Debate democrata em Nevada: a concorrência acirrada estimula os ataques entre os candidatos (Mario Tama/Getty Images)
Filipe Serrano
Publicado em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.
Última atualização em 27 de fevereiro de 2020 às 05h30.
Se havia alguma esperança de que a pré campanha eleitoral americana de 2020 seria menos conturbada e imprevisível do que a de 2016, quando o presidente Donald Trump foi nomeado candidato pelo Partido Republicano, essa expectativa evaporou nesta primeira fase das primárias democratas nos Estados Unidos. A disputa está tão embolada que nenhum dos nomes à frente na corrida pode ser considerado favorito absoluto, ao contrário do que era de esperar a esta altura das primárias. O senador socialista Bernie Sanders até tem aparecido como líder nas pesquisas eleitorais e em prévias democratas recentes, mas a vantagem dele é pequena.
Atrás de Sanders vem um bloco de candidatos variados, e cada um conta com uma fatia significativa da preferência do eleitorado. Eles competem para se tornar a opção mais viável entre os nomes mais ao centro do espectro político, numa briga pelos eleitores moderados. “Nós não deveríamos ter de escolher entre um candidato que quer destruir este partido e outro que quer comprá-lo”, resumiu Pete Buttigieg, o mais jovem dos candidatos, no debate democrata em Nevada, em fevereiro, referindo-se a Bernie Sanders e ao bilionário Michael Bloomberg.
A concorrência acirrada tem uma consequência. Ela estimula os ataques entre os pré-candidatos num grau que ainda não tinha sido visto na campanha. Michael Bloomberg, que era tido como um nome forte para derrotar o presidente Trump nas eleições em novembro e vinha crescendo nas pesquisas nacionais, é alvo frequente de críticas incisivas dos adversários — e especialmente da senadora Elizabeth Warren — por causa de seu histórico de discriminação contra mulheres e negros.
Outro ponto fraco explorado pelos concorrentes é o fato de Bloomberg estar bancando a campanha do próprio bolso, o que nos Estados Unidos não pega bem, porque sugere que multibilionários como ele podem “comprar” as eleições e colocar os interesses pessoais à frente dos anseios da população. Até 20 de fevereiro, Bloomberg já tinha despendido 409 milhões de dólares (cerca de 1,8 bilhão de reais) em sua campanha, sendo 221 milhões de dólares apenas no mês de janeiro. Com uma enxurrada de anúncios na televisão e ações de marketing nas redes sociais, Bloomberg espera conquistar o apoio de eleitores na Super Terça, no dia 3 de março, quando 14 estados realizam as prévias de uma só vez. Mas o desempenho decepcionante do empresário no debate em Nevada, combinado à sua falta de carisma, pesa contra ele.
Bloomberg e os demais candidatos de centro tentam ocupar um vazio deixado pelo ex-vice-presidente Joe Biden, que ainda não havia mostrado seu brilho até o fechamento desta edição. Antes do início das primárias, ele era a opção mais forte para se contrapor ao socialista Bernie Sanders e disputar a eleição com Trump. “Biden é o candidato do establishment, visto como alguém que pode restaurar certo grau de previsibilidade em Washington. É o contrário de Bernie Sanders, que é o anti-establishment por excelência e busca uma revolução na política americana”, diz Todd Mariano, diretor para os Estados Unidos da consultoria de análise política Eurasia, a mais prestigiada do mundo.
Mas o mau desempenho de Biden nos primeiros estados que realizaram prévias abriu caminho para candidatos que pareciam não ter muita força, como a senadora Amy Klobuchar e Pete Buttigieg, ex-prefeito da cidade de South Bend, no estado de Indiana. “Essas primárias estão me parecendo as mais fragmentadas da história, desde que o moderno sistema de primárias foi criado, nos anos 1970. Temos um partido democrata que se julgava que estaria unido contra o Trump, mas está profundamente dividido”, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais na Fundação Armando Álvares Penteado e especialista em política americana.
Pete Buttigieg surpreendeu ao alcançar o primeiro lugar nas prévias do estado de Iowa e o segundo em New Hampshire, ficando pouco atrás de Bernie Sanders. Como é um candidato jovem (tem somente 38 anos) e é um nome novo no Partido Democrata, Buttigieg tenta se tornar uma espécie de Emmanuel Macron americano. Isto é: um político de centro-direita capaz de energizar eleitores que querem uma mudança de direção no país, mas desconfiam das propostas de Bernie Sanders. O histórico das últimas décadas mostra que os democratas só conseguem de fato derrotar os republicanos quando têm um candidato que represente um rompimento com a política tradicional. Foi assim com a eleição de Barack Obama, em 2008, com Bill Clinton, em 1992, com Jimmy Carter, em 1976, e com John F. Kennedy, em 1960. A dúvida é se Buttigieg — ou outro candidato democrata — conseguirá capturar esse sentimento.
Pete Buttigieg atrai gente como a empresária americana Katie Anthony, dona de uma agência de viagens de South Bend, cidade onde o candidato cresceu e foi prefeito entre 2012 e 2019. Ela conta que a primeira vez que viu o candidato foi quando Buttigieg retornou à cidade, anos atrás, para fazer uma palestra no colégio de seus filhos, o mesmo onde o ex-prefeito havia estudado. “Meu marido e eu ficamos dizendo: ‘Meu Deus, este é o melhor discurso que já ouvi. Quem é esse menino?’”, diz a empresária, que hoje apoia o candidato. Katie lembra que, quando era prefeito, Buttigieg impulsionou a renovação do centro da cidade e também de bairros decadentes, cheios de casas abandonadas. A economia de South Bend, com 100.000 habitantes, nunca se recuperou do fechamento da montadora Studebaker, nos anos 1960, e muitos moradores saíram de lá. Para Katie, Buttigieg tem qualidades que podem se sobressair na eleição presidencial. “Ele é inteligente, tem visão, não vem de uma família rica e conhece a realidade das cidades do Meio-Oeste. É um perfil atraente para muitas pessoas que estão cansadas de tudo, sejam elas republicanas ou democratas”, afirma.
Até agora, a maioria dos analistas acredita que, para que os democratas consigam derrotar o presidente Donald Trump, será necessário encontrar um candidato que, ao mesmo tempo, atraia votos de ex-eleitores do presidente e engaje o eleitorado democrata, para estimular as pessoas a votar. Como o voto não é obrigatório, o comparecimento nas urnas conta muito para o resultado final. “O eleitorado parece continuar favorecendo um candidato anti-establishment em 2020, como aconteceu em 2016. Isso ainda funciona a favor do presidente. Mas seu governo também estimulou tanto a oposição a se movimentar que isso pode levar as pessoas a comparecer em peso nas urnas e a votar contra ele”, diz Mariano, da Eurasia.
Outro desafio que afeta tanto os democratas quanto os republicanos é conquistar um eleitorado que é cada vez mais diverso. Segundo uma projeção do instituto Pew Research Center, dos Estados Unidos, os eleitores de ascendência latino-americana, chamados de hispânicos, são hoje 13% do total, ultrapassando pela primeira vez a participação dos americanos negros, de 12,5%. Somados às pessoas de ascendência asiática, formam o grupo de pessoas chamadas de “não brancas”, que representa 30% dos eleitores. No ano 2000, eram apenas 21%.
As novas gerações também têm uma participação maior, o que é outro cenário novo para os candidatos democratas e republicanos. Quando Trump foi eleito, os jovens nascidos depois de 1996 eram apenas 5% do eleitorado. Hoje eles são 10%, superando o número de americanos mais velhos, nascidos antes de 1946 (9%). Já os millennials (nascidos entre 1981 e 1996) correspondem a outros 27% do eleitorado. Esses jovens tendem a ser mais abertos às propostas de candidatos de esquerda, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren, que defendem um sistema de saúde pública gratuito nos Estados Unidos e o aumento dos impostos para os mais ricos. Entretanto, para vencer, os candidatos também precisam atrair os votos das gerações mais velhas. As pessoas nascidas entre 1946 e 1980 representam 53% do eleitorado. É nesse xadrez eleitoral que os democratas agora precisam escolher se algum dos candidatos moderados vai disputar a Presidência — ou se um outsider como Sanders ficará à frente.