Não há uma boa estratégia de combate ao EI, diz autor sírio
Em entrevista a EXAME.com, autor de “Estado Islâmico – Desvendando o Exército do Terror” discutiu o surgimento do grupo e as diferenças com Al Qaeda
Gabriela Ruic
Publicado em 17 de novembro de 2015 às 08h59.
São Paulo – O mundo assistiu estarrecido aos desdobramentos dos ataques terroristas que atingiram Paris em cheio no último final de semana. Não demorou até que militantes Estado Islâmico ( EI ) reivindicassem os atos que deixaram mais de cem mortos na França.
Nascido das cinzas da rede Al Qaeda no Iraque , o grupo está consolidando o seu domínio na Síria e Iraque e espalhando a sua barbárie em zonas de influência que compreendem diferentes países, como o Egito e a Líbia.
A quantidade de militantes que lutam pelo estabelecimento do califado é incerta, mas sabe-se que entre eles há homens e mulheres de várias idades e nacionalidades. O que leva essas pessoas a se juntarem aos extremistas tampouco é consenso entre especialistas.
O analista sírio Hassan Hassan, natural da província de Deir-Ezzor, que é hoje controlada pelo EI, investigou a história do grupo e com o jornalista Michael Weiss (do The Guardian) escreveu o livro “Estado Islâmico – Desvendando o Exército do Terror”, já à venda No Brasil, no qual são revelados os bastidores dessa que é uma das milícias mais perversas em atividade no Oriente Médio.
Em entrevista a EXAME.com, Hassan conversou sobre diversos aspectos em torno do EI, que compreendem desde o seu surgimento, as diferenças com a Al Qaeda e também sobre o que, afinal, o torna tão atraente a ponto de conquistar militantes por todo o mundo.
Confira abaixo os destaques da entrevista:
EXAME.com –Quais os principais fatores por trás do surgimento do EI no Iraque?
Hassan Hassan – Muitos comandantes do alto escalão do EI vieram do regime de Saddam Hussein e detém ou já detiveram posições-chaves no seu conselho militar. Entre eles, estão Abu Abdul-Rahman al-Bilawi, ex- capitão do exército iraquiano, Abu Ali al-Anbari, ex- oficial, e Abu Ayman al-Iraqi, ex- tenente e ex-prisioneiro dos EUA.
Todos eles são ex- baatistas (partido que tinha Saddam como um dos líderes) que acreditam na ideologia do EI. São ainda responsáveis pela sua estruturação e se tornaram líderes por conta das suas experiências.
O EI permite que seus comandantes possam agir sem que seja necessário consultar superiores e o papel de Abu Bakr al-Baghdadi é mais de líder supremo. É ele que toma as decisões mais importantes, aponta ou remove comandantes de seus postos e analisa os relatórios enviados por militantes na Síria e no Iraque.
Mas se olharmos para o EI apenas sob a perspectiva de seus dogmas, ou por nosso prisma de contraterrorismo, vamos superestimar e subestimar o grupo ao mesmo tempo.
O EI nos fez debater até sobre como devemos chamá-lo e se é islâmico ou não. Mas esses debates são distrações. Você pode chamar o EI de Bette Midler se quiser e ainda assim não faria diferença para quem vive em Raqqa (cidade síria que se tornou a capital do califado).
Além do pragmatismo e da experiência, as visões políticas do EI são atraentes para muitas pessoas da região, especialmente para aqueles que acreditam que os sunitas foram oprimidos ou esquecidos pelos governantes recentes. E essas tensões sectárias são uma das principais ferramentas de recrutamento do EI.
Muitas pessoas que não necessariamente apoiam a brutalidade ou acreditam na teologia do grupo o apoiam porque creem ser este o único grupo que está efetivamente lutando pelos sunitas e contra o governo predominantemente xiita no Iraque e o regime alauíta na Síria.
EXAME.com – Quais as principais diferenças entre o EI e a rede Al Qaeda?
Hassan Hassan – O EI surgiu da Al Qaeda e ambos dividem semelhanças ideológicas, mas se distinguem em suas táticas e ideias teológicas. A diferença mais importante é a posição do EI em relação aos xiitas.
Enquanto a Al Qaeda foca no chamado “inimigo distante”, que é o Ocidente e Israel, o EI foca no “inimigo próximo”, que são os xiitas e os sunitas que se opõem ao grupo. Crê ser mais importante a luta contra muçulmanos que considera apóstatas.
E é por essa razão que, com raras exceções, o grupo mata muçulmanos. O EI carrega uma ideologia sectária e conta com uma rica literatura para validar a sua visão contra os xiitas. Mas também trava campanhas contra os sunitas.
Com exceção do “Massacre do Campo Speicher”, quando o EI executou soldados iraquianos em Tikrit, as matanças foram cometidas contra sunitas. Quase todas as decapitações, imolações e afogamentos no último ano envolveram oponentes sunitas.
Já a Al Qaeda segue uma estratégia diferente e não considera os xiitas como infiéis, como o EI. A rede também rejeita a ideia de ter mesquitas e civis xiitas como alvos e a sua liderança tem criticado repetidamente essa estratégia do EI.
EXAME.com – O que torna o EI tão atraente para algumas pessoas?
Hassan Hassan – Há dezenas de razões que explicam por que uma pessoa se junta ao EI. Há motivos ideológicos, mas a maioria deles é pragmático e político.
Há dois grupos mais perigosos: os radicais de longa data que acreditam nas ideias extremistas do EI e os jovens que foram doutrinados. Esses dificilmente serão ser convencidos do contrário. E é nestes grupos que estão a maioria dos voluntários que vieram do Ocidente.
Entrevistamos dezenas de combatentes e constatamos que eles acreditam firmemente na ideologia do EI, ainda que tenham se juntado ao grupo por outras razões. A maioria deles é jovem, com cerca de 20 anos de idade.
Eles expressam gosto pela a “dawla” (a palavra em árabe para Estado) e pensam nela como uma entidade poderosa que irá protegê-los enquanto muçulmanos sunitas. É o califado que sempre sonharam e estão dispostos a sacrificarem tudo para mantê-lo.
É muito difícil não perceber o entusiasmo com o qual falam sobre o grupo. E é esse o maior perigo que o EI oferece e é o que faz as pessoas desejarem se juntar a ele.
EXAME.com – O braço sírio da rede Al-Qaeda na Síria, Frente Al-Nusra, domina territórios próximos de áreas controladas pelo EI. É possível que esses grupos entrem em conflito?
Hassan Hassan - A Frente está em Guerra com o EI há cerca de dois anos. Em Deir-Ezzor, centenas de seus combatentes foram mortos pelo EI antes de ele invadir a província e expulsar a Frente de todo o leste da Síria.
Atualmente, ambos operam em diferentes áreas, então há menos confrontos entre eles. Mas na região sul da Síria, por exemplo, há uma batalha em curso e a hostilidade deve aumentar a medida que o EI continue a crescer no sul e norte do país.
O EI enxerga os militantes da Frente como apóstatas e os odeiam mais que qualquer outro grupo, pois consideram que seu líder traiu al-Baghdadi, que formou uma espécie de “startup” da Frente na Síria em 2011.
EXAME.com – Como você vê as tentativas da coalizão liderada pelos EUA para conter os avanços do EI na Síria e no Iraque até o momento?
Hassan Hassan – Mais de um ano se passou desde que os bombardeios aéreos começaram no Iraque e na Síria e o que vemos é que o EI permanece incontestável em seus territórios, como Mosul (Iraque) e Raqqa (Síria). O EI só foi contido em áreas onde os curdos e os xiitas eram maioria e permanece assim até agora.
Mas, apesar dos bombardeios, o EI tem conseguido dominar largas e significativas porções de territórios. Veja Ramadi, por exemplo, uma cidade que o grupo tenta capturar há anos. Os militantes já derrotaram o exército iraquiano por lá apesar da cobertura aérea da coalizão. E esse não é o único exemplo: temos outros como Palmira e Aleppo (Síria).
A coalizão internacional foi bem-sucedida nos locais nos quais há tropas em solo que podem se locomover pelo território do EI, como aconteceu em Tikrit. Mas esse modelo não está funcionando na Síria, pois falharam em trabalhar com forças locais que não os curdos, que são eficientes dentro dos seus territórios. Quando os curdos ou os xiitas lutam em regiões de maioria sunita, isso apenas ajuda o EI.
E é por isso que o grupo está bem posicionado e permanecerá assim por muitos anos: não há uma estratégia boa para combatê-lo.
EXAME.com – O EI é tão forte quanto parece?
Hassan Hassan – O EI é uma das milícias mais perversas operando na Síria e no Iraque. Em muitos casos, o EI é tão forte quanto parece. Como detalhamos no livro, ele tem olhos e ouvidos fora das áreas sob seu controle.
Um oficial de segurança com quem conversei me explicou que o EI aprendeu com os erros do passado e está enviando espiões para outros países e regiões para tentar juntar informações de inteligência e entender os planos existentes para combatê-lo.
O EI vem ainda criando células dormentes em cidades e vilarejos por toda a Síria e Iraque antes de efetivamente realizar incursões nesses locais. Assim, ao atacar a área, seus combatentes já têm informações suficientes para realizar manobras rápidas e estabelecer o controle.
O grupo é mais eficiente que outros países e até governos locais no trabalho com as tribos. Ele sabe com quem trabalhar, sabe também quem é seu alvo e não vai esperar por uma rebelião para derrubá-lo.
E é por isso que se nota uma espécie de blackout total nas áreas dominadas pelo EI, pois no momento em que ele entra, rapidamente ganha o controle e elimina os seus rivais e críticos.
Claro que o EI usa mais do que a mera brutalidade para garantir o domínio. Ele age como Estado e estabeleceu duas coisas muito necessárias: segurança e proteção. Até mesmo seus opositores reconhecem que sequestros e matanças arbitrárias desapareceram quando o EI assumiu algumas regiões.
Essa é uma ferramenta eficiente de recrutamento, especialmente em locais nos quais o caos reinou por anos por conta do colapso do Estado. O EI regula todos os setores e executa serviços. Muitas pessoas, mesmo que críticas da selvageria, não enxergam alternativas melhores.
EXAME.com – Como sírio, deve ser difícil ver o seu país nessa situação terrível. Qual é o sentimento geral hoje na Síria? Há espaço para acreditar em um futuro melhor?
Hassan Hassan – É difícil pensar que a Síria irá se reestruturar, pelo menos no futuro próximo. O Estado entrou em colapso na maior parte do país e é quase impossível que o exército consiga recuperar as áreas que estão hoje nas mãos dos rebeldes, pois não tem recursos ou legitimidade aos olhos da população.
Os extremistas estão se beneficiando desse vácuo e da selvageria do regime para estabelecer um ponto de apoio na Síria. A situação está se tornando cada vez mais complexa. E o colapso do governo de Assad só irá piorar o quadro, mas a sua sobrevivência também.
Enquanto ele for o líder, os jihadistas irão alegar ter a legitimidade e as pessoas vão continuar a se opor ao governo. Uma solução política não é viável, mas um processo político pode ser o ponto de partida para a reconstrução da Síria ou no mínimo irá evitar que a situação se deteriore ainda mais.