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Transtornos mundiais tiram caráter de "grupo" da cúpula do G20

Há mais de 40 anos, os "sherpas" elaboram documentos que definem como os países trabalharão juntos para consertar o mundo, mas isso pode acabar

Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (Ron Sachs/Reuters)

Gabriela Ruic

Publicado em 30 de novembro de 2018 às 06h00.

Última atualização em 30 de novembro de 2018 às 06h00.

Os comunicados divulgados após grandes encontros de líderes globais — com discussões que varam a noite sobre vírgulas e colchetes — correm risco de extinção. Há mais de 40 anos, os chamados sherpas e seus assistentes elaboram esses documentos perto da conclusão dessas cúpulas internacionais — são manuais que definem como os países pretendem trabalhar juntos para consertar os erros do mundo.

Esses comunicados já precisaram de verniz diplomático no passado, mas só neste ano o processo inteiro entrou em colapso duas vezes. Em junho, na reunião do Grupo dos 7 (G-7) no Canadá, o presidente americano, Donald Trump , se irritou com a postura do país anfitrião em relação ao comércio e retirou o apoio dos EUA ao documento com o qual ele havia acabado de concordar. Neste mês, simplesmente não houve qualquer acerto que abrisse caminho para um comunicado final após a cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), em Papua Nova Guiné, porque China e EUA entraram novamente em conflito por causa do comércio.

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Em conversa com repórteres antes da reunião do G-20 que acontece em Buenos Aires nesta semana, um representante do governo francês comentou: “Vocês viram o que ocorreu nas últimas cúpulas multilaterais -- G-7, OCDE, APEC. Grandes dificuldades, principalmente por causa da atitude dos EUA.”

Eventos recentes podem agravar a situação no G-20. O presidente russo, Vladimir Putin, chegará à Argentina logo após a captura de navios ucranianos. Mas em entrevista ao Wall Street Journal nesta terça-feira, Trump fez questão de deixar claro que seu encontro a portas fechadas com o presidente chinês Xi Jinping vai ser mais importante do que tudo na cúpula: ele ameaçou impor tarifas sobre mais centenas de bilhões de dólares em produtos chineses se não conseguir as concessões que pretende exigir durante a conversa.

Os anfitriões argentinos fazem o que podem para evitar um terceiro desastre diplomático. Eles deram aos sherpas até quatro dias (e não dois, como de costume) para concluir o processo. Já foi elaborado um texto curto de três páginas. Na última cúpula do G-20, na Alemanha, esse mesmo documento tinha 15 páginas, fora o conteúdo de apoio. O risco é que o comunicado final fique vago a ponto de perder relevância.

Os problemas na cúpula global não são todos causados por Trump. Embora seu unilateralismo e insistência em colocar os interesses de seu país acima de todos tenham gerado essa dificuldade sem precedentes para se chegar a um acordo, as causas são mais profundas, segundo Cecilia Nahon, que foi sherpa da Argentina no G-20 durante quatro anos.

Para ela, Trump é sintoma da oposição à globalização que já vinha ganhando força. Neste ambiente, os líderes ficam menos inclinados a fazer concessões em encontros que respiram globalização. Os negociadores do G-20 “não conseguiram entregar uma agenda de inclusão que trate da desigualdade e da ansiedade que movem essas mudanças ao redor do mundo”, disse ela.

O perfil dos próprios negociadores é outro problema, na visão de um atual sherpa do G-20 que pediu anonimato. Os sherpas são representantes pessoais dos líderes nacionais. Em 2008 e 2009, os encarregados de escrever os comunicados que ajudaram a evitar o colapso do sistema financeiro global eram economistas, em sua maioria, e estavam focados na coordenação de políticas fiscais e monetárias. Atualmente, diplomatas são maioria entre os sherpas e eles têm gerado documentos menos ambiciosos e menos técnicos.

“A diferença em relação a 2008 é enorme”, disse Svetlana Lukash, sherpa da Rússia no G-20, recordando que a gravidade da crise financeira criou um senso comum de compromisso que não é mais tão forte. “As pessoas estão complacentes, não há senso de urgência – e isso impede grandes avanços.”

Segundo Lukash, “qualquer apoio ao multilateralismo, ou mesmo a menção de abordagens multilaterais, já é algo ambicioso no ambiente atual.”

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