Mundo

'Só saí da China porque a considero um aterro, uma prisão'

Um dos escritores contemporâneos mais censurados do país, Liao Yiwu conta como conseguiu fugir e diz que sonha com o dia em que será possível voltar

Liao Yiwu é um dos escritores contemporâneos mais censurados na China (Andreas Rentz / Getty Images)

Liao Yiwu é um dos escritores contemporâneos mais censurados na China (Andreas Rentz / Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 12 de maio de 2012 às 16h18.

São Paulo - Frequentemente ouve-se uma nova história de um dissidente chinês que, cansado da intensa repressão imposta pelo regime de seu país, decide fugir. O nome da vez é o do ativista cego Chen Guangcheng, que escapou da prisão domiciliar que lhe foi imposta na província de Shandong, na zona leste da China. Ele conseguiu distrair dezenas de guardas que acompanhavam seus movimentos 24 horas por dia e se refugiou na embaixada dos EUA em Pequim. Após receber ameaças contra sua família, o dissidente abandonou o local na semana passada e, desde então, recebe atendimento em um hospital da cidade enquanto espera autorização para estudar Direito em uma universidade americana. Nesse meio tempo, ouviu a promessa do governo de que investigará a repressão a seus parentes segue esperançoso - embora cético - de que algo realmente seja feito.

Nem todos, porém, tiveram uma nova chance como Guangcheng. A maioria dos opositores do regime que consegue deixar casa e família para trás tem de conviver com a certeza de que não poderá regressar. Um deles é Liao Yiwu, um dos escritores contemporâneos mais censurados na China. No passado, ele foi preso por quatro anos após escrever o poema épico Massacre, sobre a sangrenta repressão do governo contra manifestantes na Praça da Paz Celestial, em 1989. À ocasião, o Exército chinês deixou um saldo sangrento de 3.600 mortos e 60.000 feridos. Mais tarde, seu livro O Cadáver Ambulante (2008) também foi proibido no país. Nele, o autor narra a vida dos marginalizados da sociedade comunista, o que foi considerado subversivo por criticar o sistema comunista. Para completar, Liao é o signatário mais antigo do manifesto Carta 08, que busca promover reformas políticas e de direitos humanos.

Recentemente, mais uma de suas obras foi censurada - Deus é Vermelho: a história secreta de como o Cristianismo sobreviveu e floresceu na China comunista (Editora Mundo Cristão). O livro fala do cristianismo, a maior religião formal do país - onde há cerca de 70 milhões de cristãos praticantes, apesar da tentativa do governo totalitário de banir todas as formas de fé. Em Deus é Vermelho, Liao reúne 18 entrevistas e ensaios escritos entre 2002 e 2010, que retratam a perseguição política que torturou e assassinou milhares de pessoas e destruiu templos. Em meados de 2011, após várias ameaças de prisão, Liao conseguiu fugir e voar às escondidas para a Alemanha. Desde então, viaja o mundo para contar suas experiências em uma nação que parece querer controlar até a mente da população. "Pensar se torna um grande problema quando o poder está nas mãos de uma ditadura, como é o caso do comunismo chinês", conta, em entrevista concedida ao site de VEJA. Confira, os principais trechos da conversa a seguir:

Qual é a argumentação ou o critério do governo para censurar livros na China?

Não existe. O regime simplesmente proíbe as editoras de publicarem determinadas obras. Caso alguma delas vá contra essa ordem, as autoridades suspendem seu alvará de funcionamento. Fico indignado com tais medidas ditatoriais. Como um grupo tão burro de pessoas pode administrar o nosso país, ser nossos líderes? Jiang Zemin (presidente da China de 1993 a 2003) sempre falou idiotices. Hu Jintao (atual presidente, desde 2003) nunca sequer sorriu para o povo, nunca sabemos em que ele está pensando. E, além de tudo, é uma pessoa inculta. O texto dele pode ser comparado ao de alunos da escola primária. Como ele pode liderar um país como a China? Seria melhor colocar o país nas mãos de um porco do que na dos comunistas chineses. Fui humilhado pelos comunistas - e aprendi a não ouvi-los.

O senhor se compara a figuras como o dissidente Chen Xi (condenado a dez anos de prisão por "subversão") e o artista Liu Xiaobo (Nobel da Paz, detido há dois anos)?

Essas pessoas foram condenadas à prisão porque pensam, escrevem seus pensamentos e os publicam. Da mesma forma, o governo chinês teme meus livros, porque escrevo a realidade, eu raciocino. Sou o escritor mais censurado na China atualmente. Todos os meus livros estão proibidos no país. Não posso publicar obras nem mesmo com um pseudônimo. Pensar se torna um grande problema quando o poder está nas mãos de uma ditadura, como é o caso do comunismo chinês. Meu amigo Liu Xiaobo já foi preso outras várias vezes por simplesmente se expressar.

Como foram os quatro anos em que esteve detido?

Na prisão, eu era tratado como um cachorro. Convivi com muitos assassinos e criminosos. Ouvi histórias horríveis em que, no início, me recusava a prestar atenção. Com o tempo, porém, percebi que não havia como escapar. Eles sentiam necessidade de desabafar suas angústias e revoltas, pois diziam que a qualquer momento poderiam ser fuzilados. Esses depoimentos me perturbaram por muito tempo. Só consegui me livrar deles depois de escrevê-los. A prisão mudou minha personalidade, minhas visões. Eu era um jovem anarquista antes de ser preso. Como artista, era um poeta moderno - ganhei prêmios de literatura em mais de 20 países. Embora meu pai sempre abominasse os comunistas, ressaltando como eles eram capazes de matar seu povo, nunca acreditei nele.

O senhor se revoltou com algum assunto em especial?

Havia um camponês que reclamava muito do controle de natalidade implantado na China. Ele me contou como a política do regime comunista acabou com a herança de sua família. Segundo ele, em milênios, nenhum chefe de estado havia agido de tal forma. Em reação ao controle do governo, ele e outros manifestantes queimaram preservativos e pílulas anticoncepcionais nas regiões centrais de suas cidades. Para um escritor, ouvir histórias desse tipo é uma grande oportunidade de aprendizagem e inspiração.


Como conseguiu fugir para a Alemanha?

Por sorte, sou de Sichuan e posso chegar a lugares que nem a polícia consegue chegar. Além disso, tenho bastante força física. Gosto de subir montanhas e andar bastante por dias seguidos. Costumo me descrever como um rato. Tanto que fui andando, andando, até que um dia consegui sair do país sem que o governo tomasse consciência.

Em seu livro mais recente, Deus é Vermelho, o senhor escolheu como tema o cristianismo, hoje a maior religião formal da China. Por que o interesse em escrever sobre religião?

Eu era um simples escritor quando conheci um médico cristão na região montanhosa da China, que era vice-presidente de um hospital local e praticava a medicina há mais de 15 anos. Ele me contou que decidiu assumir que era cristão ao governo e acabou perdendo seu cargo. Quando o encontrei, ele realizava por conta própria uma cirurgia de catarata com o auxílio de apenas duas pessoas, que seguravam as lâmpadas para ajudá-lo. Com ele aprendi muito sobre o cristianismo. Fiquei curioso para saber como era possível uma fé estrangeira encontrar caminho e crescer em localidades tão isoladas, onde a modernização ainda não havia chegado. Nesses cantos remotos, descobri um ponto central, onde o Oriente encontrou o Ocidente. Embora tenha havido um choque de culturas, existe agora uma nova identidade cristã que é distintamente chinesa.

Pensa em retornar a seu país algum dia?

Só saí da China porque a considero um aterro, uma prisão. Mas continuo esperando a chegada de uma mudança grande o suficiente que permita a minha volta.

Acompanhe tudo sobre:ÁsiaCensuraChinaLivrosReligião

Mais de Mundo

Putin sanciona lei que anula dívidas de quem assinar contrato com o Exército

Eleições no Uruguai: Mujica vira 'principal estrategista' da campanha da esquerda

Israel deixa 19 mortos em novo bombardeio no centro de Beirute

Chefe da Otan se reuniu com Donald Trump nos EUA