Em primeira reunião de China e EUA sob Biden, até George Floyd é invocado
Em reunião com os principais diplomatas dos dois países, chineses e americanos discordaram em tudo. Encontro tenso ajudou a bolsa na China a cair 3% nesta madrugada
Carolina Riveira
Publicado em 19 de março de 2021 às 11h16.
Última atualização em 19 de março de 2021 às 11h51.
A aguardada primeira reunião entre oficiais de China e Estados Unidos aconteceu na noite desta quinta-feira, 18, e terminou com sabor amargo — mostrando que os embates constantes no governo Donald Trump continuarão sob Joe Biden.
No encontro, realizado no Alasca, nos EUA, os representantes chineses e americanos discordaram em quase tudo, segundo fontes que estiveram na reunião ouvidas pela agência Bloomberg. As partes se encontram pela última vez novamente nesta manhã de sexta-feira, 19.
Participam do encontro pelo lado americano Antony Blinken, secretário de Estado, e Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional, os dois principais nomes da política externa no governo e ambos com participação no governo de Barack Obama, quando Biden era vice — e quando as relações com a China eram, ainda, mais amenas.
Já os chineses enviaram ao encontro o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, e Yang Jiechi, responsável pelas Relações Exteriores no Partido Comunista.
A conversa entre os oficiais foi, em parte, voltada a seus públicos domésticos, com ambos os lados tentando mostrar que são duros em relação à negociação.
Blinken acusou a China de atrapalhar a estabilidade global e criticou políticas de direitos humanos no país, enquanto Yang Jiechi disse que os EUA não estavam "qualificados para falar com a China" como se fossem mais fortes e citou até os problemas raciais nos EUA, após os protestos com a morte de George Floyd em 2020.
O diplomata chinês Yang Jiechi afirmou que os direitos humanos nos Estados Unidos estão em um ponto baixo, com os negros do país sendo "massacrados", e acrescentou que os EUA deveriam cuidar dos próprios assuntos enquanto a China lida com os seus.
Yang também disse que é necessário abandonar uma "mentalidade de Guerra Fria", e o confronto, e completou:
"A maneira na qual enxergamos a relação com os Estados Unidos é como o presidente Xi Jinping já disse, que esperamos não ver confrontos, conflitos, e sim respeito mútuo e cooperação com os Estados Unidos para que todos saiam ganhando".
O clima tenso na reunião ajudou o índice acionário chinês CSI 300 a fechar em queda de quase 3% nesta madrugada, após pressão que já vinha de Wall Street, cujas bolsas fecharam em baixa no dia anterior. O índice de Hang Seng, em Hong Kong, também fechou em queda de 1,41%.
Apesar dos sinais de que a guerra comercial vai continuar, ambas as partes devem tentar, neste e nos próximos encontros, algum tipo de aproximação diplomática. A China precisa de maiores acordos com os EUA em temas como a liberdade comercial da Huawei (banida nos EUA e contra quem o governo americano faz lobby entre os aliados no Ocidente) e a venda à China de equipamentos tecnológicos americanos, como softwares e semicondutores.
Enquanto isso, a China tem sob o braço a certeza de que se tornará, em alguns anos, a maior economia do mundo: as projeções mais recentes dão conta de que o produto interno bruto (PIB) chinês pode ultrapassar o americano ainda nesta década.
Já os EUA, apesar da retórica negativa contra os produtos chineses, é um dos maiores clientes do país e de seus manufaturados. As importações dos EUA vindas da China cresceram nos últimos anos, mesmo em meio à guerra comercial.
Uma das áreas onde houve diálogo mais ameno foi na concordância de ambas as partes de que as duas maiores economias do mundo precisam cooperar em combate às mudanças climáticas e controle da pandemia e na economia pós-covid. Os oficiais de Biden também expressaram abertura para possivelmente retirar algumas das restrições a vistos para chineses nos EUA, implementadas por Trump - mas o mesmo desejo não foi estendido às sanções econômicas, o que era um desejo da China.
Os oficiais chineses também desejavam que os americanos concordassem com um encontro entre Joe Biden e o presidente chinês, Xi Jinping, ainda no próximo mês, como um ato simbólico no Dia da Terra (em 22 de abril). Mas os EUA estão reticentes em um encontro entre os dois líderes tão cedo e a reunião, até agora, parece não estar certa de acontecer.
Mudança de paradigma
Antes do encontro, o tom já havia subido entre as partes. O governo Biden sancionou nesta semana 24 autoridades chinesas com atuação em Hong Kong. O motivo é o avanço da repressão chinesa sobre os direitos políticos na ilha. Ao longo dos últimos anos, autoridades e produtos de ambos os lados também já haviam sido alvos de sanções.
Enquanto isso, em visita a Coreia do Sul e Japão nesta semana, ambos aliados americanos na Ásia, Blinken voltou a criticar a China, afirmando que o país está "agindo tanto mais repressivamente em casa quanto mais agressivamente no exterior".
O episódio pode ser uma prévia dos desafios que os dois países terão para se entender. Blinken e outros grandes nomes da política externa de Biden, figuras conhecidas em Washington há décadas, devem falar mais grosso agora do que na era Obama.
Para Anatole Kaletsky, co-presidente da Gavekal Research , uma das maiores casas de análise do mundo e parceira da EXAME Invest Pro , a guerra comercial vai continuar, mas com retórica mais amena e por "motivos diferentes".
Em relatório sobre os riscos para a macroeconomia global em 2021 ( incluindo para o Brasil ), Kaletsky aponta que a retórica do governo Biden deve ser mais estratégica, levando em conta os aliados americanos na Ásia e, queira Biden ou não, a interdependência entre as duas economias. Temas de direitos humanos também seguirão sendo frequentes.
"Biden e os pragmáticos nomeados para dirigir sua política externa acharão mais fácil seguir uma estratégia de diálogo crítico, mas pacífico, a um confronto inútil", escreve Kaletsky. A ver se alguma mudança prática na relação se desenhará nos próximos meses.
(Com Reuters)