Negócios

A empreendedora (e sociopata) que enganou o Vale do Silício

Livro do jornalista americano John Carreyrou conta a história da fraude provocada pela empresa Theranos, da empresária-celebridade Elizabeth Holmes

ELIZABETH HOLMES: seus ganhos não passavam de um modesto salário de diretoria que nunca foi superior a 20 000 dólares por mês / Getty Images

ELIZABETH HOLMES: seus ganhos não passavam de um modesto salário de diretoria que nunca foi superior a 20 000 dólares por mês / Getty Images

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Da Redação

Publicado em 28 de julho de 2018 às 09h40.

Última atualização em 28 de julho de 2018 às 11h00.

No começo de julho deste ano, a promotoria da cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, acusou de fraude Elizabeth Holmes, empresária de 34 anos. Ela alegou inocência diante da perspectiva de ser condenada a 20 anos de prisão. Elizabeth Holmes é uma celebridade no mundo dos negócios do Vale do Silício e a opinião pública não tem a menor dúvida de que ela será condenada. Afinal, foi a responsável pela criação da empresa Theranos, que se consagrou como o maior caso de uma startup que não deu certo, por um motivo muito simples: o produto que desenvolveu, com o qual Holmes captou grandes investimentos e promoveu no mercado como uma solução genial, nunca funcionou. Era, na verdade, uma grande enganação.

Aliás, a empresa começou com uma grande ideia. Um aparelho portátil capaz de fazer centenas dos principais exames a partir de uma gota de sangue colhida na ponta do dedo, de maneira rápida e indolor, com resultados quase imediatos. Algo muito próximo do que se vê em filmes de ficção científica.

Com essa ideia, boas conexões familiares e um enorme carisma, Holmes conseguiu atrair investidores e levantou 1 bilhão de dólares em investimentos. A Theranos foi avaliada em 9 bilhões de dólares e Holmes se tornou uma celebridade do universo da tecnologia. Foi chamada pela imprensa de a “Steve Jobs de saias”. Obteve o título de sexta empresária com menos de 40 anos mais rica dos Estados Unidos.

Como pôde conseguir tanto sucesso?

Essa é a principal questão que atormenta o jornalista do Wall Street Journal, John Carreyrou, duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo, ao longo do livro Bad Blood: secrets and lies in a Silicon Valley startup (“Sangue ruim: segredos e mentiras numa startup do Vale do Silício”, numa tradução livre), que poderia ser confundido com uma história de mistério e suspense sobre um grande golpe, mas que são apenas os fatos da vida real.

Elizabeth Holmes apareceu como uma personagem de si mesma. Loira, com enormes olhos azuis e uma profunda voz de barítona, ela incorporou a persona da versão feminina de Steve Jobs vestindo-se sempre com gola rolê, toda de preto, e adotando hábitos alimentares estranhos como, por exemplo, passar o dia bebericando suco de couve — como seu ídolo costumava fazer. Seu discurso, para investidores, parceiros, empresários e imprensa impressionava pelo seu conteúdo humanitário. Ela queria levar saúde e longevidade a todos: “Um diagnóstico rápido e preciso é essencial para prolongar a vida, e meu objetivo é permitir que isso aconteça de maneira acessível e barata”, disse ela numa palestra do TedMed, de olho num mercado de mais de 75 bilhões de dólares anuais. O aparelho que ela oferecia, batizado de Edison, poderia realizar mais de 200 exames de sangue, por um preço inferior a 3 dólares, e entregar resultados imediatos. Pelo menos, era o que prometia.

Essa receita com componentes tão sedutores foi capaz de convencer os mais astutos e experientes empresários ao longo de 15 anos de atividades. Entre seus investidores, estava, por exemplo, Rupert Murdoch, o magnata das comunicações, dono de mais de 800 empresas em todo o mundo que, seduzido pelo discurso inebriante de Holmes, colocou na mão da moça 125 milhões de dólares.

Esperta, Holmes também tratou de se apoiar em nomes respeitáveis, ainda que nonagenários. A diretoria da Theranos era formada pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger, pelo ex-secretário de Defesa William Perry, pelo ex-senador Sam Nun e, ocupando papel de destaque, o ex-secretário de Estado George Schultz — todos eles pertencentes ao Hoover Institution, um famoso instituto de pesquisa da Universidade de Stanford, na Califórnia.

A própria Elizabeth Holmes cursou Stanford, pelo menos alguns meses. Aos 19 anos, depois de ter tido meia dúzia de aulas no curso de engenharia química, apaixonou-se pela ideia de um chip que poderia “ler” exames de sangue. Foi o que bastou para que ela abandonasse a faculdade e abrisse a Theranos, uma combinação das palavras “therapy” e “diagnosis” (terapia e diagnóstico). Um ano depois, em 2004, usando as qualidades já mencionadas, inclusive conexões familiares, ela já havia arrecadado seis milhões de dólares em investimentos para desevolver a empresa.

Desde então, Elizabeth mostrou por que alguns sábios do Vale do Silício diziam que ela era capaz de vender gelo aos esquimós. Com meia dúzia de amostras falsas do seu produto, ela circulou mundo afora vendendo seu aparelho como se tivesse vendendo o Pão de Açúcar. Foi recebida pelos maiores laboratórios farmacêuticos e até pelo governo do México e o Exército americano. O problema é que o aparelho não funcionava nos testes, mas apesar disso ela continuava a vender seu peixe baseado unicamente em promessas.

A verdade é que havia, por volta de 2010, um grande interesse dos investidores e do mercado americano em geral nessas promessas “disruptivas”. Esse termo, cunhado em Harvard, foi e ainda é usado para definir os empreendimentos inovadores capazes de substituir, com soluções mais simples e baratas, as empresas líderes do mercado.

Um exemplo é o Uber, que enfrentou o mercado de transporte e até de carros. Ou o Airbnb, no mercado de hospedagem, e o próprio Youtube, que é, em última análise, uma maneira gratuita de oferecer vídeos e filmes, ameaçando a indústria cinematográfica e a própria TV.

Naquele ambiente do fim da década passada, ainda sob o trauma da crise financeira, ocorreu uma natural busca para investir naquilo que mais parecia promissor. Todos queriam descobrir um novo “unicórnio”, ou seja, startups com valor acima de um bilhão de dólares.

Além dessa ansiedade do mercado, Elizabeth Holmes foi beneficiada por uma certa filosofia típica das empresas de tecnologia do Vale do Silício e, também, por uma tolerância magnânima do mercado: a possibilidade de mentir sobre as qualidades de um produto para ganhar tempo até que elas se tornassem verdadeiras.

Funcionou com muitas — com games, aplicativos e soluções geniais — e poderia mutio bem funcionar com o Edison, o aparelhinho mágico da Theranos.

Ocorre que havia imprecisões gigantescas no produto no Edison. Consistia em colher gotas de sangue do dedo, colocá-las numa espécie de cartão de memória que seria introduzido num aparelho do tamanho de uma torradeira, chamado de leitor. Os dados extraídos da amostra de sangue seriam emitidos para um servidor remoto que procederia a uma análise instântanea das informações e devolveria o parecer para a “torradeira”. Nada disso funcionava direito. Tudo que o aparelho conseguiu fazer, nas várias versões e aperfeiçamentos realizados ao longo de dez anos, foram alguns dos exames mais simples, o que já poderia ser interessante se os resultados não estivessem frequentemente distorcidos. Vários eram os motivos para essa imprecisão: o sangue da ponta dos dedos tem muitas impurezas, o sinal de transmissão frequentemente era precário e o Edison não funcionava direito em temperaturas inferiores a 32 graus — para citar apenas alguns dos problemas.

Mas nada disso era empecilho para a criatividade ficcional de Elizabeth Holmes. A empresária não apenas convencia os seus possíveis clientes de que ocorria um processo de aperfeiçoamento em curso como, também, inventava planilhas com projeções de faturamento fantásticas. Uma delas previa um lucro líquido anual superior a 1 bilhão de dólares — número fabricado pelo sócio Ramesh Balwani, conhecido como Sunny, que secretamente também era amante de Elizabeth, 20 anos mais jovem.

Mais ainda: na iminência de fecharem acordos milionários, a solução que encontraram foi usar o método tradicional de exame de sangue, mas sem deixar isso claro. Era o que acontecia na Walgreens, uma das maiores redes de farmácia dos Estados Unidos, e que se tornou a maior parceira de Holmes. A empresa investiu 140 milhões de dólares para criar o Theranos Wellness Centers em 40 lojas da rede e tinha planos de implementar esse tipo de laboratório instântaneo em quase todas as mais de 8 000 lojas da marca. No pouco tempo em que funcionaram, esses laboratórios processavam a maior parte dos exames de maneira convencional, utilizando laboratórios tercerizados.

Como uma empresa pode ser disruptiva se depende da empresa convencional para operar? Esta é uma pergunta feita de maneira complacente por Carreyrou a certa altura do livro. Suas investigações começaram em 2015 quando recebeu uma denúncia a respeito dos resultados distorcidos dos exames feitos pela Theranos. A história ganha emoção verdadeira graças ao depoimento de Tyler Schultz, engenheiro químico da empresa, neto de George Schultz, que resolveu contar todas as facaltruas que testemunhou até pedir demissão. Mas a Theranos se protegia com uma agressividade incomparável, processando todos aqueles que ameaçavam seus privilégios de segredo industrial, amparada pelos serviços do legendário David Boies, considerado o maior advogado litigante dos Estados Unidos.

A reportagem de Carreyrou só foi publicada no Wall Street Journal depois de uma série de reuniões com Boies e membros da diretoria da Theranos, numa queda de braço envolta em ameaças de processo e vitupérios. A reportagem foi publicada em outubro de 2015 e praticamente selou o destino fatal da empresa e da empresária.

As revelações de Carreyrou pegaram a opinião pública de surpresa. Elizabeth Holmes era uma celebridade festejada pelo mercado e pela imprensa. Nos últimos anos, tinha protagonizado capas de revistas, programas de TV, vídeos do YouTube, congressos da indústria farmacêutica, eventos da área de tecnologia e de negócios. Era a menina de ouro que daria à modernidade tecnológica uma solução salvadora.

A reportagem de Carreyrou derrubou um mito e construiu um algoz. O jornalista chegou a fazer exames no Theranos Wellness Centers, da rede Walgreens, para comparar os resultados com a análise de um laboratório convencional — e constatar uma enorme diferença. Levantou casos de clientes que chegaram a correr risco de vida em função de resultados distorcidos dos exames de sangue, ainda que a maioria deles fosse feita de maneira convencional, terceririzando a análise e o parecer.

Elizabeth Holmes passou a dar entrevistas em que já não desfilava mais o seu rosário de argumentos humanistas, dedicando-se primeiro a negar as informações da reportagem. Depois passou a se justificar e, por fim, teve de pedir desculpas.

Mas desculpas não adiantaram. Logo começou a onda de processos das partes prejudicadas. A primeira delas foi por conta do promotor do Estado de Arizona, cujo processo acabou num acordo: a Theranos concordou em pagar 4,5 milhões de dólares para reembolsar os mais de 76 000 clientes do Estado que fizeram exames de sangue pela empresa. Processos individuais de clientes começaram a pipocar por todos os lugares e, em menos de um ano, a empresa, que em 2015 chegou a ter 800 funcionários, diminuiu seu quadro para 130.

Mas o pior ainda está por vir. Este ano, depois de um processo de apuração e investigação, a Securities and Exchange Commission (SEC), que regula o mercado de ações, concluiu que houve fraude e Elizabeth concordou em devolver 700 milhões de dólares aos investidores, pagar uma multa de 500 000 dólares e ficar dez anos sem se envolver em qualquer tipo de empresa. Mas, neste momento, Elizabeth está mais preocupada com a ameaça de pegar 20 anos de prisão.

Carreyrou publicou o livro sem saber ainda alguns dos capítulos finais envolvendo a Theranos. Mas a sua história tem importância e desperta o interesse por se tratar de uma reprodução envolvente de um grande golpe executado por uma grande personagem. Para isso, entrevistou mais de 150 pessoas e procurou desvendar a psique de Elizabeth Holmes que, aliás, recusou-se a dar sua versão ao jornalista.

A conclusão de Carreyrou é assertiva: Elizabeth é uma sociopata que foi vítima de sua própria megalomania e nem se pode criticar a sua ambição por dinheiro: ela não vendeu a sua parte da empresa, não criou patrimônio e seus ganhos não passavam de um modesto salário de diretoria que nunca foi superior a 20 000 dólares por mês.

Mas a maior lição que fica desta fraude, considerada a maior do universo tecnológico contemporâneo, está na declaração filosófica de Jina Choi, a jovem diretora do SEC: “A história da Theranos é uma importante lição ao Vale do Silício. Inovadores que buscam revolucionar uma indústria precisam explicar aos investidores o que suas tecnologias podem de fato fazer e não apenas o que esperam que elas façam algum dia”.


Bad Blood: secrets and lies in a Silicon Valley startup

John Carreyrou

Editora Knop

320 páginas

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