ALI E SEU TREINADOR ANGELO DUNDEE: cercar-se dos melhores é uma das lições do sucesso do boxeador / Action Images / MSI/File Photo/ Reuters
Da Redação
Publicado em 6 de junho de 2016 às 10h41.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h42.
Olhando com cuidado, nenhum mito é perfeito, toda história tem mais nuanças do que a versão que entra para a história. Assim, Muhammad Ali não era o autor da maioria dos pequenos poemas com que se autopromovia e provocava os adversários (seu treinador, alguns repórteres esportivos, um comediante, várias pessoas o ajudavam). Nem jogou fora sua medalha olímpica após um bar em um bairro racista ter se recusado a servir-lhe refrigerante (ela na verdade foi roubada, quando ele a deixou sem supervisão). Tanto melhor. Histórias nuançadas são mais complexas, mais humanas. E, se suas lições são menos cristalinas, são também mais ricas – e mais “pé no chão”.
A extraordinária trajetória do boxeador Muhammad Ali, morto no dia 3 de junho por complicações da doença de Parkinson, tem pelo menos nove dessas lições, de forças que podem ser aplicadas na carreira e na vida.
1- Autopromoção
Ali era um mestre do marketing pessoal. Exibia uma autoconfiança exacerbada, que era vista por muita gente como arrogância, ou como sinal de medo dos adversários. De fato, ele mais tarde confessou que em sua primeira disputa pelo título mundial, em 1964, tinha medo de Sonny Liston, o então campeão mundial, tido como imbatível. As bolsas de apostas o apontavam como um azarão (na proporção de sete contra um). Mas isso não o impedia de se autopromover. Vivemos hoje num tempo em que é comum as pessoas elogiarem a si mesmas – quase ninguém se lembra do ditado “elogio em boca própria é vitupério”. Ali foi um precursor dessa prática. Mas seu marketing pessoal tinha uma diferença, que ele expunha com clareza: “não é se gabar, se você consegue sustentar suas palavras com atos”.
2- Garra
Muhammad Ali entrou em contato com o boxe aos 12 anos, quando sua bicicleta foi furtada e ele quis aprender a lutar para bater nos ladrões (que nunca encontrou). Seu primeiro treinador diria que aquele menino era franzino, meio desajeitado, mas ele logo percebeu que era alguém muito difícil de ser desencorajado, “de longe o garoto mais disciplinado para treinos que eu jamais encontrei”. No livro Mindset, a psicóloga Carol Dweck afirma que, naquela época, especialistas em boxe se baseavam em medidas físicas para identificar os “talentos naturais”: tamanho do punho, alcance do braço, expansão do peito, peso. “Muhammad Ali não passou em nenhum desses testes.” Ele não nasceu destinado a ser um boxeador, tornou-se um campeão por sua própria força de vontade.
3- Cercar-se dos melhores
Aos 15 anos, Ali ficou sabendo que o famoso treinador Angelo Dundee estava em sua cidade. Foi até o hotel em que ele estava hospedado e interfonou para seu apartamento, dizendo mais ou menos o seguinte: “Olá, eu sou Cassius Clay, campeão amador de Louisville, Kentucky, e vou ser campeão mundial dos pesos pesados. Estou no lobby. Posso subir?” Claro, Ali também se ligou ao controverso promotor Don King, um ex-presidiário de táticas quase mafiosas que o convenceu com o argumento de que ele devia ser gerido por um negro, não por brancos. Mas a ideia geral é que, para chegar ao topo, é preciso ligar-se aos melhores, ser capaz de convencer os melhores a trabalhar com você.
4- Inovação
Se não tinha o tipo físico mais adequado para o boxe, Ali simplesmente reinventou o esporte. Ele mudou o modo como o boxe é praticado. Antes dele, especialmente os pesos pesados ficavam no centro do ringue, parados, trocando pancadas. Ali introduziu o jogo de pernas e a esquiva. Muitos boxeadores e comentaristas se queixavam que ele não ficava no lugar para enfrentar o adversário “como um homem”. Em vez disso, Ali levava a luta para as cordas. Esquivava-se dos golpes com um jogo de corpo. Sua inovação era também uma afirmação de sua identidade. Poucos atletas poderiam se dar bem com sua postura de manter os punhos na linha da cintura, em vez de protegendo o queixo, ou sua técnica de inclinar o corpo para trás ou para os lados, deixando o soco adversário passar raspando por cima de seu ombro. Isso só dava certo para Ali por causa de sua extrema velocidade.
5- Resiliência
Quando voltou aos ringues depois de sua ausência forçada (por não aceitar a convocação para a guerra do Vietnã), Ali surpreendeu a todos com uma nova tática, contra o então invicto lutador Joe Frazier. Em vez de fugir, passou a aceitar os socos. Usava as cordas para absorver parte da potência dos golpes, mas dissipou todas as dúvidas de que pudesse aguentar pancadas. Sabia que bater também cansa – uma descoberta que o levou à vitória contra George Foreman, no Zaire, em 1974, quando o adversário começou a duvidar de si mesmo e já não o atingia com a mesma força. Dez anos antes, às vésperas de seu embate contra Sonny Liston, precedido por dezenas de entrevistas em que provocava o rival, um repórter lhe perguntou o que ele faria quando Liston o derrubasse, depois de toda aquela falação. “No dia seguinte vou estar na rua dizendo que nenhum homem conseguiu me derrotar duas vezes”, respondeu Ali. “Vou estar berrando por uma revanche.”
6- Integridade
Ali aceitou sacrificar seu título mundial, sua carreira, arriscou até ir para a prisão em nome de seus princípios, quando rejeitou a convocação para a Guerra do Vietnã (ele chegou a ser condenado a cinco anos de cadeia, mas apelou e, anos depois, venceu a disputa judicial). Durante o tempo em que o comitê nacional de boxe anulou seu título e sua licença para lutar, ele se sustentou com palestras em universidades, ganhando uma fração do que poderia ter faturado no auge de sua juventude. Antes disso, ele já havia se convertido num símbolo, quando se converteu ao islamismo e rejeito seu nome de batismo, Cassius Marcellus Clay, como “herança do escravismo”. Em sua nota de pesar pela morte de Ali, Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, louvou sua luta em prol dos direitos dos negros, comparando-o a Martin Luther King e a Nelson Mandela.
7- Propósito
Ali sempre soube se vincular a um propósito. A luta contra o racismo. A luta em prol da liberdade religiosa. Depois a luta contra a doença de Parkinson, com a qual foi diagnosticado há três décadas, em parte provocada pelas pancadas que recebeu. Recentemente, Ali condenou o pré-candidato republicano Donald Trump por sua proposta de barrar a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Às vezes ele usou a causa de forma mesquinha, para se autopromover – como quando chamou Joe Frazier e, posteriormente, George Foreman, de negros que faziam o jogo dos brancos, arranjando compreensíveis inimizades. Mas Foreman, anos depois, passou a admirá-lo. Quando ele ergueu a tocha olímpica em 1996, nos Jogos de Atlanta, com os braços tremendo por causa da doença, Foreman afirmou: “Ele realmente se elevou para mim quando fez isso. Alguém com uma doença como Parkinson, em geral quer ficar em casa e se esconder. Não quer que ninguém o veja daquele jeito.” Ali nunca teve vergonha de se mostrar por inteiro. Nem quando se considerava o “mais belo dos atletas”, nem quando estava abatido pela doença degenerativa. Em uma entrevista para a revista Playboy, em 1975, Ali disse que gostaria de ser lembrado como “um grande campeão de boxe que se tornou um pregador e campeão de seu povo. E eu nem vou ficar chateado se as pessoas esquecerem quão bonito eu era”.
8- O jogo psicológico
Ali sabia como poucos irritar o adversário. Suas declarações petulantes criavam um clima de guerra que ajudava a chamar a atenção para o esporte. Mas, além disso, desestabilizavam o adversário. No ringue com George Foreman, no Zaire, Ali, aos 32 anos, falou para o rival, de 25: “Você ouviu falar de mim desde que era jovem. Você me segue desde criança. Agora você tem de me encarar, o seu mestre”. Para Joe Frazier, depois de tomar um soco, Ali balançou a cabeça e disse: “Deus quer que você perca hoje” (ao que Frazier respondeu: “diga a seu Deus que ele está na casa errada hoje”).
9- O título ao alcance de todos
Ali foi um homem de muitas conquistas e reconhecimentos, um dos atletas mais amados em todo o mundo (em uma votação recente, ficou atrás apenas de Pelé). Mas um de seus títulos mais importantes está ao alcance de cada um de nós. Embora tenha dito à revista People que gostaria de ter dado mais atenção aos filhos, a nota de pesar de sua filha Rasheda sintetiza sua importância: “papai, meu melhor amigo e herói”.
(David Cohen)