Frigoríficos: No estado do Rio Grande do Sul, um terço dos casos confirmados da doença, no fim de maio, eram trabalhadores dessas instalações (Agustin Marcarian/Reuters)
Da Redação
Publicado em 23 de junho de 2020 às 13h20.
Última atualização em 23 de junho de 2020 às 14h18.
Na segunda quinzena de maio, após quatro membros de sua família terem contraído o novo coronavírus, a dona de casa Sônia* decidiu que deveria procurar ajuda. Moradora de São Miguel do Guaporé, em Rondônia, ela estava preocupada com a disseminação do vírus na cidade de 23 mil habitantes.
Em comum, os familiares tinham o emprego no frigorífico da JBS no município. Sônia resolveu, então, denunciar ao sindicato da categoria a escalada dos números de casos de Covid-19 na empresa. “Estava todo mundo adoecendo e ninguém fazia nada, a empresa não parava nem prestava socorro. E a gente não sabia o que era. Entrei em pânico. Foi a única solução [denunciar] que encontrei”, relata.
O filho mais velho de Sônia foi o primeiro da família a sentir os sintomas da doença. Começou com uma gripe, que acometeu muitos colegas da empresa ao mesmo tempo. “Nesse momento, eu já fiquei em alerta porque a epidemia já estava rodando o mundo inteiro. Mas, para eles, no frigorífico, era só uma gripe”, afirma a dona de casa.
A mãe conta que o rapaz teve febre e chegou a desmaiar no banheiro, enquanto se arrumava para o trabalho. “Ele sentiu muita fraqueza. Foi para o hospital e tomou medicação, mas no dia seguinte já estava dentro da empresa de novo. Ele não foi afastado”, conta. Na mesma semana, ele e colegas só conseguiram um atestado após fazer o teste da Covid-19 por iniciativa própria. “A empresa não deu assistência para ninguém”, diz Sônia.
Esse cenário já se repetia em diversos frigoríficos pelo país: no início de maio, a Procuradoria-Geral do Trabalho (PGT) anunciou inspeções em mais de 60 frigoríficos em 11 estados, entre eles Rondônia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Segundo relatório do Serviço de Inspeção Federal (SIF), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), oito abatedouros paralisaram suas atividades durante o mês em decorrência da propagação da Covid-19.
Para alívio de Sônia, no dia 27 de maio, a Justiça do Trabalho determinou a suspensão imediata das atividades da JBS em São Miguel do Guaporé. Além de seus dois filhos, a nora e a irmã de Sônia também contraíram a doença. “Fiquei com muito medo e preocupada. Tenho problema de saúde, pressão alta. E eu cuido do meu neto de 2 anos, filho da minha nora e do meu filho, que foram infectados”, diz.
Até o dia 17 de junho, a cidade tinha seis mortes e 617 casos de Covid-19 confirmados, 280 ainda monitorados pelas autoridades de saúde. Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), ao menos 260 dos casos confirmados são de trabalhadores do frigorífico. Para Sônia, não há dúvidas que a planta da JBS, que não reduziu o quadro de funcionários por turnos no período de pandemia, foi o propulsor da contaminação em São Miguel do Guaporé: “O frigorífico aqui não deu trégua. É de segunda a sábado”.
Na primeira semana de junho, a Justiça do Trabalho de Rondônia decidiu que a empresa só poderia retomar as atividades frigoríficas após a adoção de medidas de segurança, como a testagem em massa de seus trabalhadores. A empresa anunciou, no dia 5 de junho, que reabriu a unidade após realizar “uma triagem rigorosa em 100% dos seus funcionários”.
A 300 quilômetros de São Miguel do Guaporé, o município de Chupinguaia (RO) registrou o aparecimento da Covid-19 na primeira semana de junho. Em quinze dias, a prefeitura contabilizou nove casos da doença – apesar de pequeno, o número assusta a população, estimada em 11 mil habitantes em 2019. “Aqui parece a cidadezinha do pica-pau: se fechar alguma coisa, fica só a bolinha de palha correndo pela cidade”, brinca a faqueira Fernanda Fernandes, de 32 anos, que trabalha no setor de abate da Marfrig — uma das maiores do setor frigorífico no país, e que registrou um caso da doença em seu alojamento em Chupinguaia.
O medo dos moradores é que a propagação do vírus venha a colapsar um sistema de saúde já frágil na região, relata Fernanda. “Principalmente por ser uma cidade pequena, não ter recursos de saúde. Você tem que sair da cidade para poder ter um atendimento melhor. Aqui é uma cidade muito pequenininha, só tem postos de saúde, não tem um grande hospital que tenha todos os recursos. Uma contaminação muito grande aqui seria bastante complicada.”
Para evitar contágio rápido, a Marfrig afastou pessoas que tiveram contato com o funcionário exposto ao vírus, caso de Fernanda. “Mas, antes de saber que eu poderia ter tido contato com coronavírus, trabalhei o dia inteiro na empresa”, diz a trabalhadora, que ficou em casa por 15 dias até conseguir fazer o teste, que deu negativo.
E ainda que a empresa esteja aplicando medidas preventivas, como a orientação do distanciamento de 1,5 metro, a profissional relata que ainda existe receio entre os trabalhadores, já que muitos trabalham no mesmo ambiente. “São mais de 80 funcionários no meu setor, e queira ou não queira, não ter contato físico é impossível quando estamos trabalhando”, afirma. No último mês, a produção nem o ritmo diminuíram: “Não parou: são mil bois por dia, 2 mil peças desossadas… Continua a todo vapor, não para não”.
O potencial de disseminação do vírus na região aumenta pela quantidade de trabalhadores da Marfrig que vivem em outros municípios. O caso ocorrido no alojamento da empresa, por exemplo, não entrou nas estatísticas oficiais de Chupinguaia porque o funcionário mora no alojamento da empresa, mas fez o teste no município onde vive com a família. Trabalhadores de cidades diferentes da região, como Vilhena e Alta Floresta d’Oeste, passam a semana nos três alojamentos da empresa e voltam para suas casas em ônibus fretados, às sextas.
Em Cianorte, município de 82 mil habitantes localizado no noroeste do Paraná, as atividades do frigorífico Avenorte foram suspensas por 14 dias após uma decisão da Justiça do Trabalho, no dia 22 de junho. Na liminar, o juiz Rodrigo da Costa Clazer pontua que, de 19 de maio a 9 de junho, 193 trabalhadores do abatedouro tiveram diagnóstico positivo para a Covid-19. O número representa 62% dos casos de contaminação pelo novo coronavírus na cidade.
O deslocamento de trabalhadores de diversos municípios para cidades com sedes de frigoríficos é uma característica do setor em todo o país – e isso tem contribuído para a propagação do vírus por cidades do interior, pontua a procuradora Priscila Dibi Schvarcz, do MPT no Rio Grande do Sul. Os números da região Sul, que abriga a maior quantidade de abatedouros do país, chama atenção: em Concórdia, no oeste catarinense, trabalhadores de frigoríficos são mais da metade do número de casos de Covid-19 da cidade.
No estado do Rio Grande do Sul, um terço dos casos confirmados da doença no estado, no fim de maio, eram trabalhadores de frigoríficos. Dos 30 municípios gaúchos que lideram o número de Covid-19 no estado, 28 são sede de frigoríficos ou cedem trabalhadores para as empresas, informou a procuradora do MPT. “O setor tem se apresentado como uma importante mola propulsora de casos, importante para a dispersão e interiorização da Covid-19 no Rio Grande do Sul”, sentencia a procuradora do trabalho.
No estado, a situação mais crítica ocorreu no município de Lajeado. A cidade de 84 mil habitantes contabilizou 1.585 casos da Covid-19 até o dia 22 de junho e registrou 21 óbitos. A incidência de casos no município, de 1.873,5 a cada 100 mil habitantes, é bem mais alta que a da capital gaúcha, Porto Alegre, onde o índice é de 114,2 casos a cada 100 mil habitantes.
Devido aos surtos em frigoríficos, houve testagem em massa nas empresas: só na sede da BRF foram contabilizados 959 casos após a realização dos exames. Na unidade da empresa Minuano, foram 432 casos positivos para o novo coronavírus. No momento, a prefeitura monitora 12 casos ativos.
Uma reportagem do site O Joio e O Trigo apontou que ao menos 80% dos frigoríficos de inspeção nacional estão localizados em cidades com menos de 100 mil habitantes, e 42% deles, em cidades com menos de 30 mil habitantes. O levantamento mostra também que mais de 90% dos municípios brasileiros com frigoríficos de inspeção federal têm casos de Covid-19.
Dados mais recentes do boletim epidemiológico do Rio Grande do Sul informam que o estado ainda acompanha 24 surtos em frigoríficos e laticínios, que somam mais de 26,3 mil trabalhadores. Entre eles, mais de 3 mil tiveram o diagnóstico confirmado laboratorialmente. Foram registrados quatro óbitos de trabalhadores.
Recomendações foram expedidas para o setor quando ainda não havia casos da doença registrados nas empresas. “Mesmo antes desses casos aparecerem no Brasil, nós estávamos acompanhando esta situação porque o MPT acompanha o setor em razão de outros problemas que são característicos, como doenças osteomusculares”, explica a procuradora do MPT-RS.
No dia 31 de março, por exemplo, um documento elaborado pelo MPT apontou quais medidas preventivas específicas deveriam ser tomadas pelos abatedouros brasileiros. A orientação foi dada devido ao impacto da Covid-19 observado em empresas do setor nos EUA. No país, grandes empresas como Cargill e Smithfield Foods tiveram que fechar fábricas por causa de surtos da doença.
O CDC, agência que monitora dados epidemiológicos nos EUA, informou que quase 5 mil funcionários de frigoríficos haviam sido infectados até o final de maio no país, mas a ONG Food & Environment Reporting Network estima que esse número, na verdade, pode ter ultrapassado 17 mil trabalhadores e mais de 60 mortes.
No último domingo (21), a China também suspendeu as importações de aves de uma das fábricas da Tyson Foods devido aos casos de Covid-19 entre os funcionários. A Tyson, a maior empresa de carne dos EUA em vendas, está analisando o relatório de suspensão chinês, focado em uma fábrica de frango em Springdale, Arkansas.
No Brasil, a atividade entrou no rol de serviços essenciais pelo decreto nacional assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, em março. Segundo o MPT, a recomendação pedia que as empresas considerassem o isolamento de trabalhadores, quando possível para manter a produção.
Além disso, o órgão orientava os frigoríficos a adotar e ampliar as escalas de trabalho para reduzir fluxos e o número de trabalhadores por turno. A reorganização dos horários de entrada e saída dos funcionários também era uma instrução do órgão.
O MPT, no entanto, encontrou relutância das empresas para efetivar as ações. “Em um primeiro momento, tivemos uma resistência bem grande do setor justamente porque supunham que não existiam casos ainda e que as medidas eram um tanto quanto exageradas e inexequíveis”, lembra a procuradora.
Ela diz que a dimensão que os casos ganharam poderia ter sido evitada com busca ativa de casos pelas empresas e afastamentos precoces. “Não tínhamos nenhuma planta ainda com surto, não existia nenhuma dessas situações que hoje identificamos quando fizemos a primeira recomendação.”
Para Priscila, era questão de tempo até que os primeiros casos aparecessem. “Era uma bomba-relógio”, diz a procuradora. “É um grande quantitativo de trabalhadores, que desempenham suas atividades de forma muito próxima. E, fora da linha de produção, existem muitos pontos de aglomeração que facilitam a dispersão da Covid-19”, completa. Além disso, ela lista os ambientes refrigerados, pouco arejados e com baixa taxa de renovação de ar como determinantes para a propagação do vírus.
Até o final de maio, o MPT somava mais de 172 denúncias trabalhistas, em todo o Brasil, relativas a empresas de “abate de reses” e “abate de suínos e aves, categoria em que se encaixam os abatedouros. No Rio Grande do Sul, o MPT entrou com ações civis públicas contra quatro plantas de frigoríficos.
Foram interditadas duas unidades da JBS, em Passo Fundo e Caxias do Sul, além dos dois frigoríficos epicentro dos casos em Lajeado, o da BRF e o da Minuano. Em âmbito nacional, o órgão firmou Termos de Ajuste de Conduta (TACs) com mais de 70 frigoríficos no país para a readequação das condições de trabalho dos funcionários durante a pandemia.
Dez empresas que empregam, juntas, cerca de 170 mil trabalhadores assinaram o compromisso, como BRF, Marfrig e Aurora. A JBS, maior indústria de carnes do país, não aceitou pactuar o acordo com o órgão.
A Agência Pública entrou em contato com a JBS, que afirmou que a empresa adota “um rigoroso protocolo de controle e prevenção da doença em suas unidades”, que foi definido de acordo com os órgãos de saúde e com a consultoria de médicos especializados. “Com essas medidas, a empresa está confiante em garantir o abastecimento e a oferta de produtos da mais alta qualidade a seus clientes e consumidores no país e no mundo”, diz a nota da assessoria de imprensa.
No Mato Grosso do Sul, como mostrou reportagem da Pública, a contaminação de pelo menos 86 indígenas da reserva Francisco Horta Barbosa, em Dourados, partiu de uma planta da JBS que recebe trabalhadores de vários municípios da região. No Paraná e em Santa Catarina, o Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com o MPT, recomendou que as empresas afastassem trabalhadores indígenas sem cortes nos salários.
Entre os acordos realizados com o MPT, está o plano de redução de atividades dos frigoríficos. Uma das empresas que assinou esse termo foi a Agroaraçá, localizada em Nova Araçá, pequena cidade de 4 mil habitantes na serra gaúcha, a 200 quilômetros de Porto Alegre. No dia 29 de maio, a empresa suspendeu as atividades por três dias após constatação de um surto de Covid-19 entre os trabalhadores: mais de 150 funcionários haviam sido diagnosticados.
Até o dia 19 de junho, a cidade contabilizou 439 casos confirmados, além de 26 casos suspeitos. O município registrou uma morte, de Lorimar Oliveira, gerente de produção do frigorífico.
Depois do acordo, a fábrica fez testagem em massa nos trabalhadores e detectou 447 casos do novo coronavírus na empresa, 396 que já estavam imunes e 51 ativos e assintomáticos. Os números de trabalhadores contaminados na empresa estão dissolvidos nos boletins epidemiológicos dos municípios vizinhos. A auxiliar de produção Elena Maria Bastiani, de 48 anos, trabalha há 15 anos no frigorífico e foi uma das trabalhadoras afastadas.
Até o surgimento do primeiro caso, ela conta que medidas de prevenção, como o distanciamento social, eram tomadas – mas não foram suficientes para evitar o surto na empresa que emprega 1.600 mil funcionários. “A gente mantinha distância uns dos outros, nossa temperatura era medida antes de entrar, a gente lavava as mãos. Mas o primeiro caso que houve foi no dia 4 de maio e, a partir dali, só foi aumentando”, lembra.
Ela, que trabalha no departamento de corte e embalagem, estima que são 200 colegas na mesma sala. “É muita gente, um ambiente que não tem ventilação. Acredito que seja por isso também que o vírus se espalhou por lá”, disse. “Não houve rotatividade, todo mundo estava trabalhando normalmente, menos quem era grupo de risco e grávidas.”
Dois dias após o exame, ela começou a sentir os primeiros sintomas: “Eu estava espirrando muito e não conseguia respirar pelo nariz. Também fiquei com dor de cabeça forte, eu achava que ia surtar a qualquer momento”, lembra. Por conta da pandemia, Elena não vê o filho de 11 anos há três meses, que aguarda o fim do isolamento social na cidade de Montenegro, a 150 quilômetros de distância de Nova Araçá.
“Ele foi passar as férias na casa da tia, em março. Mas, como começou o surto no frigorífico, achamos melhor ele ficar lá, porque eu estava exposta”, explica a funcionária. “Eu chorava e pensava que eu nunca mais fosse ver meu filho.” Após acordo com o MPT, o Agroaraçá voltou a funcionar, operando com 40% do seu quadro de funcionários, no início de junho.
No dia 19 de junho, os ministérios da Agricultura, da Economia e da Saúde publicaram no Diário Oficial da União uma portaria conjunta com as medidas destinadas à prevenção e ao controle da Covid-19 nos frigoríficos. Mas a testagem em massa e a diminuição do número de funcionários por turnos, que têm sido recomendadas pelo MPT, ficaram de fora das obrigatoriedades das empresas.
A redução do número de trabalhadores por turnos também é a posição defendida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins, que reúne federações e sindicatos que representam trabalhadores do setor de alimentos de todo o país. O presidente da entidade, Artur Bueno de Camargo, argumenta que a solução pode manter a segurança do trabalhador enquanto a produção das indústrias é mantida. “A gente exige todas as medidas de segurança e higiene, mas, principalmente, a redução do número de trabalhadores nas empresas. Entendemos que, por causa do número de funcionários, é impossível evitar aglomeração numa condição normal”, explica Camargo.
O advogado Paulo Roberto Lemgruber Ebert, que representa sindicatos de trabalhadores do setor frigorífico na serra gaúcha, afirmou que alguns abatedouros ainda não cumprem os acordos firmados com o MPT, o que impede a interrupção do ciclo de novos casos em várias unidades do estado.
Ele pondera que o descumprimento pode gerar sanções econômicas para as empresas. “Com relação às normas da economia e da saúde, eles podem sofrer sanções por parte da auditoria fiscal do trabalho e por parte da vigilância sanitária. A inspeção do trabalho e a vigilância sanitária, dependendo da gravidade, podem autuar esses frigoríficos e, dependendo da gravidade da situação, até fechá-los”, avalia. “Além disso, os sindicatos e os próprios trabalhadores, dependendo dos danos que eles tiverem experimentado, podem ajuizar ações pedindo pagamento de danos materiais e danos morais.”
Apesar da pandemia e dos números negativos de infecções entre trabalhadores nos frigoríficos, o setor parece não sentir os impactos econômicos da crise gerada pelo coronavírus: segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior, só o faturamento das exportações de carne bovina no país aumentou 34% em um mês, acumulando US$ 682 milhões de receita em maio deste ano. O número é 41,5% superior a maio de 2019, quando o comércio do produto no exterior faturou US$ 482 milhões.
*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.
Texto cedido pela Agência Pública.