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Três meses após fuga do Talebã, afegãos tentam reinício na Europa

Durante os dias de caos no aeroporto de Cabul, afegãos que conseguiram deixar o país foram considerados de sorte

Combatentes do Talibã em 17 de agosto de 2021, depois que o Talibã assumiu o controle da capital e derrubou o governo do Afeganistão (HOSHANG HASHIMI/AFP/Getty Images)

Combatentes do Talibã em 17 de agosto de 2021, depois que o Talibã assumiu o controle da capital e derrubou o governo do Afeganistão (HOSHANG HASHIMI/AFP/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 22 de novembro de 2021 às 10h35.

Última atualização em 27 de junho de 2022 às 19h04.

Quando o Afeganistão colapsou, a empresária Nilofar Ayoubi, de 26 anos, tinha 40 funcionários, a maioria mulheres, sob sua direção. Dona de negócios de tapeçaria, decoração e roupas, Nilofar também era editora do jornal AsiaTimes e coordenava uma ONG de apoio a mulheres no país. Retirada às pressas de Cabul, perdeu tudo, e hoje tenta recomeçar a vida na Polônia.

Durante os dias de caos no aeroporto de Cabul, afegãos que conseguiram deixar o país foram considerados de sorte. Três meses depois, a realidade é mais complexa: muitos permanecem em campos de refugiados ou bases militares, sem saber se poderão permanecer nos países em que estão. Outros ainda lutam por vistos. Para alguns, ainda há a preocupação com a família deixada para trás.

No processo de retirada, entre os dias 15 e 30 de agosto, potências estrangeiras transportaram mais de 120 mil pessoas para fora do país. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que, até o fim do ano, meio milhão de afegãos atravessem as fronteiras com os países vizinhos, Paquistão e Irã, que historicamente recebem o maior fluxo de refugiados.

Ativista e feminista, Nilofar era um alvo para o Talebã. Pouco antes do colapso de Cabul, ela começou a receber ameaças pelo Twitter.

"Fizeram photoshop e colocaram minha foto em um corpo de uma mulher sendo levada à execução pelo Talebã", afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo. "Eles disseram 'não se preocupe, quanto tomarmos Cabul vamos te matar, você não voltará a trabalhar'." Seu escritório e suas propriedades também foram ameaçados por anônimos que diziam pertencer ao grupo extremista.

Fuga

Na madrugada de 15 de agosto, Nilofar recebeu a ligação de uma amiga que havia conseguido fugir para um país seguro. "Ela me disse para deixar o país imediatamente porque eu estava na mira e os assassinatos já tinham começado", conta. "Eu não planejava deixar o país. Foi uma decisão muito difícil para mim, mas no fim eu não tive escolha por causa dos meus filhos."

Nilofar é mãe de três crianças, de 5, 3 e 1 ano. Com a tomada de poder, Nilofar, suas contas bancárias foram confiscadas e suas propriedades, tomadas pelo Talebã. "Agora tudo pertence ao governo e somos os traidores", diz.

Com ajuda de organizações internacionais, ela conseguiu fugir, com o marido e os filhos, para a Polônia. No país, refugiados podem receber proteção internacional, que inclui título de residência ilimitada e autorização de trabalho. Eles também ganham cartões de residência e um documento de viagem que permite o translado na União Europeia e outros países.

Refugiados

Desde a queda de Cabul, o país recebeu 1.137 refugiados afegãos. Parte deles foi encaminhada para acampamentos de imigrantes, como Nilofar. Por semanas, ela e a família viveram em um pequeno quarto com roupas de segunda mão. Durante este tempo, não havia certeza de que eles poderiam permanecer na Polônia. A espera terminou em meados de setembro, quando, com a ajuda de amigos, a família conseguiu um apartamento.

Ozair Akbar, de 26 anos, ainda não teve a mesma sorte. Alvo do Talebã por trabalhar com várias organizações internacionais diferentes, o financista conseguiu deixar Cabul no dia 22 de agosto com a ajuda de militares italianos.

"A semana (da tomada do poder) foi terrível. Eu não saí de casa" conta. Na noite de 21 de agosto, Ozair recebeu uma ligação para ele ir ao aeroporto. Ele conseguiu embarcar, mas não levou a família. Desde então, está na Itália, onde solicitou permanência. "Já se passaram três meses e ainda estamos esperando."

'Distrito em que era governadora foi o último a cair', diz refugiada

A afegã Guljan Samar, de 31 anos, estava trabalhando em uma das províncias remotas do Afeganistão, Daikundi, onde coordenava um grupo de empresas, quando foi nomeada governadora do distrito. Após a fuga do presidente Ashraf Ghani e a queda do Afeganistão, ela esteve na guerra contra o Talebã por dois dias. "O distrito em que fui governadora foi o último a cair. Fui a última a enfrentar o Talebã com as forças sob meu comando. Defendi meu salário e minha terra. Mas infelizmente tudo acabou", disse ao jornal O Estado de S. Paulo.

Ela conseguiu fugir com o marido, com ajuda de uma agência americana que trabalha para auxiliar afegãos em situações de vulnerabilidade. "Consegui escapar do cerco do Talebã usando roupas de homem. Fiquei cercada por três dias para chegar ao mais básico das minhas possibilidades. Eu não tinha comida. E consegui fugir a pé pelas montanhas com meu marido e meus cinco seguranças", afirma Guljan.

Acampamento

Hoje, ela está em um acampamento para refugiados na Albânia enquanto aguarda para ser integrada ao país dos Bálcãs. Ela ainda não tem visto humanitário. Uma das mais jovens empreendedoras do Afeganistão, ela não tem permissão para trabalhar em seu novo país.

Além disso, teme pela segurança de sua família, que continua no Afeganistão. "Infelizmente, um de meus irmãos e dois seguranças foram capturados pelo Talebã. Não sei a informação exata, nem sei onde está o resto da minha família, meus irmãos e sobrinhos" diz.

Ondas

Da década de 1970 para cá, a diáspora afegã passou por quatro fases. A primeira, iniciada com o golpe militar do Partido Democrático do Povo do Afeganistão contra o governo Daoud, teve início em 1978 e provocou uma fuga em massa de refugiados do grupo étnico pashtun, o maior do país. Eles eram em sua maioria camponeses pobres, agricultores de subsistência, pequenos proprietários de terras e clérigos.

Russos

Com a retirada das tropas soviéticas, entre 1986 e 1989, e a consequente intensificação dos combates entre os grupos mujahideen, uma segunda leva de afegãos deixou o país. Em contraste com a primeira, esses refugiados eram principalmente empresários e profissionais urbanos. Muitos se estabeleceram no acampamento Nasir Bagh, na Província de Peshawar, no Paquistão.

A terceira fase se deu quando o Talebã tomou o poder pela primeira vez, em 1996. Durante este período, cerca de 2 milhões de refugiados afegãos fugiram para o Paquistão e cerca de 1,5 milhão foi forçado a migrar para o Irã.

O grosso dos refugiados era formado principalmente de minorias religiosas e muçulmanos xiitas.

Ataque às torres

A quarta fase aconteceu logo após os atentado de 11 de setembro de 2001, quando o medo de retaliação dos EUA, o aumento da instabilidade e desastres ambientais geraram grandes êxodo - que em sua maioria, acabaram voltando ao país nos anos seguintes.

Como consequência, o Afeganistão é hoje o terceiro país com mais refugiados pelo mundo.

De acordo com dados da UNHCR, 2,6 milhões de afegãos fugiram do país, número que perde apenas para a Síria (6,8 milhões) e Venezuela (4,1 milhões).

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