O país das renováveis
A conta para conter a emergência climática já passa dos trilhões de dólares, e a mudança da matriz energética global, em direção às fontes renováveis de energia, responde pela maior parte do montante. Esse processo, iniciado com o Acordo de Paris, chega em 2024 a um momento crucial, em que, pela primeira vez, os países signatários do documento concordam em, não apenas realizar a transição energética, mas também colocar em movimento um plano faseado para abandonar os combustíveis fósseis – intenção oficializada ao final da 28ª Conferência das Partes, a COP28, evento climático anual das Nações Unidas, realizado em Dubai, Emirados Árabes, em dezembro do ano passado.
Na prática, isso significa acelerar os investimentos. Estima-se que, nos próximos cinco anos, mais capacidade de geração renovável será adicionada no mundo do que nos últimos 20 anos, sendo a meta triplicar a participação das fontes limpas nesse período. Trata-se de um esforço conjunto sem precedentes na história, que envolve esforços de governos, da iniciativa privada e da sociedade civil, além de um financiamento massivo que terá de ser absorvido pelo sistema financeiro, uma vez que o volume necessário de recursos para superar o desavio excede, e muito, a capacidade do setor público.
O Brasil, com toda a sua exuberância natural, está em uma posição privilegiada para se beneficiar dessa mudança, e liderar os esforços globais de combate às mudanças climáticas e a transição energética. De tudo que será investido no mundo, 10%, ou até mais, deve ser direcionado a projetos no País, de acordo com estimativas de especialistas. Essa oportunidade já vem sendo percebida pelo setor produtivo nacional, que embarca em grandes projetos energéticos por quase todas as regiões do país. Uma delas, no entanto, tem recebido atenção redobrada dos investidores e empreendedores: a região Nordeste, lugar de condições climáticas perfeitas para a produção de energia solar e eólica.
Diante de tamanho desafio e oportunidade, a EXAME organizou, em janeiro, uma série de conversas sobre as perspectivas para o avanço da energia renovável no Brasil. Participaram das discussões especialistas, executivos que trabalham pela energia renovável no Brasil, líderes e stakeholders envolvidos nas principais tomadas de decisão do setor produtivo, acadêmico e governamental. Essa reportagem especial traz os pontos principais das discussões, e os bastidores do evento, que reuniu a nata do setor energético brasileiro. Saiba tudo o que aconteceu nas páginas a seguir.
Transição energética passa por regulação, recursos e mobilização, dizem especialistas
Os tomadores de decisão, investidores, pensadores e representantes da sociedade civil têm dedicado cada vez mais tempo para encontrar soluções que coloquem de pé iniciativas que minimizem os danos ao planeta e deem celeridade ao processo de transição energética para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE).
O primeiro painel é sobre o Brasil como líder da Agenda 2030, com a participação de Alexandre Siciliano, chefe de Departamento da Área de Transição Energética e Clima do BNDES, Carlo Pereira, CEO do Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, com a mediação de Antonio Temóteo, repórter de macroeconomia da EXAME.
Além do potencial
Pereira, do Pacto Global, alertou para o fato de ser senso comum que o Brasil seja identificado pelo seu potencial em energias renováveis. No entanto, essa condição não deve ser tratada apenas como vocação natural por causa da grande disponibilidade de terras, sol, água e vento. É preciso que a sociedade se posicione e haja para que haja avanços, como aconteceu com o etanol desde o lançamento do programa governamental Proálcool, na década de 1970.
Hoje, graças a decisões de governo, detalha Pereira, o que se vê é o avanço gradual do uso do etanol, usado puro no abastecimento dos tanques dos veículos, mas também combinado com a gasolina (27%) e com o diesel (que caminha para o B15, com 15% na mistura, e plano de chegar a B20). “O desenvolvimento tecnológico para o etanol não é vocação natural, é uma decisão da sociedade civil, por isso é importante quebrar esse mito”, pontua.
A provocação do CEO do Pacto Global da ONU no Brasil é para que haja uma mobilização ampla, como o setor público, privado e sociedade civil, para que a pauta da energia renovável avance de fato no país.
Pereira lembra que, mais recentemente, tem sido possível ver uma corrida em torno do hidrogênio verde, com empresas relevantes fazendo alianças com players nacionais e internacionais. “Mas quando falamos de país, apesar de o governo estar avançando muito, ainda falta um pouco mais de ambição”, analisa.
[h2]Papel do arcabouço legal e financeiro[/h2]
Segundo Alexandre Siciliano, chefe de Departamento da Área de Transição Energética e Clima do BNDES, o desafio é encontrar caminhos para transformar as vantagens comparativas e competitivas do Brasil. Por exemplo, por meio da construção de arcabouço legal e financeiro, que transforme as vocações do país na pauta da energia renovável em soluções de curto, médio prazo.
“O grande desafio que temos é conciliar os mecanismos financeiro e regulatório”, sintetiza o representante do BNDES. Siciliano lembra das vantagens que os países europeus e os Estados Unidos levam nesse processo, já que contam com grande disponibilidade orçamentária e maturidade tecnológica. Esse quadro dá agilidade na oferta de subsídios.
No entanto, quando se trata de Brasil, segundo o chefe do banco estatal, “a gente tem de tirar um pouco de leite de pedra e tentar construir um arcabouço que use o mínimo possível de recurso fiscal e possa de fato explorar determinadas oportunidades de negócio que o país tem”.
O setor elétrico, como lembra Siciliano, tem um ótimo histórico, mas precisa avançar na agenda de modernização. “É um setor que traz a eletricidade como um grande insumo que pode potencializar as novas tecnologias, como o hidrogênio verde e a eletrificação na ponta, por meio da mobilidade elétrica”, lembra.
Hoje, o Fundo Clima, que passou por uma captação recente, conta com cerca de R$ 10 bilhões em recursos. O BNDES, segundo o executivo, tem discutido com o poder concedente formas de viabilizar condições que tornem a substituição energética para fontes mais limpas mais eficiente. Siciliano avalia que seja necessário desenhar soluções junto com o mercado que tragam mais eficiência para que na ponta, a redução gradual do custo seja sentida.
Arenas de discussão como a COP28, realizada no final do ano passado, reforçam o papel da transição energética como o principal caminho para conter a elevação da temperatura do planeta. Como reafirma o CEO do Pacto Global da ONU no Brasil, “a demanda está projetada e quase contratada”, com o compromisso assumido de triplicar a energia renovável e nuclear até 2030 para atender a necessidade da descarbonização. Hoje, 80% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do planeta vêm da geração de energia.
“É fundamental entender os desafios, os gargalos e atacar o problema. O debate está bastante pacificado quanto à necessidade e à oportunidade que temos por aí”, diz Pereira.
Brasil deve abandonar a teoria quando o assunto é política industrial verde
A transição energética tem sido apontada como uma das soluções de maior impacto para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Por isso, a temática da energia renovável é o centro de muitas discussões.
O segundo painel tem como tema a “Política Industrial Verde e Atração de Investimento”, com a participação de Elbia Gannoum, presidente executiva da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Renata Isfer, presidente executiva da Associação Brasileira de Biogás (Abiogás), e Jefferson de Oliveira Gomes, diretor de Inovação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), com a mediação de Natalia Viri, editora do Exame Insight.
A representante do setor eólica cita as dificuldades do setor nos últimos dois anos, um retrato da falta de calibragem entre oferta e demanda. A solução para transformar desafios em oportunidades, defende Elbia, é que a atividade passe a contar com uma política estruturante que permita alongar o horizonte de crescimento.
A presidente da Abeeólica lembra que até agora o setor “andou com as próprias pernas”. Depois de um aumento das contratações via mercado livre de energia, afetadas nos últimos anos pelo baixo crescimento da economia, “o que se vê agora é que o fôlego está acabando”, aponta. Apesar da desaceleração em parte da atividade, ainda há muito o que ser explorado nos próximos anos. É o caso da energia eólica offshore, que ainda depende de aprovação de lei, regulamentação para só então começarem a ser realizados os leilões de cessão de uso do mar, seguidos dos estudos ambientais e, finalmente, as licenças para o início da exploração.
Da teoria à prática
Elbia reforça que nunca houve tantas oportunidades quando se fala do papel do Brasil no desenvolvimento de projetos de energia renovável, mas lembra que chegou o momento de transformá-las em realidade.
A chamada “Nova Indústria Brasil”, apresentada recentemente pelo vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, ainda que com ressalvas, é a esperança de quem acompanha de perto a energia renovável no país.
O documento do governo tem como base do desenvolvimento econômico a inovação e a sustentabilidade por meio do apoio a pesquisas e a tecnologia nos mais diversos segmentos, com responsabilidade social e ambiental, segundo o texto apresentado.
“Já sabemos qual é o caminho, por isso agora é preciso olhar para o detalhe para avançar”, avalia Elbia, citando como exemplo o caso do hidrogênio verde, que ainda carece de regulamentação.
Potencial do biometano
Renata, da Abiogás, também está segura quanto ao potencial de crescimento dos projetos de energia renovável no Brasil. No caso do biometano, atualmente há 6 plantas em operação e outras 18 em processo de aprovação pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
A Abiogás projeta que o país chegará a 90 plantas até 2029, passando da produção diária atual de 417 mil metros cúbicos para cerca de 7 milhões de metros cúbicos.
Na análise de Renata, o biometano é uma alternativa para avançar com a pauta da descarbonização, em especial na agroindústria, que pode usar a produção como combustível em substituição ao diesel e como biofertilizante, integrante ao negócio o modelo de economia circular. Calcula-se, de acordo com a executiva, que o biometano tenha potencial para chegar a 120 milhões de metros cúbicos no Brasil – o dobro do que se usa atualmente de gás natural.
Apesar de todo o potencial para fontes renováveis, como o biometano, a presidente executiva da Abiogás, assim como a representante da Abeeólica, alerta para a necessidade de uma política direcionada ao setor. Ela cita os riscos de perdas que o Brasil pode ter, por exemplo, ao exportar matérias-primas e energia limpa e arcar com o custo elevado de importar produtos manufaturados de baixo carbono. “O Brasil tem toda a oportunidade na mão para sair dessa cilada”, diz Renata.
Consumo e tecnologia andam juntos
Gomes, da CNI, acredita que o ponto de partida para que o Brasil de fato avance na pauta seja olhar o setor como política de Estado, não como política de governo. O diretor da CNI aponta para outras demandas importantes. Entre elas, a construção de uma trajetória que contemple tanto as condições para o consumo quanto para atender ao crescimento da demanda, por exemplo, na parte de evolução das tecnologias.
“Por exemplo, um barco com energia solar na Amazônia precisa de alguém que faça a sua manutenção. Temos profissionais que façam isso naquela região?”, aponta o diretor de Inovação.
Gomes cita outro exemplo: o do hidrogênio. O risco de corrosão intergranular com o passar do tempo traz a necessidade de desenvolvimento de equipamentos mais resistentes para a geração de grandes potências. Por isso é tão importante a integração da cadeia de valor, lembra o diretor da CNI.
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Créditos
Rodrigo Caetano
Editor ESG
Trabalhou como repórter e editor nas principais publicações de negócios do país. Venceu os prêmios Petrobras e Citi Journalistic Excellence. Atualmente, lidera a editoria ESG da Exame e apresenta o podcast ESG de A a Z.
Paula Pacheco
Jornalista
Em mais de 30 anos de carreira, trabalhou principalmente com os temas da economia, com passagem por veículos como Estadão, Carta Capital e Estado de Minas/Correio Braziliense, além de colaborações para o UOL e CNN Brasil e projetos de brand