Ricardo Baptista Leite, CEO da Health Ai (Divulgação)
Repórter de internacional e economia
Publicado em 28 de dezembro de 2025 às 08h01.
O uso de inteligência artificial avança na saúde, tanto por médicos quanto por pacientes. Neste contexto, os países precisam chegar a um acordo para que haja regras padronizadas para o uso da tecnologia, defende Ricardo Baptista Leite, CEO da Health AI.
A entidade, com sede em Genebra, não tem fins lucrativos e busca estimular os países a criarem e seguirem padrões globais no tema, assim como já acontece com a aprovação de remédios e vacinas, por exemplo.
A Health AI é responsável pela Global Regulatory Network, um grupo no qual os países discutem regulações em IA na medicina. O Brasil entrou para a rede em outubro e foi o primeiro país da América Latina.
"Uma IA treinada com dados da população dos Estados Unidos pode não funcionar da mesma forma na América Latina, África ou Europa. Cada regulador precisa garantir que as ferramentas importadas sejam treinadas com dados compatíveis com a realidade local", diz Leite, à EXAME.
"Não faz sentido que cada país crie um modelo totalmente diferente, pois isso dificulta a disseminação das tecnologias e penaliza, sobretudo, as empresas inovadoras de menor dimensão", afirma.
Na conversa, Leite, que é português, fala também sobre os vários usos da IA que já são possibilidades reais, como a análise de exames, a detecção de fraudes e o registro de consultas, o que poderá fazer com que os médicos olhem mais para o paciente e menos para a tela.
Quais os principais pontos debatidos em sua viagem a São Paulo?
O meu objetivo foi abordar as oportunidades que a inteligência artificial traz para melhorar objetivamente a saúde da população, numa lógica de compreendermos por que temos tantas tecnologias à nossa disposição e por que essas tecnologias ainda não estão inteiramente disponíveis para todos aqueles que poderiam se beneficiar delas.
A inteligência artificial não é algo do futuro, é algo que já está presente hoje, em muitas dimensões da nossa vida, incluindo na saúde. No entanto, no campo da saúde, infelizmente ainda vemos muitas aplicações da inteligência artificial limitadas no espaço e no tempo, sob a forma de projetos-piloto. Uma das razões pelas quais não vimos esta tecnologia escalar e se difundir de forma sistêmica nos sistemas de saúde à escala global tem a ver com o fato de muitos países ainda não terem modelos de governança suficientemente maduros para avaliar e aprovar a entrada dessas tecnologias nos mercados.
É precisamente isso que a Health AI faz: apoia governos e entidades reguladoras para garantir que entram no mercado tecnologias que são eficazes e seguras, construindo uma relação de confiança com a tecnologia.
Como entidade sem fins lucrativos, a nossa missão é assegurar que as tecnologias sejam utilizadas de forma responsável e contribuam para melhorar a saúde de todos. E esperamos ajudar a difundir essa mensagem no Brasil.
O senhor defende um uso híbrido da IA, como um copiloto, mantendo o ser humano no centro das decisões. Como garantir, na prática, que isso aconteça, especialmente diante da pressão por redução de custos no setor de saúde?
Existe sempre essa dualidade entre usar tecnologia para aumentar a produtividade e preservar a capacidade humana no sistema de saúde. Hoje, há um conjunto de tarefas que são claramente facilitadas pela utilização da inteligência artificial. Dou como exemplo o apoio à leitura de ressonâncias magnéticas, outros exames de imagem, anatomia patológica, citologia e várias outras áreas. Nesses casos, continuamos a ter médicos e profissionais de saúde complementando o uso da inteligência artificial.
Estamos numa era de complementaridade entre a tecnologia e o ser humano. A inteligência artificial pode aumentar a capacidade dos profissionais, que têm tempo limitado. Uma das grandes dificuldades é que médicos e enfermeiros não conseguem atender a todos no tempo desejado. Se, com o apoio da IA, conseguirmos reduzir o tempo gasto em tarefas administrativas e melhorar os resultados clínicos de cada procedimento, aumentamos a produtividade do médico. Mas, legalmente, em todos os sistemas de saúde, a responsabilidade pelas decisões continua a ser dos médicos.
Nenhum sistema de saúde está disposto a abdicar disso. Não antevejo, nem no presente nem no futuro próximo, uma redução da força de trabalho. O que espero é que a tecnologia ajude a transformar o sistema de saúde, tornando-o mais eficaz, com menos pessoas doentes e melhores resultados, usando melhor os recursos humanos disponíveis.
Quais são hoje os usos da IA na saúde que mais chamam a sua atenção? Além da análise de exames, há outras áreas promissoras?
Há usos mais mundanos, como a verificação de faturas e a detecção de fraudes, uma parte administrativa pouco discutida, mas extremamente relevante. Esse componente burocrático pode hoje ser realizado quase na totalidade com muito mais eficiência, usando inteligência artificial.
Na esfera clínica, vemos desde o desenvolvimento de novas moléculas e vacinas até diagnósticos avançados. Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, o tempo médio para produzir uma vacina caiu de cerca de 10 anos para 10 meses. A inteligência artificial não foi o único fator, mas sim um grande acelerador do processo. Hoje vemos uma enorme quantidade de novos medicamentos para doenças que antes não tinham tratamento, entrando rapidamente no mercado graças ao papel da inteligência artificial na investigação e desenvolvimento.
Vemos avanços na cirurgia robótica e nos sistemas de auscultação por som ambiente. Imagine algo como a Siri ou a Alexa ouvindo uma consulta clínica, com tecnologia protegida para dados sensíveis. O médico pode falar com o doente, fazer o exame clínico, e toda a informação é automaticamente registada no processo clínico eletrônico. Isso torna a relação médico-doente muito mais humana. Há estudos que mostram que cerca de 70% do tempo de uma consulta é dedicado ao médico olhando para o monitor. A tecnologia pode ajudar a eliminar essa barreira.
Também há ferramentas para monitorizar doentes na comunidade, fora dos hospitais, recolhendo dados através de dispositivos após a alta hospitalar. Tudo isto já está a acontecer hoje. Olhando para o futuro, as oportunidades são praticamente infinitas.
Einstein Hospital Israelita: entidade faz diversas pesquisas envolvendo IA e medicina (Germano Lüders/Exame)
Em termos de regulação, há exemplos de países que podem servir de referência para o Brasil?
O foco da Health AI é a criação de uma rede regulatória global. Essa rede reúne governos comprometidos em avançar na governança da inteligência artificial. Alguns países que já assinaram incluem o Reino Unido, Singapura e Índia, entre outros.
Reino Unido e Singapura são exemplos de países na vanguarda na avaliação de tecnologias de IA, com modelos regulatórios próprios, porém alinhados a normas internacionais. Este é o caminho do futuro. Não faz sentido que cada país crie um modelo totalmente diferente, pois isso dificulta a disseminação das tecnologias e penaliza, sobretudo, empresas inovadoras de menor dimensão.
Hoje, a maioria das ferramentas de IA na saúde é avaliada no âmbito da legislação de dispositivos médicos. A partir dessa base, esses países estão construindo quadros legais capazes de absorver as novas realidades da inteligência artificial. Vejo no Brasil, e na Anvisa, uma grande vontade de assumir um papel de liderança, alinhando-se às normas internacionais. É um desafio formar quadros especializados em IA em entidades reguladoras tradicionalmente focadas em medicamentos e dispositivos médicos, mas é um investimento necessário.
Quais são hoje as principais questões regulatórias envolvendo IA na saúde?
Uma das principais é como a ferramenta é treinada. Uma IA treinada com dados da população dos Estados Unidos pode não funcionar da mesma forma na América Latina, África ou Europa. Cada regulador precisa garantir que as ferramentas importadas sejam treinadas com dados compatíveis com a realidade local.
Isso está diretamente ligado à eficácia da ferramenta. Além disso, a vigilância pós-mercado é vital. Tal como acontece com medicamentos, precisamos de sistemas de alerta que detectem problemas após a entrada da tecnologia no mercado. Na Health AI, criamos um sistema de alerta global que permite identificar rapidamente problemas com ferramentas de IA e disseminar essa informação entre reguladores, evitando danos à população.
Outras áreas fundamentais são a cibersegurança, a proteção de dados sensíveis, a soberania dos dados e a avaliação de tecnologias de saúde, que permite determinar o valor justo a pagar por uma ferramenta de inteligência artificial. Os sistemas de saúde não têm recursos ilimitados. É preciso separar o que funciona do que não funciona e pagar um valor justo pelo benefício real que a tecnologia traz.
Como avalia o uso da IA diretamente pelos pacientes, como consultas ou até como terapeuta?
A realidade é que as pessoas já usam as ferramentas, como modelos de linguagem, para fins para os quais elas não foram desenhadas. Isso comporta riscos e já há casos de danos graves à saúde por seguirem recomendações inadequadas. Nem tudo deve ser regulado, mas é essencial que haja orientação clara às empresas e educação da população sobre os limites dessas tecnologias. Ferramentas não desenhadas para fins terapêuticos não devem ser usadas como tais.
Os profissionais de saúde também precisam atualizar-se para ajudar a população a distinguir ferramentas seguras das que não são adequadas. A tecnologia avança mais rápido do que a literacia digital e a formação profissional, e, por isso, debates como este são fundamentais.