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O Iêmen e suas serpentes: a maior crise do Oriente Médio

O assassinato do ex-ditador piora ainda mais a crise política e humanitária no país mais conflagrado da região

HOUTHIS CELEBRAM A MORTE DE SALEH: o ex-ditador havia anunciado uma “nova página” com a Arábia Saudita e seus aliados (Khaled Abdullah/Reuters)
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EXAME Hoje

Publicado em 6 de dezembro de 2017 às 18h34.

Última atualização em 6 de dezembro de 2017 às 18h35.

Ditador do Iêmen durante 33 anos, Ali Abdullah Saleh dizia que governar o país era como “dançar sobre as cabeças de serpentes”. Na segunda-feira, uma das cobras que ele ajudou a criar o engoliu. A milícia xiita Houthi matou Saleh depois que o ex-ditador se reconciliou com a Arábia Saudita, que lidera uma coalizão militar de apoio ao governo.

De Israel ao Irã, o Oriente Médio vive dias caóticos, que ficam ainda mais imprevisíveis com a decisão do presidente americano, Donald Trump, de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, nesta quarta-feira. Mas nada se compara ao Iêmen.

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A ruptura da aliança de três anos entre as tribos lideradas por Saleh e os houthis se consumou no sábado, quando o ex-ditador foi à televisão e defendeu que se passasse a uma “nova página” com a Arábia Saudita e seus aliados, para pôr fim à guerra. Ele se referiu aos houthis — aos quais se aliara três anos depois de ter sido deposto, em 2011, para reconquistar a capital Sana e parte do território do país — como “milícia golpista”, e condenou sua “imprudência”. Os houthis são apoiados pelo regime xiita do Irã, rival regional da Arábia Saudita, uma monarquia sunita.

Ao usar a imagem da dança, Saleh quis dizer que, para sobreviver, é preciso surpreender os outros com o próximo passo. Foi precisamente o que ele não conseguiu fazer dessa vez: os houthis desconfiavam que ele voltaria a se aliar com os sauditas, que bombardeiam seus alvos no Iêmen impiedosamente, numa guerra que deixou mais de 10.000 mortos em três anos, a maioria civis.

Eles estavam preparados. Ao avançar até a casa de Saleh na capital do Iêmen, Sana, os milicianos gritavam “vingança para Hussein al-Houthi”, numa referência ao fundador do grupo, morto por ordem do ex-ditador, há 13 anos. Saleh teve seis guerras contra os houthis, antes de se aliar a eles, em 2014. O corpo do ex-todo-poderoso homem forte iemenita foi exibido em um vídeo na carroceria de uma caminhonete.

Mas os detalhes da morte dele — como tudo no Iêmen — são objeto de disputa. Os houthis cercaram e depois dinamitaram a casa dele em Sana. Um comandante da milícia, o general Abdelwahab Dahab, disse que o ex-ditador havia fugido de Sana, e seu comboio foi surpreendido pelos milicianos no deserto. Já um líder tribal aliado de Saleh afirmou ao jornal The New York Times que os houthis o mataram em sua casa e levaram seu corpo para o deserto, para transparecer que ele foi pego fugindo como um covarde.

Foi o que o líder da milícia, Abdul-Malik al-Houthi, disse na TV: “Hoje é o dia da queda da conspiração da traição. É um dia negro para as forças da coalizão”, acrescentou, referindo-se à aliança militar liderada pelos sauditas, que conta com apoio dos Estados Unidos e de países europeus, que além de lhe darem suporte logístico e informações de satélite, vendem-lhes armas.

Os houthis retomaram boa parte do território que haviam perdido com a debandada de Saleh e seu grupo. A Arábia Saudita e seus aliados reagiram com novos bombardeios a alvos dos houthis, incluindo o palácio presidencial, que havia poupado até então. Ao menos 125 pessoas morreram nos últimos dias.

De acordo com a ONU, o Iêmen é cenário da maior crise humanitária atualmente no mundo. Os sauditas impõem um bloqueio naval ao país, para impedir a chegada de alimentos, remédios e combustíveis, além de armas. Com pouca eletricidade e medicamentos, os hospitais — alguns já bombardeados pela coalizão, assim como escolas e acampamentos de refugiados — têm tido de escolher quais feridos salvar. A falta de água potável ajudou a disseminar uma epidemia de cólera.

Além de um golpe para a estratégia saudita, que acabava de atraí-lo de volta para o seu lado, a morte de Saleh cria uma nova fratura no já fragmentado conjunto de forças em luta no Iêmen — o que torna mais difícil uma solução política.

“O fato de ele ter sido morto dessa maneira vai aprofundar o conflito”, prevê April Longley Alley, do International Crisis Group, um centro de estudos em Bruxelas, que desde 2004 faz pesquisa de campo no Iêmen. “Acho que a guerra pode ficar mais intensa. Isso só acrescenta mais camadas de vingança. Se a Arábia Saudita queria uma saída negociada, essa oportunidade parece perdida agora.”

O Iêmen é um dos tabuleiros da disputa de poder entre Arábia Saudita e Irã, assim como o Iraque, a Síria e o Líbano. No mesmo dia — 4 de novembro — em que o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, renunciou em Riad, denunciando a interferência do Irã no Líbano por meio do Hezbollah, os sauditas afirmaram ter interceptado um míssil disparado pelos houthis contra sua capital, e declararam o ataque um “ato de guerra do Irã”.

Ao visitar Riad em maio, em sua primeira viagem internacional como presidente, Donald Trump deu carta branca à Arábia Saudita no Iêmen, dentro de sua estratégia de enfraquecer o Irã. A campanha no Iêmen, considerada até aqui desastrosa por seu alto custo humano e poucos resultados militares, é importante para a consolidação do príncipe-herdeiro Mohammad bin Salman no poder.

A história de Saleh, que tinha 75 anos, equivale a um estudo de caso das turbulências e idas e vindas não só do Iêmen, mas de toda a região do Golfo Pérsico, Oriente Médio e Norte da África. Ele chegou ao poder no Iêmen do Norte em 1978, quando era um coronel de 35 anos, e liderava um grupo de militares. Com a ajuda de grupos radicais islâmicos, as forças de Saleh venceram a guerra civil que se seguiu, e ele reunificou o país sob sua presidência, em 1994.

O Iêmen se tornou uma base para a Al-Qaeda, cujo líder, Osama bin Laden, era filho de um iemenita que fizera fortuna no setor da construção civil na Arábia Saudita. Alguns radicais islâmicos até foram incorporados ao serviço secreto. Pouco antes de a Al-Qaeda atacar o destróier USS Cole, no porto iemenita de Áden, em 2000, matando 17 tripulantes americanos e ferindo 39, Saleh fez um discurso em defesa da jihad contra Israel e contra os Estados Unidos por seu apoio ao Estado judaico.

Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, no entanto, como vários ditadores da região, Saleh se aliou aos EUA, prometendo ajuda na “guerra contra o terror” em troca do apoio americano. Mas continuou fechando os olhos para a presença de radicais islâmicos em seu país.

Em 2011, durante a Primavera Árabe, seu regime reprimiu duramente as manifestações por democracia, que tiveram a participação maciça dos xiitas, apoiados tacitamente pelo Irã. Dois terços da população iemenita é sunita e um terço, xiita. Os protestos degeneraram em guerra civil.

Ferido em um atentado com explosivos colocados na mesquita de seu palácio, Saleh foi se tratar na Arábia Saudita. Ele voltou, mas acabou em novembro de 2011 aceitando um acordo mediado pelos sauditas, pelo qual entregaria o governo a seu vice, Abd Rabbo Mansour Hadi, que venceu a eleição presidencial em fevereiro de 2012. Até hoje Hadi é reconhecido internacionalmente como o presidente do Iêmen, embora passe a maior parte do tempo na Arábia Saudita.

Acusado de desvios de bilhões de dólares e de atrocidades, Saleh obteve imunidade numa lei aprovada pelo Parlamento. Ao protegê-lo e mediar a transição, a comunidade internacional esperava que ele fosse gozar o resto da vida no exílio.

Mas em vez disso Saleh voltou ao Iêmen em 2014, reagrupou os líderes tribais sob seu comando e se aliou aos houthis, seus antigos inimigos, que lutavam contra o governo de Hadi. O presidente acabou forçado a deixar o país.

A frase de Saleh, ao voltar, foi: “Eu morrerei no Iêmen”. Na segunda-feira, seu destino se consumou. Muitas pessoas ainda morrerão, não só no Iêmen mas em toda a região, até que as disputas entre Irã e Arábia Saudita, xiitas e sunitas, e simplesmente entre clãs rivais, cheguem ao fim.

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