A maior turbulência financeira desde 2008
A economia global passa por um momento de inflexão. Após anos de juros perto das mínimas, bancos centrais de todo o mundo elevaram suas taxas para controlar o avanço da inflação, que disparou com os efeitos econômicos da pandemia de Covid-19. A mudança de patamar foi acelerada, e agora aparece como denominador comum das crises bancárias que tiram o sono dos investidores nos Estados Unidos e na Europa – e que trazem desafios, também, para o Brasil.
O alerta soou primeiro nos Estados Unidos, com a crise de liquidez no Silicon Valley Bank (SVB), um banco de médio porte especializado no financiamento de startups. A falência do banco foi decretada no dia 10 de março e deu início a um período de turbulência, com os investidores temendo uma reedição da crise financeira de 2008. As autoridades se apressaram a prestar socorro e dizer que a crise não era sistêmica – ou seja, que não se espalharia para outros bancos.
Mas o ambiente de incerteza cobrou seu preço do outro lado do Atlântico. Alguns dias depois da quebra do SVB, o Credit Suisse, segundo maior banco da Suíça, apresentou um problema de liquidez que poderia ser mais uma etapa contornável de uma crise que vinha se arrastando desde 2021. Porém, o ambiente inquieto nos mercados após a falência do Silicon Valley Bank foi implacável. Considerado muito grande para quebrar, o Credit foi comprado às pressas no domingo, 19, pelo concorrente UBS, em um movimento orquestrado pelas autoridades do país para conter uma crise de confiança no sistema bancário.
E, mesmo com as medidas já tomadas, ainda não está claro se o momento mais crítico para os bancos globais está perto do fim.
O papel dos juros altos na crise
Os ciclos de aperto monetários já resultaram em colapsos financeiros dramáticos no passado, relembra Larry Fink, CEO da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, com US$ 8,6 trilhões sob gestão.
O SVB pode ser o exemplo mais recente dessa dinâmica. Para conter o maior nível da inflação em quarenta anos nos EUA, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) iniciou uma cruzada para esfriar a alta de preços. O resultado? Os juros nos EUA atingiram o maior patamar desde 2007. A elevação foi rápida, com as taxas saltando de um intervalo entre 0% e 0,25% para 4,5% e 4,75% em apenas um ano.
“Desde a crise financeira de 2008, os mercados foram definidos por políticas fiscais e monetárias extraordinariamente agressivas. Como resultado dessas políticas, vimos a inflação subir acentuadamente, para níveis não vistos desde a década de 1980. Este é um preço que já estamos pagando por anos de dinheiro fácil - e foi o primeiro dominó a cair”, avaliou Fink em sua tradicional carta anual aos investidores.
Porém, a disparada de juros, por si só, não é suficiente para causar o colapso de um banco ou mesmo do sistema. A mudança brusca deixa à mostra problemas que estavam (e poderiam permanecer) enterrados em situações mais favoráveis. É o caso do SVB, que assumiu dois grandes riscos: não diversificou sua base de clientes e, na hora de alocar o dinheiro dos depósitos, concentrou o capital em títulos mais arriscados.
Antes de quebrar, o Silicon Valley Bank era o 16º maior banco americano, com mais de US$ 200 bilhões em ativos, US$ 175 bilhões em depósitos e 40 anos de história em financiamento de startups, em especial de tecnologia. A semente que culminou na falência do SVB ganhou força entre 2020 e 2022, quando as startups passaram por um boom de financiamento em meio a taxas de juros baixíssimas, no patamar entre 0% e 0,25%.
Com mais dinheiro entrando nas empresas, mais capital foi depositado no SVB. E com o dinheiro dos depósitos, o banco do vale do Silício comprou títulos do governo e títulos privados de hipotecas. Entra aí uma falha de alocação: o SVB concentrou 78% das compras em títulos de longo prazo, cujo preço é inversamente proporcional à taxa de juros.
Os juros dispararam e o valor da carteira despencou, junto com o preço dos títulos. Inicialmente, era possível fingir que as perdas não estavam lá, já que as normas de contabilidade americanas não exigem que elas sejam contabilizadas – ao menos não até o vencimento ou venda dos títulos. A estratégia de concentração de risco talvez conseguisse passar sem represálias se as startups não estivessem sacando seus depósitos de olhos na elevação de taxas do Fed – tanto porque precisavam de dinheiro como para aplicar em operações mais rentáveis com os juros mais altos.
Quando o dinheiro começou a sair dos cofres do SVB, o banco foi obrigado a vender parte dos títulos de longo prazo e a reconhecer US$ 1,8 bilhão em perdas na carteira. Para cobrir o buraco, propôs uma captação de US$ 2,2 bilhões em uma oferta de ações, que foi mal recebida no mercado. O estopim do pânico foi atribuído ao fundo de Peter Thiel, um dos investidores mais respeitados do Vale do Silício, que aconselhou as startups a sacar recursos do SVB. A notícia se espalhou como pólvora na restrita comunidade de venture capital, e culminou na maior corrida bancária da história dos Estados Unidos e na falência do Silicon Valley Bank.
No último domingo, o banco First Citizens acertou a compra dos ativos do SVB, último passo de uma resposta regulatória que foi considerada rápida, ajudando a evitar riscos de contágio. Mas os mercados continuam no limite. O enredo ganha uma camada a mais de preocupação de olho no futuro, já que não há indicação de que os juros vão ser cortados ainda neste ano.
Depois da turbulência, o Fed diminuiu o ritmo de alta de juros, mas a inflação continua forte, e deve levar a, pelo menos, mais uma elevação das taxas americanas.
A crise está se espalhando?
Os mesmos motivos que levaram à falência do SVB também podem explicar porque analistas acreditam que a crise não deve se espalhar de forma generalizada. O primeiro ponto é que o SVB era um banco com uma base muito concentrada, sem grande exposição a outras instituições. Ou seja, a quebra do Silicon Valley Bank não arrastou, automaticamente, outros bancos para o mesmo buraco.
“O Lehman Brothers [símbolo da crise financeira de 2008] era altamente alavancado (30,7x em novembro de 2007) e completamente interconectado com o sistema financeiro por meio de uma vasta rede de derivativos. Já o SVB é muito menos alavancado (13,2x em dezembro de 2022), não tem grande exposição a derivativos e é menos interconectado”, destacam, em relatório, os analistas do BTG Pactual (do mesmo grupo controlador da EXAME).
O segundo ponto é a regulação. Por ser um banco médio, o Silicon Valley Bank estava exposto a regras mais brandas que os bancões americanos, e tomou decisões muito arriscadas de alocação.
Nos EUA, os bancos considerados “sistematicamente importantes”, com mais de US$ 250 bilhões em ativos, são obrigados a passar por um teste de estresse anual para indicar se conseguem absorver perdas e cumprir obrigações de resgate em caso de mudanças no cenário macro. Ou seja, esses bancos são obrigados a manter um padrão mais alto de capital e de liquidez.
As medidas de proteção foram adotadas para proteger o sistema bancário, como herança da crise financeira de 2008. Antes, a regra se aplicava também para bancos médios do tamanho do SVB, mas foi flexibilizada em 2018 na gestão Trump.
Sendo assim, os mais expostos à crise atual são, justamente, os bancos médios ou regionais que, como o SVB, também estão sob uma regulação mais branda e tem uma base concentrada de clientes. Dois dias depois da quebra do Silicon Valley Bank, houve a falência de mais um banco médio americano, o Signature Bank. Outro banco regional dos EUA, o First Republic Bank, vem se equilibrando na corda bamba com a ajuda das autoridades e dos grandes bancos.
Isso não significa, no entanto, que os bancões dos Estados Unidos devem escapar ilesos da crise.
“O banco é o canal mais poderoso de transmissão entre política monetária e economia real. E, nesse sentido, do lado dos bancos menores, o comportamento deve ficar mais cauteloso quanto às ofertas de crédito. E até mesmo entre os bancos maiores é difícil não ter alguma contaminação de conduta”, disse Benjamin Mandel, estrategista-chefe da Itaú Asset, em entrevista à EXAME Invest.
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Credit Suisse e a crise de confiança
Se o caso do SVB não oferecia um risco de contaminação generalizada, o que explica a derrocada do Credit Suisse do outro lado do Atlântico? A verdade é que os dois movimentos não têm a mesma origem.
Desde 2021, o banco suíço vem enfrentando uma série de problemas de governança que levaram a uma escalada de saques. Entre os escândalos, estão as perdas bilionárias com o Archegos Capital Management e o Greensill. No primeiro caso, a quebra do family office gerou um prejuízo de US$ 5,5 bilhões para o Credit. No segundo, perdas de US$ 10 bilhões.
Para coroar a trajetória errática, o Credit anunciou no último dia 14 que encontrou “fraqueza material” em seus balanços – o banco teve perdas pelo quinto trimestre seguido, com um resultado de 1,39 bilhão de francos suíços (US$ 1,5 bilhão) no quarto trimestre.
Logo após o anúncio, seu principal acionista, o banco nacional da Arábia Saudita, disse que não seria capaz de oferecer uma ajuda financeira adicional para o Credit. O golpe veio menos de uma semana depois da falência do Silicon Valley Bank nos EUA.
Com o fantasma do SVB no retrovisor, a crise de liquidez rapidamente minou a confiança no banco e os clientes correram para sacar o dinheiro. Nenhum banco sobrevive a uma corrida bancária forte, mas, como o Credit era muito grande para quebrar, a solução costurada com as autoridades suíças foi a venda da companhia para seu concorrente, o banco UBS.
Vale relembrar que a aquisição do Credit pelo UBS vinha sendo especulada desde o ano passado. A escalada dos juros globais e a falência do SVB apenas acelerou o movimento. Ainda assim, o fim do Credit Suisse aumentou as desconfianças com o setor bancário na Europa, tanto que agora o alemão Deutsche Bank vem sendo pressionado.
Bancos brasileiros correm risco?
As turbulências bancárias nos Estados Unidos e na Europa não têm a mesma origem, mas foram trazidas à tona em um momento de fragilidade dos mercados, com a taxa de juros em trajetória de alta. Sendo assim, seria possível que a crise atingisse, de alguma forma, os bancos brasileiros?
Primeiramente, vale dizer que não havia exposição relevante dos bancos brasileiros ao SVB, nem mesmo daqueles que nasceram como fintechs, caso de Nubank e Banco Inter. Então, não havia risco de contaminação direta.
Outro ponto que protege os bancos locais é a trajetória da taxa de juros por aqui. O Brasil foi um dos primeiros países a começar o ciclo de alta dos juros, ainda em 2021. Então, boa parte do risco da disparada já está precificado no balanço das instituições, segundo avaliação da agência de classificação de risco Fitch. O País também tem um histórico de juros altos que deixa os bancos locais preparados para esse tipo de adversidade.
Além disso, o mercado nacional é muito concentrado em cinco grandes nomes – Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Santander e Caixa –, com pouco espaço para companhias médias e pequenas, que são as protagonistas da crise nos EUA. O setor também é muito mais regulado que o dos pares internacionais, o que conta positivamente em momentos de crise.
“Não há perdas diretas ligadas ao Silicon Valley Bank para os bancos brasileiros. A confiança é sólida e a base de financiamento é diversificada. Os principais índices de liquidez e capital são muito confortáveis”, afirmam, em relatório, os analistas do Itaú BBA.
Ainda assim, a alta de juros também é uma preocupação no Brasil. Em pouco menos de um ano e meio, a Selic saltou da mínima de 2% ao ano para o atual patamar de 13,75% ao ano – nível que não era visto por aqui desde 2016.
E para o futuro, ainda não há sinais claros de queda nas taxas: o Banco Central foi mais duro do que o esperado no último comunicado, e a expectativa atual é que a Selic, a taxa básica de juros, volte a cair somente no segundo semestre.
Crise de crédito?
O mercado financeiro brasileiro não deve passar imune à escalada dos juros, e o principal afetado deve ser o crédito privado – o segmento de empréstimos concedidos às empresas. O movimento é semelhante ao aumento da inadimplência entre as pessoas físicas: pressionadas, as empresas têm maior dificuldade de honrar suas dívidas e seu perfil de crédito – que indica se ela é ou não uma boa pagadora – piora. No limite, a companhia pode dar um calote na dívida.
Na última sexta-feira, a agência de classificação de risco S&P Global deu o alerta de que as companhias latinoamericanas estão enfrentando uma crise de crédito mais apertada que na crise de 2008. No Brasil, a agência vê “leves sinais” de estresse, mas reforça preocupação com o que pode ser o início de uma crise de crédito no País.
O estopim veio com o caso de fraude na Americanas, em janeiro. Após encontrar “inconsistências contábeis” em seu balanço, a varejista entrou em disputa com seus credores, pediu recuperação judicial e acabou abrindo um precedente de desconfiança na concessão de crédito para empresas. Isso porque, apesar de ter sido um caso fora da curva, o calote adiciona insegurança em um ambiente que já seria desafiador por conta da alta de juros.
Os bancos, que estão entre os principais envolvidos na crise, avaliam que o caso da Americanas foi pontual, mas não deixam de reconhecer os desafios no mercado de crédito – especialmente para as companhias mais endividadas.
“Juros nesses patamares atuais pressionam o nível de despesa financeira das companhias, ainda que elas tenham um nível de alavancagem mais baixo. Acaba gerando uma pressão muito grande na despesa financeira”, avaliou Milton Maluhy Filho, CEO do Itaú, ao discutir os resultados da empresa no quarto trimestre. A Americanas reduziu o lucro do Itaú em R$ 719 milhões no período.
Maluhy reforçou que as empresas brasileiras estão mais saudáveis, com nível de alavancagem bem menor que o turbulento período entre 2015 e 2016. É possível, no entanto, que as particularidades de cada empresa sejam mais preocupantes que a fotografia geral.
Entre os casos que pipocaram após a fraude da Americanas, estão a Oi, que se prepara para mais uma recuperação judicial. Além dela, Light, Marisa e CVC estão em contato com consultores e assessores financeiros em uma tentativa de reestruturação de dívida.
“Temos sinais de uma situação de crédito complexa emergindo no Brasil. Embora no agregado a situação financeira das companhias esteja boa, existe um grupo não desprezível de empresas que têm um alto nível de alavancagem. Quando você põe isso na conta, tem muita empresa brasileira que trabalha pra pagar os juros da dívida. E isso tem impacto no PIB”, defendeu Luiz Parreiras, gestor de fundos multimercado e de previdência da Verde Asset, uma das gestoras mais reconhecidas do País, em entrevista ao Clube Invest.
Em sua última decisão de política monetária, o Banco Central reconheceu a desaceleração na concessão doméstica de crédito como um dos fatores que pode influenciar uma queda na taxa de juros. Mas ainda não há indicativo de que as pressões serão suficientes para mudar a trajetória dos juros no Brasil.
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Créditos
Beatriz Quesada
Repórter de Invest
Jornalista na cobertura de negócios e mercados há seis anos, é repórter na EXAME desde 2020. Tem passagens pela Rádio Band News FM e revista Capital Aberto.