Empreendedores estão transformando os serviços que prestam no dia a dia para desenvolver soluções que ajudem na crise (Carlos FABAL/AFP)
Repórter de Negócios
Publicado em 10 de maio de 2024 às 15h45.
Última atualização em 15 de maio de 2024 às 11h11.
A crise gaúcha com os temporais que assolam o estado nos últimos dias tem diversas camadas e impacta de formas variadas. Da luta intensa para fazer o resgate de pessoas e animais a encontrar espaços para realocá-los a logística das doações. No estado, mais de 1,9 milhão de pessoas foram afetadas pelas enchentes, 70.000 estão em abrigos e 337.000 desalojados.
Em meio ao caos, o ecossistema de inovação gaúcha, também afetado por todos os eventos, tem usado os próprios recursos e conhecimentos para tentar amenizar as dores. De acordo com dados da plataforma Distrito, o estado conta com 956 startups ativas, mais da metade delas sediadas na capital.
Para Muçum, no Vale do Taquari, a startup Reseta levou um sistema de purificação de água que funciona como um filtro e usa membrana com microporos para evitar a entrada de impureza, como vírus e bactérias.
A tecnologia foi instalada no Hospital Beneficente Nossa Senhora Aparecida e transforma a água turva, oriunda de um poço artesiano, em cristalina, ao filtrar até 1000 litros de água por hora. “Em menos de um dia, nós conseguimos purificar toda a água da caixa d´água do hospital”, Augusto Hemkemeier, sócio-fundador da startup, que atua na área de tratamento de efluentes.
A Reseta nasceu em 2019 e é incubada no Parque Tecnológico da da Universidade de Passo Fundo, cidade a 140 km de Muçum. “Nós tínhamos saído no último domingo para levar alimentos nessas regiões mais atingidas pela enchente e observamos a oportunidade de causar um impacto positivo lá porque vimos o pessoal recolhendo uma água das torneiras cuja aparência, nitidamente, não viabilizaria o seu uso potável”, diz.
Para instalar o equipamento, a startup foi atrás de parceiros como a varejista de construção civil Rede Constru Útil, que ofereceu mangueiras, tubulações e caixa d 'água. O custo ficou em torno de R$ 15.000.Segundo o fundador, a startup está montando mais dois filtros - ainda sem destino certo -, usando de recursos próprios e de parceiros. Um deles, menor, com capacidade entre 50 e 70 litros, deve ser dedicado a abrigos ou comodidades isoladas.
Em Passo Fundo, surgiu também uma outra iniciativa, o "Pedidos de Ajuda POA + Reg. Metropolitana", pelas mãos do casal Marina Barbosa Grando e Raul Aita Artusi, donos do escritório de desenvolvimento urbano Oasi. Eles criaram uma plataforma para conectar quem precisava de resgate a quem estava prestando o serviço, com informações que ficavam disponíveis em mapas das regiões. Ao longo dos dias, a página foi acessada por mais de 55.000 pessoas, entre pedidos, checagem de voluntários e quem estava acompanhando os dados.
“Um caso que me marcou foi o de uma mulher grávida que havia solicitado o resgate. Ela veio ganhar o filho dois ou três dias depois de ter sido resgatada”, afirma Artusi. As demandas mais fortes vieram da região metropolitana, como Porto Alegre, Canoas e Eldorado do Sul. “Espero que essa plataforma não seja mais útil“, diz, em referência à diminuição dos pedidos de resgate no estado.
Ao casal, foram se juntando outros profissionais ao longo do dias, tanto do Rio Grande do Sul, como de outros estados como Paraná e São Paulo. Um caminho de colaboração que tem sido visto em vários momentos durante a crise no estado.
É o caso do SOS RS, plataforma criada no último sábado para organizar informações sobre disponibilidade de abrigos, em torno de 300 atualmente, e necessidades de doações específicas de cada espaço. Por trás da iniciativa, estão profissionais como Pedro Schanzler, da Poatek, startup de desenvolvimento de softwares, Klaus Riffel, fundador e CEO da legaltech Doc9.
A iniciativa já reúne mais de 1.000 voluntários, ajudando tanto na parte de tecnologia como no dia a dia das operações nos abrigos, em times que cuidam de mantimentos e de atenção às crianças. “Existe uma demanda que está caindo no resgate e nós estamos direcionando as pessoas que não estão mais fazendo resgate para serem voluntárias na SOS RS”, diz Schanzler.
A organização está localizada no Tecnopuc, centro de inovação em Porto Alegre que se transformou no ambiente de recepção e suporte às startups no estado. Com a inundação do Instituto Caldeira e do 4º Distrito, bairro conhecido por sediar outras startups, o parque de tecnologia acolheu os empreendedores e os seus times.
Lá, está a WebMed, startup que acaba de lançar “ShortMed SOS Enchentes”, serviço de triagem online e encaminhamento médico para vítimas da tragédia. A plataforma deve contar com mais de 300 médicos e especialistas de todo o país, como pediatras, dermatologistas e psiquiatras. O atendimento é gratuito e os pacientes podem ter acesso a atestados, receitas e medicamentos.
“Com a ferramenta, pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social poderão ser atendidas nos abrigos de forma online ou presencial de forma rápida e simples, podendo ser imediatamente encaminhada a uma instituição de saúde, caso seja necessário”, afirma Luciano Lorenz, CEO e fundador da WebMe.
Com toda a situação no estado, a startup Vakinha, plataforma de crowdfunding, criada em Porto Alegre, em 2009, registrou um recorde no número de doações: R$ 65 milhões até o momento. A ação foi anunciada como “A Maior Campanha Solidária do RS” e criada em parceria com o humorista Badin Colono e o programa de humor Pretinho Básico, transmitido desde 2007 pela Atlântida, a emissora FM de maior audiência do RS. Ambos, já tinham colaborado em outras ocasiões com a plataforma.
Antes dos números superlativos, a própria startup sofreu com os impactos violentos da água. “A operação está bem afetada, por conta das enchentes o nosso escritório está inacessível. Para se ter ideia, o subsolo do nosso prédio está completamente inundado. Estamos localizados na região próxima ao rio e ao arroio dilúvio, então a situação é crítica. Ainda não sabemos quando vamos conseguir voltar”, afirma Luiz Felipe Gheller, CEO da operação.
O time da empresa teve que ser resgatado por barcos do prédio em que fica a pouco mais de 2 quilômetros de distância.
Em outra frente, está a Codex, startup que atua em projetos de dados e geotecnologia para prevenir catástrofes. A empresa já atuou em outras partes do país, como Rio Branco, no Acre, e Manaus, no Amazonas, em episódios semelhantes. “Nós temos apoiado no processo de simulação de eventuais áreas de inundação e potenciais perdas. Acompanhamos de perto, por exemplo, a situação da barragem 14 de Julho, que é uma das barragens de maior preocupação do governo do estado em caso de rompimento”, afirma Venícios Santos, diretor de negócios da startup.
Na lista, entram ainda os impactos em instituições de ensino, equipamentos públicos e de saúde. A partir das informações, a Codex consegue criar relatórios para dimensionar as perdas decorrentes das inundações, essenciais para definir os recursos para a reconstrução.
A série de reportagens Negócios em Luta é uma iniciativa da EXAME para dar visibilidade ao empreendedorismo do Rio Grande do Sul num dos momentos mais desafiadores na história do estado. Cerca de 700 mil micro e pequenas empresas gaúchas foram impactadas pelas enchentes que assolam o estado desde o fim de abril.
São negócios de todos os setores que, de um dia para o outro, viram a água das chuvas inundar projetos de uma vida inteira. As cheias atingiram 80% da atividade econômica do estado, de acordo com estimativa da Fiergs, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul.
Os textos do Negócios em Luta mostram como os negócios gaúchos foram impactados pela enchente histórica e, mais do que isso, de que forma eles serão uma força vital na reconstrução do Rio Grande do Sul daqui para frente.