Nas últimas semanas, o governo endureceu a repressão contra os opositores (Oswaldo Rivas/Reuters)
AFP
Publicado em 20 de julho de 2018 às 10h07.
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, comemorou nesta quinta-feira o 39º aniversário da Revolução Sandinista proclamando vitória sobre os manifestantes que exigem sua saída, e chamando a liderança da Igreja de "golpista".
No discurso pelo aniversário da revolução, Ortega acusou os bispos católicos, que mediam o diálogo entre seu governo e a oposição, de ser parte de um "plano golpista" que pretende tirá-lo do poder.
Os bispos "estão comprometidos com os golpistas, eram parte do plano com os golpistas e me dói muito dizer isso porque eu lhes tenho muito apreço", disse o presidente durante o ato comemorativo em Manágua.
O bispo auxiliar de Manágua, Silvio Báez, respondeu ao discurso de Ortega no Twitter assinalando que a Igreja não sofre por ser caluniada, e sim "pelos detidos injustamente e pelos que fogem da repressão".
O governo tomou o controle essa semana da cidade rebelde de Masaya, o último reduto controlado por seus opositores, depois de um violento confronto de seis horas, que deixou ao menos dois mortos. Curiosamente, Masaya também é o berço do nascimento da Revolução Sandinista.
A celebração do 19 de julho costuma ser uma grande festa no país, mas, na véspera, a vice-presidente Rosario Murillo, esposa de Ortega, foi sucinta ao mencionar as comemorações e se limitou a dizer que a data seria celebrada em cada município.
Nas últimas semanas, o governo Ortega endureceu a repressão contra os opositores, e os grupos de direitos humanos denunciam que cerca de 280 pessoas morreram nessas ações.
Forças leais ao presidente mantêm Masaya sob forte vigilância e policiais e paramilitares encapuzados fortemente armados percorrem a cidade em caminhonetes para manter o controle.
"Proclamamos nossa vitória, nosso avanço sobre essas forças tenebrosas, diabólicas, que durante três meses atingiram e sequestraram a paz, mas não conseguiram", declarou Murillo em sua alocução diária com meios de comunicação oficiais.
A Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos (ANPDH) denunciou que 200 habitantes fugiram pelas encostas da lagoa de Masaya perseguidos pela polícia por sua participação nos protestos.
Não ficou claro quantas pessoas morreram na tomada de Masaya. O Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh) documentou dois mortos, enquanto o governo informou que um policial faleceu.
Os opositores nicaraguenses denunciam uma tentativa de criminalizar as manifestações contra Ortega após a aprovação de uma lei de terrorismo que sanciona com até 20 anos de prisão as pessoas que participarem ou apoiarem os protestos.
A legislação define como "terrorista" todos os que "causarem a morte ou lesões de pessoas que não participam diretamente de situações de conflito armado, ou que destruir bens", ou cometa outros crimes com o propósito de "obrigar um governo" a fazer, ou deixar de fazer algo.
O ataque a Masaya foi um desafio aberto à comunidade internacional, que nos últimos dias intensificou os chamados a Ortega para que detenha a violência.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou na quarta-feira uma resolução que exorta o governo da Nicarágua a fortalecer as instituições democráticas e a apoiar eleições antecipadas com a oposição.
O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, defendeu um diálogo "facilitado" pela Igreja como "a instância para resolver aspectos políticos e eleitorais da crise".
Para o sociólogo independente Melvin Sotelo, a vitória do governo sobre os manifestantes se deu às custas dos direitos fundamentais da população nicaraguense.
"Ele sufocou o direito das pessoas de se manifestarem em repúdio ao governo. Não permite que se exerça o direito dos nicaraguenses de se organizar, de escolher livremente suas autoridades e fechou todos os espaços e possibilidades políticas de participação", disse Sotelo à AFP.
Sotelo considerou ainda que a vitória terá um preço alto para Ortega.
"Política e moralmente, o presidente perdeu muito. Isso é uma guerra de um Estado que supostamente deve proteger as vidas das pessoas contra uma população indefesa", enfatizou.
Dessa forma, o atual Daniel Ortega se distancia muito da figura que surgiu com a Revolução Sandinista de 1979, quando liderou o movimento que derrubou a dinastia dos Somoza.
Depois de deixar o poder por via eleitoral em 1990, Ortega voltou à presidência também pelo voto em 2007 e, desde então, elegeu-se mais duas vezes, a última em 2016.
Aliado dos empresários, Ortega despertou críticas por assumir pleno controle dos poderes do Estado: o Parlamento, a Justiça e o tribunal eleitoral.
Seus críticos o acusam de protagonizar, junto com sua esposa, um regime marcado pelo nepotismo e pelo autoritarismo.