Bernie Ecclestone, fora da F1 aos 85 anos: “minha nova posição é um desses termos americanos, algo como presidente honorário” (Michael Dalder/Reuters)
Rafael Kato
Publicado em 31 de janeiro de 2017 às 12h25.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play. Para ler esta reportagem antecipadamente, assine EXAME Hoje.
Não era exatamente o que Bernie Ecclestone esperava. No ano passado, aos 85 anos, quando lhe perguntaram se estava pronto para entregar o comando da Fórmula 1 a um sucessor, ele respondeu: “Eu tenho planos. Só vou continuar fazendo isso por mais 25 anos.”
A companhia americana Liberty Media, que em setembro comprou os direitos comerciais da F1 da firma de private equity CVC por 8 bilhões de dólares (incluindo as dívidas), fez esses 25 anos passarem em apenas um. Na segunda-feira, dia 23 de janeiro, o britânico Ecclestone declarou a uma revista alemã que havia sido “deposto”, após 40 anos no comando do esporte.
Ele foi substituído pelo americano Chase Carey, vice-presidente da 21st Century Fox, que já estava servindo como presidente do conselho da entidade (ele agora vai acumular o posto com o cargo de executivo-chefe).
“Fui deposto hoje”, disse Ecclestone. “É oficial. Eu não dirijo mais a companhia. Minha nova posição é um desses termos americanos, algo como presidente honorário. Ganhei esse título sem saber o que ele significa.”
Algumas horas depois, num tom mais politicamente correto, Ecclestone afirmou: “Estou muito feliz que o negócio tenha sido comprado pela Liberty e que ela pretende investir no futuro da F1. Tenho certeza de que Chase Carey vai cumprir seu papel de maneira a beneficiar o esporte.”
Mão de ferro no volante
Ecclestone está para a Fórmula 1 mais ou menos como João Havelange estava para a Fifa. Ambos pegaram uma organização eminentemente europeia e aristocrática e a transformaram num sucesso mundial. Ambos ficaram ricos (a fortuna de Ecclestone é estimada em algo entre 3 e 4,5 bilhões de dólares).
Ecclestone não carregava o mesmo nível de suspeitas de atos ilícitos que os altos executivos da Fifa, mas também tinha sua boa cota de escândalos – o maior deles uma acusação de ter pagado uma chantagem de 34 milhões de dólares a um banqueiro alemão para não ser denunciado ao Fisco britânico, que ele resolveu pagando uma multa de 75 milhões de dólares à Justiça alemã, evitando uma possível pena de 10 anos de cadeia.
Também era extremamente controverso. Admirador de Donald Trump e Vladimir Putin, não deixava dúvidas sobre suas inclinações ideológicas. “Não acho que a democracia seja o modo de dirigir qualquer coisa”, disse certa vez. “Seja uma companhia ou qualquer outra coisa. Você precisa de alguém que ligue e desligue a energia.”
Em 2009, foi ainda mais ousado, num elogio ao ditador nazista Adolf Hitler: “Ele era, no modo como conseguia comandar tanta gente, capaz de realizar as coisas”. O Congresso Judaico Mundial pediu sua renúncia, sem êxito.
Também tinha rompantes de machismo. “As mulheres deviam se vestir sempre de branco, como os demais aparelhos domésticos”, disse uma vez. Mesmo assim (ou talvez por isso), viveu cercado por mulheres glamourosas, todas bem mais altas do que ele, com seu 1,60 metro.
Casou-se três vezes, divorciou-se duas. Seu segundo divórcio, da modelo croata Slavica Malic (28 centímetros mais alta, 28 anos mais nova), lhe custou uma indenização recorde de 750 milhões de dólares. Jurou que permaneceria solteiro dali em diante, mas em 2012 casou-se com a advogada Fabiana Flosi, 47 anos mais nova.
Embora riquíssimo, Ecclestone é conhecido por gastar relativamente pouco. Tem um iate, um jato e várias casas, mas gaba-se de nunca pegar nada na geladeira dos hotéis, porque os drinques são caros. “Tenho uma política de nunca jogar dinheiro fora.”
As duas filhas do segundo casamento não herdaram essa sua característica. Petra, a mais jovem, gastou 15 milhões de dólares em sua festa de casamento, em 2010, e Tamara, a mais velha, participou de um reality show mostrando seu estilo de vida luxuoso, em uma mansão de 56 milhões de dólares onde guarda, entre outras coisas, uma coleção de sapatos de quase 900 mil dólares.
O modelo Ecclestone
Filho de um pescador, Ecclestone formou-se em química e montou uma loja de motocicletas com um amigo logo depois da Segunda Guerra Mundial. Sua ligação com as corridas começou aos 19 anos. Foi, durante alguns anos, piloto de Fórmula 3, sem muito sucesso. Passou a investir em imóveis e empréstimos. Em 1957, voltou ao esporte, como gestor.
Sua grande tacada ocorreu em 1972, quando comprou a Brabham – que venceu o campeonato de pilotos em 1981 e 1983, com o brasileiro Nelson Piquet, mas não o de construtores. Ecclestone já era então, desde 1978, o presidente da Foca, a associação de construtores.
Foi nesse posto que ele começou a transformar a F1 em uma indústria multibilionária.
Naquela época, a F1 tinha fortes competidores em outras organizações de corrida. Ecclestone deixou-os todos em segundo plano, perseguindo um plano de expansão mundial. Era considerado um excelente negociador. Onde houvesse uma possibilidade de lucro, ele levaria a F1.
Nos últimos anos, porém, havia sinais de crise. A estrutura de governança montada por Ecclestone é complicada: as cinco maiores equipes têm posto permanente no grupo estratégico que toma as decisões sobre o esporte, enquanto as outras seis se revezam na última cadeira restante.
A fórmula da F1 é cobrar caro das redes de TV que transmitem o espetáculo, e cobrar caro dos países que a hospedam. Esse modelo dá sinais de esgotamento. Malásia e Cingapura dão sinais de querer abandonar o circo, por não conseguir retorno para o investimento.
Embora as receitas sejam gigantescas, a audiência mundial caiu de 600 milhões para 400 milhões de espectadores desde 2008.
Em 2006, o circo foi comprado pela firma de private equity CVC, um antigo braço do Citigroup, por 2 bilhões de dólares. À parte de formar dívidas e distribuir generosos dividendos para os acionistas (altos demais, aos olhos dos críticos), a CVC deixou o poder de decisão nas mãos de Ecclestone.
Não foi mau negócio: a receita, que era de 730 milhões de dólares em 2003, subiu para 1,8 bilhão em 2015. Só que esse lucros eram obtidos com uma visão de curto prazo. A F1 não tem tido nenhuma estratégia para cativar o público jovem – Ecclestone costumava dizer que preferia atrair pessoas de mais de 70 anos com dinheiro do que jovens.
Sob nova direção
Essa visão de curto prazo é a principal razão para a queda de Ecclestone. Os novos donos da F1 são tão ambiciosos quanto ele, mas querem conseguir seus lucros de outras fontes, que consideram mais sustentáveis.
Carey, o novo CEO, declarou que “a F1 tem um enorme potencial, com múltiplas oportunidades não exploradas”. Ele também enalteceu o antecessor: “o papel de Bernie como presidente emérito faz jus à sua tremenda contribuição ao esporte e eu sou grato por ele poder continuar a prover insights e servir de guia para que construamos uma F1 voltada para o sucesso de longo prazo e o prazer de todos os envolvidos”.
Traduzindo: a Liberty vai mudar tudo.
Carey, de 62 anos, é um americano que vem da indústria do entretenimento (era vice-presidente da 21st Century Fox, do magnata australiano Rupert Murdoch). Deverá fazer na F1 uma reviravolta similar à que mantém em seus bigodes, curvados para cima.
Para começar, ele deve se esforçar para que a F1 avance nos Estados Unidos. Já estão sendo estudadas as possibilidades de levar as corridas para cidades mais centrais, como Las Vegas, Los Angeles e Miami. Mas mesmo as corridas em locais mais remotos, como Spa, no sudeste da Bélgica, deverão ser promovidas com o nível de espetáculo de um evento como o Super Bowl, das finais do futebol americano.
É provável que as transmissões de TV passem a ter mais gráficos para ilustrar as complexas estratégias das equipes, e o marketing em volta dos pilotos seja multiplicado. Carey já afirmou que a paixão pelas corridas se deve mais ao interesse humano do que ao encanto com a eficiência das máquinas.
Uma redistribuição de poder entre as escuderias, dando mais voz (e poder decisório) a equipes como Sauber e Force India, também está na agenda.
Além disso, algumas mudanças técnicas serão consideradas, para revigorar o espetáculo. Estuda-se alargar os carros, para que eles possam ser mais rápidos nas curvas. E, apenas dois dias depois de Carey ser anunciado como CEO, a F1 anunciou que os pilotos não serão punidos por colisões este ano, a menos que fique absolutamente claro que alguém agiu propositalmente.
Se Ecclestone tomava as decisões praticamente sozinho, Carey pretende “trabalhar com todos os parceiros para melhorar a experiência das corridas e acrescentar novas dimensões ao esporte”. Em seus planos está a criação de vários eventos no local das corridas, para que a festa dure uma semana inteira, não apenas dois dias.
Também haverá iniciativas para atrair mais jovens. Carey ficou assombrado ao perceber que a F1 não tem estratégia digital. As iniciativas em consideração incluem o uso de realidade virtual.
Para ajudá-lo na direção do circo, Carey terá dois braços-direitos: um ex-executivo da ESPN, Sean Bratches, para tocar a parte comercial; e um mago da F1, Ross Brawn, para assegurar que os aspectos técnicos e a tradição do esporte serão preservados. Brawn foi um respeitado engenheiro de carros que trabalhou para várias escuderias e ganhou um campeonato de construtores em 2009, com sua Brawn GP, depois de comprar a Honda (depois vendida para a Mercedes). No total, os times em que ele trabalhou ganharam oito campeonatos de construtores e oito de pilotos.
O lado claro da força
Por todas essas perspectivas de mudança, a troca de comando na F1 está sendo vista com otimismo – embora alguns fãs mais tradicionais temam a “americanização" do esporte.
A F1 sempre foi eminentemente um esporte europeu. Quase todas as equipes estão baseadas ali, assim como os campeonatos das categorias inferiores, de onde surgem os talentos para a F1. Por isso há tão poucos pilotos americanos (os brasileiros, para chegar à F1, costumam se mudar para a Europa cedo).
Isso não quer dizer que a Liberty tenha entrado na F1 por amor ao esporte. Ela pagou caro, e espera recuperar seu investimento. O filantropo John Malone, presidente do conselho da Liberty que guiou sua expansão para ramos tão diversos quanto o grupo de mídia Virgin, um time de beisebol e o grupo de comunicações Discovery, tem um estilo agressivo de fazer negócios. O ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore o apelidou de Darth Vader, por ter aumentado os preços dos seus serviços de televisão a cabo.
Neste caso, porém, tudo indica que Darth Vader represente um futuro mais claro para a força da F1.