A crise está só começando no Mali, um país com histórico de golpes
O presidente renunciou ao cargo e grupo que apoia os rebeldes disse que prisão do mandatário "não é um golpe militar, mas uma insurreição popular"
Carolina Riveira
Publicado em 19 de agosto de 2020 às 08h44.
Última atualização em 19 de agosto de 2020 às 11h23.
Após ser vítima de um golpe militar, o governo do Mali renunciou. O presidente Ibrahim Boubacar Keita fez pronunciamento na televisão ainda na noite desta terça-feira, 18, e anunciou que Parlamento e o governo estão dissolvidos. "Não quero que sangue seja derramado para que eu continue no poder", disse o presidente, segundo a AFP.
O canal de televisão estatal do Mali havia ficado fora do ar após a série de detenções ontem, antes de voltar no início da noite com programação gravada e com o pronunciamento do presidente Keita.
O presidente e importantes autoridades do governo foram detidos na terça-feira por soldados rebeldes na capital Bamako. A deposição do governo mergulha o Mali em uma crise ainda mais profunda o país que já enfrenta uma insurgência jihadista e protestos populares.
À detenção de Keita em sua residência na capital, se seguiram horas de incerteza. Os soldados se amotinaram durante a manhã na base militar de Kati, nos arredores da capital, e detiveram, além do presidente, uma série de autoridades civis e oficiais militares.
O primeiro-ministro, Boubou Cissé, havia pedido diálogo mais cedo e exigido que os rebeldes entregassem suas armas, mas também foi preso.
Não ficou imediatamente claro quem estaria liderando os soldados rebeldes ou quais eram as motivações do grupo. Um porta-voz das Forças Armadas do país disse não ter informações, segundo a Reuters.
O Mali vive uma intensa crise política, com protestos diários nas ruas há pelo menos dois meses contra o governo do presidente Keita. A oposição está reunida sob o chamado Movimento 5 de Junho, que tem uma grande presença de militares.
A coalizão do movimento de oposição indicou apoio ao ato dos amotinados. O porta-voz Nouhoum Togo disse à Reuters que o acontecimento "não é um golpe militar, mas uma insurreição popular".
Organizaçoes internacionais condenaram o golpe, mas parte dos moradores da capital e opositores foi fotografada comemorando nas ruas. Organizações como a Comunidade dos Estados da África Ocidental (Cedeao), da qual o Mali faz parte, disseram ser contra o motim. O secretário-geral da ONU, António Gutérrez, pediu liberação "imediata" das autoridades presas.
Um dos países mais pobres do mundo
Colônia francesa durante o período colonial, o Mali é um país de 19 milhões de habitantes e um dos mais pobres do mundo. O país fica na região conhecida como África Ocidental, cujo principal setor da economia é a agricultura de clima tropical -- no caso do Mali, mais de 80% dos trabalhadores está na agricultura e as principais atividades são plantio de algodão, criação de gado e exploração de ouro. O Mali faz fronteira com países como Argélia, Níger, Costa do Marfim e Senegal.
A França, que até hoje tem negócios e interesses econômicos no Mali, condenou o golpe e disse que é preciso respeitar "a soberania e a democracia" no Mali. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, disse que um golpe "nunca é a solução para uma crise, por mais profunda que seja".
O Mali tem uma longa história de golpes desde sua independência em 1960. Logo em 1968, veio o primeiro golpe pós-independência, liderado também pelo militar Moussa Traoré. Traoré ficaria no poder, como primeiro-ministro e depois presidente, até 1991, sob um regime militar.
Traoré foi retirado do poder por novo golpe, em 1991. Seguiu-se um governo de transição que elaborou uma nova constituição antes que o país realizasse suas primeiras eleições democráticas, só em 1992.
As décadas que se seguiram foram de estabilidade para o Mali, que se tornou um dos países mais estáveis politicamente na África. Mas outro golpe militar, em 2012, derrubou o então presidente Amadou Toumani Touré (sem relação com o presidente Traoré da década de 1960). Desde então, o país sofre nova onda de instabilidade, secas, violência étnica e religiosa e pobreza extrema.
(Com agências internacionais)