Pelosi, Schumer, Sanders: em um dividido Partido Democrata, as lideranças atuais buscam se manter à frente das discussões e pautar os rumos do partido (Drew Angerer/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 24 de junho de 2017 às 08h42.
Última atualização em 24 de junho de 2017 às 10h02.
Thiago Lavado, de Nova York
“Ninguém dentro deste trem é republicano”, afirma o advogado Ted Poretz a bordo do trem 2, com destino ao Bronx, passando pelo Harlem. “Mas há alguns republicanos nessa cidade”, replico. “Sim, há. Mas nenhum deles anda de trem”, finaliza Poretz antes de descer na estação oeste da Rua 96. De lá, o trem irá cortar por debaixo do Central Park antes de ir ao Harlem. O retrato social fica evidente antes da curva: em um vagão bastante cheio, todas as pessoas, à exceção deste repórter, são negras, deixando claro o recorte de raça na preferência partidária nos bairros americanos.
Mas diante dessa percepção inicial, fica uma dúvida: se os democratas têm tamanho apoio popular, como acabaram onde estão? O partido se debruça hoje sobre um problema de identidade e de marca, que o divide em dois diante de uma nação também dividida. Com a derrota em 2016, o partido acabou com o menor poder nas esferas federal e estadual que os democratas já tiveram em mais de 80 anos, e agora luta para alinhar as demandas e as pressões de diferentes alas na busca de uma saída que, ao mesmo tempo, não ameace sua visão para os Estados Unidos do futuro e não destrua sua história e sua base de eleitores.
O mais recente golpe desferido sobre o partido Democrata aconteceu na última terça-feira. Em uma eleição especial realizada no sexto distrito da Geórgia, em um tradicional reduto republicano de classe alta e com altos índices educacionais, Jon Ossoff foi derrotado pela republicana Karen Handel.
O pleito era considerado um referendo sobre o desempenho do partido Republicano e o governo de Donald Trump — principalmente porque a margem de vitória do presidente por lá havia sido de 1,5 ponto percentual, contra 23 de Mitt Romney sobre Barack Obama em 2012. Com cerca de 25 milhões de dólares investidos somente pelos democratas, que se articularam em campanhas nacionais de doações e milhares de voluntários, a corrida foi a mais cara já realizada por uma única cadeira na Câmara de Representantes dos Estados Unidos.
Mas a mensagem de austeridade fiscal e desenvolvimento econômico de Ossoff não foi o suficiente para tornar azul uma cadeira que há mais de 30 anos era vermelha. O distrito na Geórgia é só mais uma derrota na lista de eleições especiais perdidas: ao lado da Carolina do Sul, de Montana e do Kansas.
Restruturar um partido que luta para se reconhecer e para entender sua base não é fácil. Como bem escreveu a repórter Clare Malone do site FiveThirtyEight, os democratas conseguiram eleger o primeiro presidente negro na história dos Estados Unidos, mas pagaram o preço de perder o país oito anos depois. A ala mais tradicional do partido — liderada por nomes como Nancy Pelosi e Chuck Schumer — enxerga 2016 como um erro de estratégia, enquanto que que a ala mais progressista, encabeçada por nomes como os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren, quer levar o partido para o radicalismo de políticas econômicas alinhadas mais à esquerda, ao Estado de bem-estar social e ao socialismo democrático.
As derrotas da atualidade
Poretz, o advogado do trem, tem razão. Em Nova York, principalmente nas regiões do Harlem e do Bronx, tradicionais bairros para as populações negra e latina ao norte da cidade, há pouquíssimos republicanos. O resultado das eleições do ano passado apontam que no Bronx 88,5% dos votos foram dados à democrata Hillary Clinton, enquanto que Donald Trump teve apenas 9,5%. Em Manhattan, região onde Trump fez sua carreira e fama, o resultado é semelhante: 9,7% dos habitantes votaram nele. O estado de Nova York é um dos redutos democratas mais consolidados dos Estados Unidos, ao lado de estados como Califórnia, Massachusetts, Rhode Island, Delaware, Oregon e Washington.
Mesmo com tamanho apoio, os republicanos coletam vitórias na cidade. Em 2011, quando as Torres Gêmeas caíram, era o prefeito Rudy Giuliani, um republicano, que comandava Nova York — no ano passado, ele foi uma das vozes mais efusivas de apoio ao então candidato Donald Trump na Convenção do Partido Republicano.
Depois dele, a prefeitura foi para o empresário Michael Bloomberg, eleito em 2002 também pelo partido Republicano com uma plataforma de marketing forte e um apelo “republicano progressista” que o manteve no cargo até o final de 2013, mesmo que em seu último mandato tenha se eleito como um político independente. Não à toa o prefeito de São Paulo, João Dória, tem em Bloomberg um exemplo de empresário-político.
Mas é a sucessão de derrotas recentes, em eleições com alto grau de investimento, e contra um partido cujo presidente tem índices de aprovação que beiram os 40%, que aprofundou ainda mais a crise interna dos democratas. A mensagem de Ossoff não foi suficiente para combater a pecha de marionete que os republicanos jogaram contra ele durante a campanha.
Na quarta-feira, democratas se reuniram em Washington para discutir as estratégias para o futuro, que inclui as eleições de meio-termo do ano que vem — o pleito irá trocar todos os membros da Câmara e um terço do Senado, onde a maioria dos assentos que serão disputados estão, atualmente, com o partido Democrata. Antes mesmo das eleições desta semana, no dia 11 de junho, Donald Trump provocou a oposição em sua conta no Twitter. “Os Democratas não tem mensagem, nem econômica, nem fiscal, nem em geração de emprego, nem mesmo no projeto de saúde. Eles só querem obstruir!”.
Entre as ideias de melhora havia desde aqueles que acreditavam na substituição de lideranças, como a atual líder da minoria na Câmara, Nancy Pelosi, até o foco em políticas econômicas, voltadas à classe trabalhadora — uma base que os democratas dominavam, mas que perderam nos últimos anos. Muitos se contentaram com o fato de Ossoff ter conquistado corações e mentes e mostrado que era possível ser uma voz dissidente em um distrito republicano, e isso bastava. Mas troféus de participação não ganham eleições, tampouco mudam realidades.
Sentado em uma sala no oitavo andar de um prédio sobre a Lexington Avenue em Nova York, onde fica o escritório estadual do Partido Democrata, Basil Smikle, diretor executivo do partido no estado, explica como a situação se desenvolveu até onde está hoje. Para ele, a questão é muito anterior aos problemas atuais, e remonta desde o início dos anos 2000, quando os republicanos aprenderam que investir o dinheiro do partido, e de grupos de interesse, em eleições a nível estadual era mais importante do que criar grandes lideranças e guias nacionais — uma lição, e um dinheiro, que os democratas demoraram a aprender e a gastar.
Segundo Smikle, Barack Obama, em sua primeira candidatura, teve de criar uma rede de apoiadores a nível nacional, durante as primárias, para contornar Hillary Clinton e o apoio que ela tinha do partido. Isso capitalizou muito um sentimento anti-partido que já existia. Obama, ao mover uma grande coalização em torno do seu nome, acabou com o trabalho de base histórico do partido em pequenas localidades — algo tão caro aos Clinton, que valorizam os políticos regionais. A confluência desses eventos, da perda de Assembleias Legislativas Estaduais à falta de recursos a nível local, com a divisão do partido em diferentes facções, levou ao resultado de 2016.
“A estratégia de 50 estados — que consistia em levar a mensagem dos Democratas a todos os estados, ao invés de relegar alguns como inalcançáveis — ficou só no papel. Não havia 50 estados, a estratégia não envolveu a todos. A mensagem era para todo mundo, mas era só uma tentativa”, afirma Smikle, para quem um dos problemas é restabelecer uma marca onde os principais nomes são personagens mais velhos, vinculados à imagem de política tradicional, enquanto que os eleitores americanos estão mais receptivos aos candidatos que se opõe a esse paradigma, especialmente em eleições mais personalizadas como Senado, presidência e governo do estado.
Smikle enxerga, em retrospecto, onde estiveram os grandes problemas de 2016. Os republicanos tiveram mais sucesso na estratégia de mostrar como Barack Obama foi um péssimo presidente do que os democratas tiveram em mostrar como Donald Trump seria ruim. E, de fato, dados que geralmente pendem a favor da situação, como bons números de emprego e crescimento econômico — ao final da gestão Obama, o desemprego era de 4,7% e o crescimento do PIB uma média de 2,1% ao ano —, foram distorcidos por Trump ao ponto de não mais importarem aos olhos dos eleitores.
Para ele, a diferença entre o que democratas fizeram e o que os republicanos fizeram é relativa à raça. A questão racial desempenhou um grande papel nestas eleições, com os republicanos construindo uma narrativa em torno de minar o que havia sido feito durante a gestão de Obama. “Havia uma época neste país em que a população negra não podia andar por aí sem papéis para provar que era livre. Quando Trump diz publicamente que Obama tem que mostrar seus certificados de nascimento e de graduação, para provar que é americano e formado, mesmo que você não saiba a história racial deste país, é notável que há uma implicação de que os negros não fazem parte disso”, afirma Smikle.
Há outras coisas no caminho, mas o racismo contra Barack Obama, aliado à misoginia contra Hillary Clinton, é visto pelo partido como um grande problema, que significativamente implicou na perda das eleições. “É a mesma estratégia que Richard Nixon usou em 1968 nos estados do sul: ele apelou para a perda do American Way of Life e as perdas da América branca. Não à toa Trump repetiu o discurso de ‘lei e ordem’ à exaustão em debates do ano passado”.
As batalhas de amanhã
Há dois discursos que funcionam como representações dos caminhos à frente dos Democratas para tentar virar a maré das derrotas e da crise. O primeiro foi feito por Bill Clinton em 1992, quando aceitou a nomeação do partido às vésperas de sua primeira campanha à presidência, no Madison Park em Nova York. Naquela ocasião, Clinton pediu que os democratas fossem “americanos tradicionais para um novo tempo, com oportunidade, responsabilidade e comunidade”.
No início deste mês, o outro lado da dicotomia democrática foi apresentado por Bernie Sanders em Chicago, 25 anos depois de Clinton. “Os atuais modelo e estratégia do partido Democrata são uma falha absoluta. Precisamos de mudança fundamental. O partido precisa finalmente entender e dizer de que lado está”, disse Sanders a uma plateia que o aplaudiu de pé, aos gritos de “Bernie 2020”, em um evento chamado de Encontro do Povo. Bernie ainda acrescentou que “embora tenhamos perdido a ‘primária’ de 2016, vencemos a batalha de ideais”.
Essas duas falas apontam para as duas partes que buscam dominância e imposição de sua agenda nas próximas eleições. De um lado, há os ativistas mais à esquerda que sonham em transformar o sistema de saúde e pedem o impeachment de Donald Trump. Do outro há democratas moderados, que lutam por suas cadeiras em distritos de disputa acirrada, e que só pedem a seus eleitores uma chance nova de governar.
De olho nas eleições do ano que vem, que podem determinar o futuro da oposição a Donald Trump nos próximos anos, os democratas buscam traçar uma estratégia que lhes permita, não só virar distritos eleitorais importantes e atualmente republicanos, mas manter seus atuais assentos na Câmara.
Para o professor Andy Sinclair, da Escola Wagner de Serviço Público na Universidade de Nova York, há uma questão principal a se levar em consideração quando se analisa a capacidade de um partido em mudar uma cadeira. Há uma relativa estabilidade nos distritos: cada um deles tende a votar da mesma maneira que votou na última eleição — algo que pode, sim, mudar com o tempo, a exemplo dos próprios democratas, que dominavam majoritariamente o sul dos Estados Unidos até a década de 1940.
“É possível que a presidência de Trump, se continuar com baixos índices de aprovação e com uma administração pública bastante problemática, possa mudar alianças e reverter distritos. Por enquanto é improvável, mas é possível”, afirma Sinclair, se referindo principalmente a distritos onde a vitória republicana fica em torno de 51 a 60% dos votos, uma margem ampla, mas que permite uma abordagem de campanha.
Para Ajay Chaudhary, diretor do Instituto Brooklyn de Pesquisa Social, os democratas que dizem que nada precisa mudar na situação atual do partido, como afirma a líder da minoria no Congresso, Nancy Pelosi, endossam uma mensagem derrotista.
“Há uma pequena chance dos democratas conseguirem recuperar assentos no Congresso e até a presidência em 2020. Mas isso não importa se eles não mudarem o tom, porque não são eles quem ditam o teor das discussões políticas: quem faz isso é a direita republicana. E não só nos Estados Unidos, como também na Europa, Rússia e Índia”, afirmou Chaudhary, que acredita que uma guinada à esquerda, com retorno dos democratas às suas bases trabalhistas, é a melhor maneira de inserção do partido, e de uma pauta, no debate nacional.
Segundo ele, as coisas não estavam bem durante a gestão de Obama: o país tem o maior nível de encarcerados do mundo, a renda real da população não cresceu e os Estados Unidos apresentaram níveis crescentes de mortes de mulheres durante o parto — o único país entre os oitos mais ricos que tiveram aumento nos índices durante o período. Os democratas teriam então a oportunidade de mudar o paradigma atual do partido, considerado um representante moderno do neoliberalismo e de Wall Street. “Ou o partido se radicaliza, ou corre o risco de se tornar irrelevante”, pontua Chaudhary.
Mas essa opinião não é partilhada por todos os especialistas. A política americana não funciona de uma maneira pluripartidária, onde há uma miríade de diferentes e confrontantes vozes. Diante do bipartidarismo imperante, as alas mais moderadas acabam se misturando no centro, com democratas moderados muitas vezes próximos de republicanos moderados em muitas linhas políticas. Segundo o professor de ciência política da Universidade Columbia, Donald Green, o cenário político partidário dos Estados Unidos tem uma qualidade homeostática: se um partido se move muito para a direita ou para a esquerda, o centro acaba reagindo a fim de igualar a equação.
“Embora a ala mais à esquerda do partido Democrata adore o pensamento de uma abordagem mais progressista, muitos apoiadores e financiadores são democratas moderados. Além disso, há uma razão para líderes do partido, como Hillary Clinton ou Barack Obama, não irem mais à esquerda: isso geraria um impasse político, com uma forte reação republicana”, afirma Green para quem a estratégia mais sensata seria pender para o centro.
Enquanto a linha de atuação dos democratas não se define. As opiniões sobre as chances do partido são também divergentes: para o professor Green, de Columbia, há alguma chance na corrida à Câmara em 2018, mas não ao Senado. Já Basil Smikle, diretor executivo dos democratas no estado de Nova York, pensa que o contrário é mais provável, e afirma haver chance de o partido conseguir uma maioria no Senado.
O futuro dos democratas — à esquerda ou ao centro — ainda é incerto. Segundo Sinclair, da Universidade de Nova York, é improvável que ambos os lados cheguem a um acordo e, por isso, devem tentar mixar ambas as abordagens para vender o partido em todas as partes. Se isso vai dar certo ou não, as urnas vão dizer. Faltam 500 dias para as eleições de 2018 e, até agora, apesar dos pesares, é Donald Trump que continua clamando vitória no Twitter.