UNILEVER: Behring pode ter se precipitado ao fazer a oferta de 143 bi pela concorrente europeia / Brendan McDermid/ File Photo/ Reuters (Brendan McDermid/Reuters)
Da Redação
Publicado em 27 de fevereiro de 2017 às 09h35.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h33.
David Cohen
É mais do que um toque de Midas. Na mitologia grega, o rei da região da Frígia (na atual Turquia) ganhou do deus Dionísio o poder de transformar tudo o que tocasse em ouro. No caso vivido pelo fundo de investimentos 3G Capital alguns dias atrás, não foi sequer preciso tocar em nada. Bastou o sussurro de que o 3G, em associação com o bilionário Warren Buffett, estava interessado em comprar a Unilever e puff… criaram-se 27 bilhões de dólares.
Do dia 16 para o dia 17 de fevereiro, quando a oferta de compra se tornou pública, o valor de mercado da Kraft Heinz (a empresa do 3G e de Buffett que se fundiria com a Unilever) subiu cerca de 7 bilhões de dólares, para 117 bilhões; o da Unilever aumentou quase 20 bilhões, para 146,8 bilhões de dólares.
Como a fusão foi rápida e energicamente rejeitada pela direção da Unilever, mandaria a lógica que todo esse valor refluísse para as cotações originais. Mas o mercado financeiro opera por outros raciocínios. Os valores das duas empresas refluíram, mas bem menos do que haviam inflado. Uma semana depois do episódio, a Unilever valia 142,5 bilhões de dólares e a Kraft, 113,3 bilhões. Ou seja, dos 27 bilhões criados pelo sussurro de uma fusão, mais de 18 bilhões permaneceram agregados às companhias.
Faz algum sentido. No caso da Kraft Heinz, a oferta pode não ter dado em nada, mas evidenciou a disposição de partir para as compras. Especula-se que ela tenha 15 bilhões de dólares para gastar em algum outro negócio.
No caso da Unilever, a percepção é de que o susto pode ter acordado a gigante anglo-holandesa para a necessidade de entregar resultados de curto prazo melhores para os acionistas.
Em geral, um dos atrativos para o 3G comprar uma empresa é a crença de que, implementando a cultura criada pelo bilionário brasileiro Jorge Paulo Lemann, seja possível melhorar seus resultados rapidamente. Para ter uma ideia de como isso se aplicaria no caso da Unilever, basta comparar as margens de lucro operacionais das duas empresas: 14% da Unilever, 23% da Kraft, no ano passado. A direção da Unilever conseguiu rechaçar a oferta da Kraft, mas ficou claro que, se não melhorar seus números, ela corre o risco de virar presa na constante luta pela consolidação dos mercados globais.
O negociador do 3G
Esse sussurro capaz de criar, praticamente do nada, quase 20 bilhões de dólares em valor de mercado vem em grande medida dos pulmões de Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, os principais sócios do 3G, e de Warren Buffett, principal acionista do fundo Berkshire Hathaway. Mas as cordas vocais e a entonação dessa fala de Midas são de Alexandre Behring, sócio minoritário e executivo-chefe do 3G.
É dele a maior parcela de responsabilidade pela estratégia de expansão do grupo via compra de empresas. “Quando eu fui para Nova York [para cuidar do fundo montado por Lemann, Sicupira e Telles], eu tinha um mandato para fazer qualquer coisa, menos comprar empresas”, ele me disse numa entrevista no ano passado. Foi o que mais fez: seu grupo de associados perseguiu oportunidades e fisgou o Burger King, a Heinz, a Kraft.
Se tivesse dado certo, a união da Kraft Heinz com a Unilever teria criado a segunda maior companhia de bens de consumo do mundo, atrás da Nestlé. A oportunidade era fantástica: com a votação que definiu a saída do Reino Unido da União Eurpeia, a desvalorização da libra deixou as empresas britânicas entre 15% e 20% mais baratas.
Pela lei britânica, uma nova proposta para adquirir a Unilever só pode ser feita depois de seis meses. É pouco provável que aconteça, dada a repulsa veemente da primeira tentativa. Mas ainda menos provável é que a ousadia de Behring seja contida: com dinheiro na mão, outra potencial parceria com Buffett e tantas empresas ainda fragilizadas pela crise econômica, há muitas possibilidades de negócio.
Alexandre Behring da Costa, ou simplesmente Alex, um carioca que vai completar 50 anos este ano, é um dos principais representantes da cultura de negócios estabelecida por Lemann e burilada por Telles e Sicupira. Sua história é quase um conto de fadas para jovens ambiciosos, e só não tem final feliz porque, para Behring, cada final é só a chance de começar de novo.
Behring é formado em engenharia eletrônica pela PUC do Rio de Janeiro. Ainda na faculdade, começou a fazer estágio no Citigroup, e trabalhava com redes internas de informação. Quando o então chefe de tecnologia para a América Latina resolveu deixar o grupo e montar sua própria empresa, chamou-o para ajudá-lo com programação. Depois de um ano, Behring acabou se tornando sócio da Modus OSI Technologies, em 1988.
A empresa prestava serviço para vários bancos e ia bem. Mas o ritmo de crescimento, satisfatório para o sócio 30 anos mais velho, era lento demais para um jovem ambicioso que começava a se encantar mais com a parte de negócios do que com a parte técnica do trabalho.
Em 1993, aos 25 anos, Behring vendeu sua participação ao sócio e foi cursar um MBA nos Estados Unidos. Destacou-se a ponto de tornar-se um Baker Scholar (aqueles que ficam entre os 5% melhores da turma), sem perder o tom autoderisório típico do humor carioca. Um exemplo: “Eu tinha um grande orgulho de ter pago o curso do meu próprio bolso, até que percebi que todo mundo ali tinha arranjado bolsa de algum lugar”, conta.
Logo no primeiro ano, conseguiu um estágio no disputado escritório do banco de investimentos Goldman Sachs – em parte porque listou entre suas atividades extracurriculares que havia feito pólo aquático no clube Botafogo, e o chefe de recrutamento do Goldman para o programa, um brasileiro, havia tido o mesmo treinador que ele, no mesmo esporte.
O Goldman Sachs é tido como um dos lugares mais competitivos e meritocráticos do mundo. Behring saiu com a impressão de que não era tão competitivo e meritocrático quanto ele gostaria. Nessa época, Beto Sicupira, que também fazia um curso em Harvard para donos de empresas, apresentou um case do GP, o fundo precursor do 3G, em sua classe. Depois, um professor o elogiou para Beto, e pouco tempo mais tarde veio o convite para trabalhar no grupo.
Behring começou como analista do GP em 1994. Novamente, em um ano virou sócio. E se envolveu com o investimento em ferrovias, na época da privatização. Resultado: quando a compra da RFFSA se concretizou, ele foi escolhido para tocar o negócio – rebatizado como América Latina Logística, ou ALL.
Nos primeiros anos na nova empresa, Behring e sua equipe promoveram uma revolução. Sua principal obsessão era com métricas – para descobrir lacunas de eficiência que poderiam ser fechadas. Quase todos os funcionários tinham seu quadro com metas exposto para toda a empresa. Na época, em uma reportagem para a revista EXAME, descrevi que Behring tinha metas inclusive em casa.
Esse estilo implementado por Behring na ALL é o mesmo que vem guiando a expansão do 3G pelo mundo. Isso, e o corte brutal de custos, com orçamento base zero (uma técnica de discutir as necessidades de cada departamento em vez de repetir os números do ano anterior) e corte de postos de trabalho (foram 13.000 desde a fusão entre a Kraft e a Heinz, em 2015).
É verdade que a receita na ALL desandou, mas é difícil precisar se isso ocorreu, como dizem os detratores, porque os sócios tinham mentalidade de curto prazo e os investimentos de expansão ficaram aquém do necessário ou se, como dizem os defensores, lidar com o governo é estar sempre à mercê de mudanças de regras e dificuldades políticas que minam qualquer estratégia de negócio.
Quando Behring deixou a ALL foi convidado a cuidar do 3G Capital com o tal mandato para fazer qualquer coisa, menos investir em ativos ilíquidos, como empresas. Como isso acabou virando sua atividade principal?
“No nosso sistema, quanto melhor você se desempenha, mais autonomia você tem para dizer o que você quer fazer”, afirmou Behring em nossa conversa do ano passado. “Mas você tem que botar o seu dinheiro onde está a sua voz.” Proporcionalmente ao seu capital, Behring investiu mais do que os sócios majoritários na compra do Burger King.
O que saiu errado?
Até poucos dias atrás, o histórico de compras de Behring – ou, para ser mais exato, do 3G – era tão impecável quanto suas notas no MBA de Harvard. O que deu errado no caso da Unilever? A rigor, não muito. É comum que empresas se esbarrem, se testem, demonstrem algum interesse uma pela outra, e nunca fiquemos sabendo. Um currículo recheado apenas por sucessos é só a parte visível do iceberg: os negócios não realizados, na maioria das vezes, ficam abaixo da linha do mar.
Pode-se dizer que a presa era maior do que o predador, uma dificuldade adicional. Mas a presença de Buffett entre os compradores tornaria essa diferença de tamanho uma irrelevância. Se era essencial para viabilizar a compra, Buffett foi também o ponto fraco para sustentá-la. Como tradicionalmente ele é avesso a forçar a barra com ofertas hostis, e como a direção da Unilever demonstrou ojeriza pela fusão, o negócio estava fadado a desmilinguir.
Segundo uma reportagem do Financial Times, o caso todo resultou de uma certa afobação de Behring. Ele teria interpretado uma resposta de Paul Polman, CEO da Unilever, como interesse numa possível fusão (segundo a reportagem, Polman acreditava que Behring estava falando de sua divisão de margarinas).
Quando a oferta chegou, num encontro posterior (143 bilhões de dólares pela Unilever), foi rejeitada categoricamente, no mesmo instante. Behring ficou surpreso, segundo o FT. Assim que ele saiu, Polman contratou advogados e consultores para ajudá-lo a montar sua defesa. Quando a oferta vazou, anunciada por um blog do FT, a Unilever foi ágil em confeccionar uma resposta ríspida, citando uma falta de mérito na proposta, tanto “financeiro como estratégico”.
A contra-ofensiva da Unilever chegou ao ponto de pressionar Martin Sorrell, CEO da agência de publicidade WPP (que tem a conta da Unilever), a remover a Finsbury, uma agência do grupo, do serviço de relações públicas que estava prestando para Kraft Heinz sobre a fusão.
A decisão de retirar a oferta, segundo o FT, foi tomada em conjunta por Lemann e Buffett depois de uma carta de Polman detalhando sua hostilidade à fusão. Os dois bilionários preferiram evitar uma batalha pública.
Na lenda de Midas, o rei percebe que fez uma bobagem ao pedir o toque de ouro – porque não conseguia se alimentar e até sua filha, ao beijá-lo, virou uma estátua dourada. Ele então pediu que Dionísio lhe retirasse o poder. No caso da Kraft Heinz, o mais provável é que Behring apenas dirija seu sopro para outro alvo.