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O primeiro grande teste da sustentabilidade

Nos últimos anos, o discurso da sustentabilidade foi repetido por milhares de empresas no mundo. A crise está colocando a "onda verde" à prova - e só as iniciativas mais consistentes devem sobreviver

Von Zuben, da Tetra Pak: esforço para manter viva a reciclagem (.)

Von Zuben, da Tetra Pak: esforço para manter viva a reciclagem (.)

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

"A Shell voltou a fazer parte de novo do ranking das empresas mais sujas e mais retrógradas do mundo... Depois de anos proclamando seu compromisso com a energia limpa." Esta declaração foi feita por John Sauven, diretor executivo da operação inglesa do Greenpeace, a respeito da decisão anunciada em março pela petrolífera anglo-holandesa de abandonar seus investimentos em energias renováveis, como a eólica e a solar.

Pressionada pelo impacto da queda do preço do barril de petróleo - desde julho de 2008 até agora o preço caiu quase 60% -, a Shell foi uma das primeiras a anunciar mudanças. A guinada foi justificada, sem nenhum constrangimento, por Linda Cook, principal executiva de gás e energia da companhia: "Somos executivos e colocamos o dinheiro disponível para investimentos naquilo que nos dará o melhor retorno. Se as renováveis fossem isso hoje, estaría­mos colocando nosso dinheiro lá, mas não é o caso". A Shell declara ter investido 1,7 bilhão de dólares nos últimos cinco anos em energias renováveis, biocombustíveis e tecnologias para captura e armazenamento de carbono. Daqui para a frente, porém, centrará esforços no desenvolvimento dos chamados biocombustíveis de segunda geração, ou seja, etanol extraído de diferentes tipos de biomassa, como bagaço de cana e lascas de madeira. Segundo a empresa, lidar com produção e distribuição de biocombustíveis é algo que tem mais afinidade com seu negócio atual - o dos combustíveis fósseis - do que a fabricação de painéis solares.

O episódio envolvendo a Shell ilustra com clareza como a crise mundial vem colocando à prova a estratégia de sustentabilidade das empresas. Quer dizer então que a tal onda "verde" passou? Não. Mas a euforia que cercava o tema foi sepultada pela crise com uma pá de cal gigante. "Quando foi a última vez que alguma grande empresa anunciou com estardalhaço planos de se tornar carbono-neutra?", pergunta Michael Liebreich, presidente da consultoria britânica New Energy Finance e especialista em energias renováveis e mercado de carbono. "Não é o momento ideal para convencer um acionista a começar a gastar dinheiro com compensação de emissões." Segundo especialistas, essa profunda desaceleração econômica é o primeiro grande teste do discurso da sustentabilidade - obedecendo a uma lógica darwinista, modismos devem desaparecer. Apenas as estratégias mais viáveis e consistentes sobreviverão. "As empresas ficaram completamente paralisadas nos primeiros cinco meses após o estouro da crise", afirma Mark Lee, presidente da SustainAbility, uma das mais conceituadas consultorias do mundo na área. "Mas já voltaram a se mexer e confesso que estou surpreso com o quanto elas têm se mostrado resilientes em levar à frente seus programas." 


Para entender como a turbulência afetou a estratégia de sustentabilidade das empresas no Brasil, EXAME realizou, em parceria com o Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor da Fundação Instituto de Administração (Ceats-FIA), uma pesquisa com 81 companhias de médio e grande porte instaladas no país. Encerrado no final de maio, o levantamento mostra a situação dos investimentos das empresas nas esferas econômico-financeira, ambiental e social nos três anos anteriores à crise (de 2006 a 2008) e de setembro do ano passado até agora.

A conclusão é que, impulsionadas pela pujança econômica dos últimos anos, muitas companhias vinham destinando um volume crescente de recursos para ações de sustentabilidade. De 2006 a 2008, 48% do universo pesquisado aumentou em até 21% os investimentos anuais para reduzir o uso de recursos naturais em suas operações e preservar ou regenerar ecossistemas. Os programas para diminuir emissões e resíduos também aumentaram em 43% delas. A situação era ain­da melhor para o investimento social pri­vado, dinheiro que as empresas repassam para projetos sociais, ambientais e culturais de interesse público: 51% das companhias aumentavam a cada ano os aportes nos projetos que gerenciavam diretamente ou por meio de suas fundações e institutos. Com a crise, a maioria das empresas optou por não aumentar os investimentos em sustentabilidade em 2009 - e, em alguns casos, até reduzir os valores em comparação ao ano anterior. A área mais afetada foi a de gestão ambiental, em que 14% das empresas entrevistadas afirmaram ter diminuído os aportes.

A FABRICANTE DE PAINÉIS de madeira Masisa, sediada no Paraná, é uma das companhias que optaram por preservar seus investimentos ambientais. No final de junho, a empresa colocará em operação em Montenegro, no Rio Grande do Sul, sua segunda fábrica. O projeto começou a sair do papel em 2007 e vai exigir 223 milhões de reais - 14% desse total em iniciativas ligadas ao meio ambiente.

Nessa fábrica, toda a água usada nos processos fabris virá de uma lagoa de cerca de 3 hectares construída pela empresa (equivalente a três campos de futebol) que vem sendo enchida exclusivamente com água de chuva. "Numa crise, qualquer esforço para melhorar a ecoeficiência da operação passa a fazer mais sentido", diz Jorge Hillmann, diretor-geral da subsidiária brasileira da Masisa. "Podemos sobreviver a uma estiagem de até quatro meses sem captar água no sistema e pagar por isso."Mas não foram apenas os aportes ligados a ecoeficiência, fáceis de justificar sob a ótica da redução de custos, que a companhia levou à frente. A fábrica de Montenegro também terá um "lavador de partículas" - equipamento de 3,5 milhões de reais que impedirá que partículas muito finas de madeira resultantes da fabricação dos painéis sejam lançadas na atmosfera. "A legislação ambiental brasileira ainda não exige o seu uso", diz Hillmann. "Estamos nos adiantando." 


A operação brasileira da suíça Tetra Pak, fabricante de embalagens longa vida, faz parte do grupo de 15% das empresas analisadas na pesquisa de EXAME que decidiram aumentar seus investimentos ambientais durante a crise. Sua bandeira verde é incentivar a reciclagem de seu produto por meio de programas educativos, campanhas institucionais e apoio a cooperativas de catadores.

Em 2008, para colocar em prática essas ações, a Tetra Pak conseguiu que a matriz aprovasse uma verba de 8,5 milhões de reais - 70% maior que a de 2007. Neste ano, o desembolso chegará a 10 milhões de reais, o que permitirá, por exemplo, que a companhia veicule no segundo semestre em TV e rádio uma nova campanha institucional. O dinheiro extra da matriz permitiu também que a Tetra Pak fizesse algo que não estava nos planos: gastar 250 000 reais por mês na compra de 1 tonelada de embalagens longa vida coletadas pelas cooperativas. Com a desaceleração das atividades das empresas de papel e celulose - as principais compradoras das cooperativas -, o preço das embalagens usadas caiu cerca de 35% desde o início de 2008. Com receio de que essa queda desmotivasse a coleta, a Tetra Pak decidiu comprar o produto - para revendê-lo no futuro, quando o preço se estabilizar. "Depois de anos gastando energia e dinheiro para estruturar essa cadeia, seria péssimo para nós se a crise a desmantelasse", diz Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak. Há oito anos, o percentual de embalagens de longa vida reciclado no país era de 15%. No ano passado superou 26%.

Surpreendentemente, o corte dos aportes na esfera social foi o menos drástico. "Os investimentos sociais normalmente têm custo mais baixo que os ambientais", afirma Elidia Maria de Novaes Souza, pesquisadora do Ceats e responsável pelo levantamento feito em parceria com EXAME. Quase 63% das empresas entrevistadas mantiveram seus investimentos nessa área e apenas 5% declararam ter feito alguma redução.

Uma delas foi a gaúcha Gerdau (a siderúrgica confirmou os cortes, mas não deu detalhes da decisão). Cerca de 32% afirmaram ter aumentado os gastos nesse campo. Dentro desse universo está a operadora de telefonia Oi, que aumentou de 23 milhões de reais em 2008 para 30 milhões neste ano a verba para seu braço social, o Instituto Oi Futuro. O dinheiro será usado, por exemplo, para inaugurar duas escolas do programa Oi Kabum! nas cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Nas duas unidades que já existem, em Recife e Salvador, a cada ano 160 jovens carentes ganham conhecimento técnico para trabalhar com vídeo, computação gráfica e webdesign, entre outros temas. O Oi Futuro também ampliará a abrangência do programa Tonomundo, que leva internet e conteú­do didático para escolas públicas. 


Aproximar-se das comunidades e de seus clientes é vital para uma companhia em expansão acelerada, como a Oi. "Além da qualidade do produto ou do serviço, a maneira como as empresas se relacionam com a sociedade é cada vez mais uma estratégia de diferenciação em relação aos concorrentes", diz Fernando Rossetti, secretário executivo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife).

E a necessidade das companhias de manter uma boa imagem para com o público torna-se ainda mais importante em tempos de turbulência. "Sabe aquela velha história de cuidado com a reputação?", diz Ricardo Young, presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. "Ela não foi abalada pela crise." Por isso, qualquer mudança que a empresa faça em sua política de sustentabilidade neste momento deve ser conduzida com cuidado. Em outubro, 72 entidades selecionadas por meio de edital para começar a receber, ainda em 2008, apoio financeiro da Petrobras para seus projetos foram avisadas de que teriam de esperar até o início de 2009. "Havia muita insegurança em relação ao que ia acontecer no Brasil e no mundo e nós recebemos da direção a ordem de diminuir o ritmo dos repasses até que a coisa clareasse um pouco", afirma Janice Dias, gerente de programas sociais da Petrobras. O anúncio foi suficiente para deflagrar um boato de que a estatal teria cortado o repasse de recursos para dezenas de ONGs - a situação só foi completamente contornada quando a Petrobras começou a fazer os depósitos para as organizações, em abril.

A escassez de dinheiro tem obrigado as empresas a fazer escolhas. Se não há capital para levar adiante todos os projetos, o que deve ser priorizado? Essa foi a dúvida, por exemplo, da petroquímica brasileira Braskem, do grupo Odebrecht. Há cerca de dois anos, a empresa sur­preen­deu o mercado ao desenvolver um plástico com o etanol de cana-de-açúcar, matéria-prima 100% renovável. O "plástico verde" começará a ser produzido em escala industrial em 2011. E, após a eclosão da crise e diante de um prejuízo líquido de 2,4 bilhões de reais em 2008, os executivos da Braskem decidiram tirar recursos de projetos convencionais e manter os esforços no desenvolvimento de tecnologias sustentáveis. "Como nosso investimento em pesquisa e desenvolvimento deve ser cerca de 15% menor que o de 2008, optamos por desacelerar estudos que hoje são menos estratégicos para o negócio e centrar nos renováveis", afirma Luis Fernando Cassinelli, diretor de inovação da empresa. Um dos campos de pesquisa que foram deixados de lado foi o de nanocompósitos - partículas adicionadas ao plástico para que ele adquira diferentes propriedades.


EMPRESAS QUE ESCOLHERAM a rota da sustentabilidade há mais tempo estão agora descobrindo que ela pode torná-las menos vulneráveis à crise. A madeireira paraense Cikel, que exporta 80% de sua produção, está sofrendo com a queda mundial na demanda pelo produto. Ainda assim, espera crescer 5% neste ano e faturar 138 milhões de reais. A explicação é que 70% da madeira negociada pela empresa é certificada segundo os padrões do Conselho de Manejo Florestal (na sigla em inglês, FSC). E o produto que leva o selo verde teve queda de preço de 5% de outubro pra cá - ante 20% da madeira não certificada. Pequenos produtores agrícolas de países em desenvolvimento que obedecem a critérios sociais e ambientais e possuem selos do chamado comércio justo também estão sendo menos afetados pela desaceleração. Segundo a Fairtrade International, ONG com sede na Alemanha, hoje as vendas globais de produtos que seguem essas regras chegam a 3,2 bilhões de dólares. A tendência está atrelada ao comportamento de um grupo de grandes empresas de bens de consumo que, para conquistar consumidores engajados, declararam recentemente que pretendem comprar mais desses fornecedores. Entre elas estão Unilever e Starbucks, que deve dobrar o volume de café certificado vendido em suas lojas até o final do ano.
 

Por enquanto, quem mais perdeu com a crise foi o mercado de energias limpas. No Brasil, a escassez de crédito afetou fortemente o setor de etanol. Em questão de meses, esse mercado, que despontava como uma das grandes promessas da economia, despencou - e várias empresas se viram em dificuldades. Afundada em dívidas, a Santelisa Vale, segunda maior usina de açúcar e álcool do país, foi comprada em abril pelo grupo francês Louis Dreyfus Commodities. A Infinity Bio-Energy, criada há pouco mais de três anos com dinheiro de fundos estrangeiros e com uma dívida que hoje supera 1 bilhão de reais, entrou com pedido de recuperação judicial dias atrás. Segundo um levantamento feito pela New Energy Finance em janeiro, dos 135 projetos de usinas previstos para ser implantados no Brasil até 2012, 46% tiveram sua execução adiada e outros 6% foram abandonados. "Só as empresas muito capitalizadas estão conseguindo escapar desse terremoto", diz Camila Ramos, chefe de pesquisa da New Energy Finance para a América Latina. No resto do mundo, a situação não é muito diferente. De acordo com a consultoria, no primeiro trimestre deste ano os investimentos em energias renováveis sofreram queda de 44% em relação aos últimos três meses de 2008. Se comparado ao mesmo perío­­do do ano anterior, o volume de 13,3 bilhões de dólares é ainda 53% menor. A boa notícia é que mais de 150 bilhões de dólares em pacotes governamentais verdes de estímulo - entre eles o do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama - devem trazer de novo à vida parte dos investimentos em renováveis. "Estamos vivendo um hiato", afirma Liebreich, presidente da New Energy Finance. Ainda que advogando em causa própria, ele diz que a economia verde certamente vai voltar a atrair investidores no futuro - a previsão da consultoria é que os investimentos cresçam no segundo trimestre deste ano. E a razão é simples. "Nada mudou em relação à ameaça do aquecimento global."


Sinais trocados
O que mudou em relação a alguns dos principais temas ligados à sustentabilidade depois da crise
 
Ecoeficiência
Obcecadas em reduzir custos, as empresas continuam investindo pesado em iniciativas que possam diminuir o consumo de água, energia e outros insumos. Na nova fábrica da Masisa, produtora de painéis de madeira, a ser inaugurada no final de junho no Rio Grande do Sul, uma lagoa foi construída para armazenar água da chuva - que deverá abastecer todos os processos fabris. O custo do projeto foi de 2,3 milhões de reais.

Comércio justo e certificação
Para agradar consumidores preocupados com questões sociais e ambientais - e, de quebra, melhorar sua imagem -, muitas empresas de alimentos têm se comprometido a aumentar o volume de compras de matérias-primas de fornecedores de pequeno e médio porte de países em desenvolvimento. A Starbucks declarou recentemente que vai dobrar neste ano a compra de café certificado pelas regras do comércio justo.

Investimento social privado
Preocupada com a reputação, a maioria das empresas optou por manter praticamente inalterado o volume de recursos destinados a projetos sociais próprios. No universo de 80 companhias pesquisadas por EXAME, 65% delas - Ampla, Intel, Nokia, Natura e outras - afirmaram não ter promovido cortes nessa área.

Energia limpa
Com a escassez de capital no setor privado, os investimentos em energia limpa no mundo somaram 13,3 bilhões de reais nos primeiros três meses do ano - volume 44% inferior ao do trimestre anterior. Um dos segmentos que têm sofrido é o de etanol. No Brasil, empresas como Santelisa Vale e Infinity Bio-Energy estão em péssima situação financeira. Mas a tendência é que as energias renováveis se recuperem no médio prazo com a chegada ao mercado de mais de 150 bilhões de dólares de pacotes governamentais verdes em todo o mundo.

Carbono
Com a desaceleração industrial nos países europeus, o mercado de créditos de carbono encolheu. As negociações da commodity movimentaram 28 bilhões de dólares no primeiro trimestre deste ano - valor 16% menor que o do último trimestre de 2008. A resseguradora europeia Swiss Re, uma das pioneiras nesse mercado, anunciou em abril o fechamento de sua mesa de negociação de contratos de carbono.

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