos do setor, atrás inclusive da Mercury, a marca "B" da Ford. Na Europa, a situação não é muito diferente. "Sem melhorar a qualidade dos carros, não há ‘tapinha’ no visual que resolva", diz o analista de um banco europeu. Marchionne, porém, prefere desafi ar os críticos. "Quando assumi a presidência da Fiat, em 2004, e disse que faríamos dinheiro no ano seguinte, todos disseram que eu era louco", diz. "O mesmo aconteceu com a Chrysler. Agora as pessoas estão percebendo que a montadora não está morta."


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