Pressões demográficas redesenham a arena política
As discrepâncias entre os perfis demográficos de países, grupos étnicos, religiosos e econômicos exercerão cada vez mais influência sobre as disputas pelo poder
Da Redação
Publicado em 24 de setembro de 2012 às 10h52.
Em uma de suas assombrosas previsões, o francês Alexis de Toqueville cravou em 1835 que Estados Unidos e Rússia disputariam o futuro do planeta. A célebre passagem encerra o primeiro volume de A Democracia na América: "Existem hoje, sobre a terra, dois grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parecem adiantar-se para o mesmo fim: são os russos e os anglo-americanos (...)
O americano tem por principal meio de ação a liberdade; o russo, a servidão. (...) Cada um deles parece convocado, por um desígnio secreto da providência, a deter nas mãos, um dia, os destinos de metade do mundo".
Notas de rodapé mostram que o historiador se valeu de numerosos dados demográficos para antever a polarização que marcou o planeta no século XX: a população das grandes e pequenas cidades, o número de trabalhadores rurais, a proporção de escravos, índios, imigrantes, os grupos religiosos etc.
Toqueville considerava que os americanos e os russos estavam então em franco crescimento demográfico, vindo a ocupar "amplos espaços vazios", ao contrário dos europeus, "que parecem ter chegado mais ou menos aos limites traçados pela natureza".
A análise certeira de Toqueville antecipa em quase dois séculos um campo hoje emergente das ciências sociais, a demografia política. Seu objetivo é vencer o fosso que separa a ciência política da montanha de dados populacionais, cujo tratamento matemático é cada vez mais sofisticado.
Quando bem-sucedido, o esforço permite traçar cenários políticos com razoável grau de confiança. Que o digam os estrategistas de campanha, sempre prontos a moldar o discurso dos candidatos em função de eleitorados emergentes, como se vê tanto na disputa pela Casa Branca como na corrida pela prefeitura de São Paulo.
Os recados da demografia já estão no radar das campanhas mas ainda custam a chegar à gestão pública. "Não conheço uma Secretaria de Educação no Brasil que tenha um especialista em demografia, que saiba quantas crianças vão nascer nos próximos anos e, portanto, quantas escolas precisam ser abertas ou fechadas", exemplificou a VEJA o educador João Batista Araujo e Oliveira.
É o que lamenta Jack Goldstone, professor da Universidade George Mason, em Virgínia (EUA). Daí o livro Demografia política: como as mudanças populacionais estão remodelando questões de segurança internacional e política nacional (em tradução livre), que editou em companhia de Eric Kaufmann, da Universidade de Londres, e Momica Duffy Toft, da Harvard.
Lançada em junho de 2012, a obra alerta para as tendências que vão redesenhar o mundo até 2050.
Essas mudanças já estão em curso e em boa medida não têm precedente histórico. Isso porque o crescimento populacional nunca foi tão desigual.
Goldstone resume: o mundo de amanhã não será simplesmente o mundo de hoje, só que com mais gente. As discrepâncias entre os perfis demográficos tanto de países como, dentro de suas fronteiras, dos grupos étnicos, religiosos e econômicos exercerão enorme pressão sobre a arena política, deem-se as disputas nas urnas, nos foros diplomáticos ou nos campos de batalha.
Bomba demográfica
Para sucessivos governos israelenses, desde o primeiro gabinete do premiê David Ben-Gurion, demografia é uma questão existencial. Yasser Arafat dizia que a altíssima fertilidade das mulheres palestinas (6,8 filhos em média na Faixa de Gaza) era a 'bomba biológica' que daria a 'vitória final' sobre os judeus.
Por muito tempo, Israel compensou a diferença das taxas de fertilidade com políticas de estímulo a imigração. Mais recentemente, entrou no radar dos analistas uma nova força demográfica: os índices de natalidade de judeus ultraortodoxos (8 filhos por mulher), ainda mais altos que os de palestinos.
Até 2025, 12% dos israelenses serão judeus ultraordoxos e pode-se prever que esta parcela da população passará a exigir crescente representação política.
A relação entre fervor religioso e fecundidade é conhecida dos demógrafos. As principais religiões são todas entusiastas do casamento e da procriação, com censuras ao divórcio, aborto e homossexualismo.
Famílias muito religiosas são comumente mais numerosas que as seculares, o que vale tanto para fundamentalistas islâmicos, como judeus ultraordoxos e cristãos conservadores americanos. Esta diferença explica, por exemplo, a recente inversão no Líbano, onde muçulmanos passaram cristãos e hoje são maioria.
Em 1971, um raro estudo sobre fertilidade das mulheres libanesas encontrou os seguintes números: sete filhos em média para muçulmanos xiitas, quase seis para sunitas, cinco para famílias drusas e entre quatro e cinco para cristãos.
A cartada evangélica
O Brasil também caminha para uma inversão de seu perfil religioso, e a razão é a emergência da população evangélica, em particular das correntes pentecostais e neopentecostais.
Em 1970, 91,8% dos brasileiros eram católicos. Em 2010, eram 64,6%. Mantida a tendência, evangélicos e católicos se igualarão em no máximo 30 anos, mas desde já o crescente peso do eleitorado evangélico ganha o primeiro plano na disputa eleitoral.
Nos Estados Unidos, a mobilização do eleitorado evangélico é uma cartada eleitoral dos anos 1970 e já não tem a mesma força em 2012: o perfil demográfico americano está mudando, e até 2050 o país de protestantes anglo-saxões será composto majoritariamente por hispânicos, asiáticos e negros.
Este tendência é interpretada como um trunfo de longo prazo dos democratas, com quem as minorias, historicamente, têm maior afinidade.
Outono europeu
O crescimento acelerado das minorias americanas é o que tem mantido o perfil demográfico relativamente saudável do país. Das grandes potências, os Estados Unidos são a única onde a fertilidade (2,07 filhos em média) é próxima à taxa de reposição (2,1), que garante uma população estável.
A maioria dos países europeus e muitos asiáticos convivem desde os anos 1970 com taxas bem inferiores e atravessam agora a uma espécie de outono demográfico, marcado pelo super-envelhecimento, o encolhimento da força de trabalho e, eventualmente, redução populacional.
Na Alemanha e Japão, a média de filhos por mulher é pouco maior que 1,3, e suas populações já estão diminuindo. É o último estágio da chamada transição demográfica.
Este fenômeno consiste na passagem de uma população com alta taxa de fecundidade e baixa expectativa de vida para a situação oposta. Evidentemente, os países não experimentam ao mesmo tempo esta transição, daí as pressões políticas que a demografia permite antever.
O primeiro estágio da transição demográfica consiste na queda da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida, indicadores que os mais básicos cuidados com saúde, saneamento e alimentação são capazes de revolucionar.
O resultado imediato é um vigoroso aumento populacional. Muitos países empacam nesta primeira fase (atualmente são 45, a maioria na África e Oriente Médio). A Etiópia é um bom exemplo: de 2000 a 2010, a expectativa de vida aumentou de 51 para 56 anos, mas a fertilidade se manteve alta (acima de 6 filhos por mulher)
. Em 1995, a Etiópia tinha uma população equivalente à da França (57 milhões). Tudo o mais constante, em 2035 a França terá 71 milhões de habitantes, e a Etiópia, mais que o dobro, 154 milhões.
"É uma novidade na história da demografia mundial: grande parte do crescimento populacional ocorre em países pobres. Se há 50 anos a população da Europa era duas vezes a da África, daqui a 50 anos a população da África será três vezes maior do que a da Europa", diz Goldstone. "Até 2050, as diferenças entre os países pobres e ricos serão máximas", acrescenta Kaufmann.
Oportunidade única
Em um segundo momento da transição demográfica, a taxa de natalidade começa a cair, em função de fatores que se ligam à escolaridade, urbanização, crescimento econômico, políticas de saúde pública etc. O resultado é o aumento da população adulta – economicamente ativa –, ainda desobrigada do ônus de sustentar um número muito grande de idosos ou de crianças.
É uma chance rara e única de desenvolvimento, que todos países ricos souberam aproveitar. Esta janela de oportunidade está atualmente aberta a alguns dos países emergentes, como Turquia, Irã, Vietnã, Indonésia, China, Indonésia e, notadamente, o Brasil. Em 1965, havia noventa brasileiros dependentes para cada 100 em idade economicamente ativa. Hoje, essa relação é de 45 para 100.
"Países que tiveram uma queda recente na taxa de fecundidade têm um futuro promissor pela frente. O número de trabalhadores está crescendo muito, enquanto o número de crianças dependentes tem um crescimento mais ameno", diz Goldstone. "Mas para tirar proveito dessas oportunidades, é preciso se concentrar em algumas medidas políticas e econômicas para melhorar as condições dos jovens, incluindo investimento em educação e criação de empregos."
Este bônus demográfico tem prazo para acabar. Até meados do século, o contínuo envelhecimento da população fecha esta janela de oportunidade. E taxas de natalidade persistentemente baixas lançam o país rumo à etapa final da transição demográfica.
Campanhas para acelerar os primeiros estágios da transição já se mostraram eficientes, como mostram a China e, principalmente, a Coreia do Sul. Nos anos 1970, Seul divulgava os seguintes lemas: "pare em dois (filhos), independente do sexo " e "uma garota bem criada vale por dois garotos". Nos anos 1980, a chave era "dois (filhos) é demais".
Hoje em dia o país tem o perfil demográfico que os europeus levaram séculos para alcançar – e as mesmas preocupações.
Já as tentativas de reverter a transição têm se mostrado em geral ineficazes e não raro ridículas, como o "dia do sexo". Instituída em 2007 na província russa de Ulyanovsk, a campanha premiava famílias com um veículo utilitário por cada bebê nascido nove meses depois do "dia do sexo".
Paz geriátrica
Demógrafos tratam esta transição como uma fatalidade – efeito do próprio desenvolvimento humano. Disso decorre, como exemplo mais óbvio, que os custos com aposentadorias serão crescentes (mais de um quarto do PIB europeu até 2040).
E que será cada vez mais comum o modelo chinês conhecido como 4-2-1, resultado da política de filho único com o aumento da longevidade: um filho sustenta o pai, a mãe e os quatro avós. Mas há também um efeito até pouco tempo atrás inesperado: sociedades com mais adultos e velhos tendem a ser mais pacíficas.
Estudando a frequência de golpes, guerras civis e confrontos entre países vizinhos, demógrafos encontraram a seguinte relação: onde a faixa etária predominante é jovem, são maiores as chances de conflito armado; onde predominam os adultos e os idosos, são maiores as chances de uma democracia liberal.
A explicação para isso é que gangues, milícias e revoltas populares têm um custo de mobilização muito mais baixo onde há jovens em excesso e empregos em escassez.
As evidências desta hipótese podem ser encontradas em diversas épocas e continentes: nos Bálcãs, na América Latina e no Sudeste Asiático de décadas recentes e também no Oriente Médio e norte da África dos dias de hoje. Também esta oportunidade de "paz geriátrica" exigirá maior atenção aos recados da demografia política.