Mundo

Maduro usa referendo sobre região da Guiana para se fortalecer antes das eleições de 2024

Segundo Maduro, mais de 3 milhões de venezuelanos participaram de uma simulação ao referendo no último fim de semana

Segundo Maduro, mais de 3 milhões de venezuelanos participaram de uma simulação ao referendo no último fim de semana (Zurimar Campos/AFP)

Segundo Maduro, mais de 3 milhões de venezuelanos participaram de uma simulação ao referendo no último fim de semana (Zurimar Campos/AFP)

Agência o Globo
Agência o Globo

Agência de notícias

Publicado em 3 de dezembro de 2023 às 09h12.

Em uma sala de aula, a professora aponta para um mapa pendurado na lousa e pergunta a um pequeno grupo de alunos em idade pré-escolar se sabem lhe dizer qual país está sendo mostrado. As crianças respondem em uníssono: "Venezuela!", embora a imagem seja diferente da comumente encontrada em livros didáticos, com uma área extra ao leste. Trata-se do território do Essequibo, região rica em petróleo que faz parte da vizinha Guiana, e que recentemente voltou a ser foco da atenção do governo, tornando-se alvo de um referendo de anexação, que acontece neste domingo. Por trás da consulta, analistas apontam uma intenção política clara de Nicolás Maduro: a reeleição em 2024.

A cena descrita acima é parte de um vídeo, entre dezenas de outros semelhantes, divulgado no Instagram de Maduro ao longo dos últimos meses, após a consulta popular ser anunciada oficialmente. Desde então, o governo tem dedicado recursos estatais à massiva campanha para a consulta, que não tem oposição significativa dentro do país. Com tom alegre e nacionalista, propagandas e panfletos coloridos clamam para que a população vote “sim” nas cinco perguntas sobre o território — incluindo a criação de uma província chamada “Guiana Essequiba” e a atribuição de nacionalidade venezuelana aos 125 mil habitantes desta região de cerca de 160 mil km².

Segundo Maduro, mais de 3 milhões de venezuelanos participaram de uma simulação ao referendo no último fim de semana, e espera-se que o número dobre neste domingo. Em discurso recente, o presidente destacou a "emergência de um consenso" entre a população "para defender o país".

A ideia de um inimigo à espreita, explica o analista político do Atlantic Council Geoff Ramsey, é uma "manobra clássica do manual do ditador". Enquanto tenta unir o país contra uma "ameaça externa exagerada", Maduro busca "compensar a falta de apoio popular", diz o especialista.

"A reivindicação territorial é uma das poucas coisas que unem os venezuelanos em todo o espectro político", afirma. "Em um país polarizado, este é um raro ponto de consenso que o governo tentará usar para ampliar sua aceitação."

Com o país em uma profunda crise socioeconômica e alta instabilidade política, a aprovação popular de Maduro fica hoje entre 20% a 30%, a depender da fonte de consulta. Isso se refletiu no resultado das primárias da oposição na Venezuela, celebradas em outubro, que contou com a participação de mais de 2 milhões de pessoas, um claro sinal da insatisfação popular com o regime de Maduro, no poder desde a morte de Hugo Chávez, em 2013.

Candidata da ala mais radical da oposição. María Corina Machado venceu as primárias com 93% dos votos, apesar de estar inabilitada politicamente por 15 anos e de a Justiça ter invalidado o processo posteriormente, contestando os números supostamente "inflados" de sua vitória.

Teste de popularidade

Apesar de ter sido convocado meses antes, em agosto, não surpreende, portanto, que o anúncio oficial do referendo tenha se dado no dia seguinte às primárias, em 23 de outubro, observam alguns analistas. Para a jornalista Luz Mely Reyes, diretora do site de notícias independente Efecto Cocuyo, o impacto da votação exigiu uma resposta rápida e política do regime, e a solução foi reacender a questão do Essequibo na população.

"Eles querem aproveitar ao máximo [a oportunidade] e gerar um fato político, usar um inimigo externo para buscar coesão entre o eleitorado que está contra eles. Com as eleições presidenciais à vista, o único momento que tinham era este", diz Reyes ao GLOBO. "Além disso, há a necessidade de Maduro testar seu "maquinário" eleitoral, o que envolve articular eleitores, equipes nas mesas eleitorais do partido governista e tudo o que está associado às eleições."

Embora a consulta não tenha consequências legais, já que não é vinculante, os analistas ouvidos pelo GLOBO apontam que ela pode reforçar a reivindicação territorial por parte da Venezuela, levando a uma escalada no conflito.

Do outro lado da fronteira, a Guiana rejeita o referendo sumariamente, considerando-o uma "violação das leis internacionais" e uma "ameaça" à sua integridade territorial. O presidente do país, Irfaan Ali, já declarou que espera que prevaleça "a sensatez", mas garantiu que seu governo está se preparando para qualquer cenário.

O governo de Maduro, por sua vez, já defendeu publicamente a invasão do território em disputa há mais de 100 anos, quando a Guiana ainda era colônia britânica, o que preocupa autoridades internacionais — incluindo o Brasil, que além de manter conversas diplomáticas com Caracas, alertando sobre o tom da campanha, já moveu 60 militares do Exército para reforçar a segurança na fronteira com os dois países, em Roraima.

Para o analista Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra e ex-representante da OEA no Haiti e na Nicarágua, quanto melhor for o resultado do referendo (que, ao que tudo indica, será uma provável vitória acachapante do "sim"), "pior será para Maduro no plano internacional".

"Uma vez obrigado a agir conforme as urnas, isso pode significar, além da provável pressão sobre a Guiana, reações contrárias de muitos governos, incluindo o Brasil, além dos Estados Unidos e o Reino Unido", diz Seitenfus.

Ele compara a manobra com o que a ditadura militar argentina fez na década de 1980 na Guerra das Malvinas, ao entrar em conflito com o Reino Unido por um pequeno grupo de ilhas no Atlântico Sul.

Adicionalmente, o referendo também pode ser usado para negociar concessões relacionadas a possíveis sanções, além de condicionar a eleição presidencial do ano quem à prevenção da escalada do conflito, aponta Reyes. A jornalista alerta, no entanto, que o não cumprimento do resultado das urnas pode ter efeito oposto e se traduzir em "percepção de fraqueza" para Maduro.

"Também vale a pena se perguntar até onde os líderes do partido no governo estão dispostos a ir em uma escalada de ações beligerantes", diz Reyes. "Se for um blefe, podem ficar mais enfraquecidos. Se tiverem outra estratégia de negociação, poderiam estender a discussão ao longo do ano eleitoral e vincular o processo ao temor em relação a um inimigo externo."

Decisão em Haia

Dois dias antes do referendo, a Corte Internacional de Justiça, em Haia e cuja jurisdição no caso é rejeitada pela Venezuela, reconheceu a ameaça da Venezuela e recomendou que Caracas não tome medidas sobre o o território, sem, no entanto, citar diretamente a consulta popular. Maduro pressiona por negociações diretas com Georgetown, que rejeita o pedido. Após a decisão, o venezuelano voltou a usar as redes sociais e prometeu "defender Essequibo":

"Não deixaremos que ninguém nos tire o que nos pertence, nem trairemos os nossos princípios", escreveu no X, antigo Twitter.

A disputa territorial pelo Essequibo, que na prática, é administrado por Georgetown, remonta ao século XIX. De um lado, a Guiana se atém a um laudo arbitral de 1899, no qual foram estabelecidas as fronteiras atuais. Do outro, a Venezuela se apoia em sua interpretação do Acordo de Genebra, firmado em 1966 com o Reino Unido, antes da independência guianesa, em que Londres e Caracas concordam em estabelecer uma comissão mista "para buscar uma solução satisfatória", já que o governo venezuelano considerou o laudo de 1899 "nulo e vazio".

A briga só ganhou novos capítulos após descoberta, em 2015, de grandes reservas de petróleo na região. A Guiana iniciou licitações para explorar campos petrolíferos em águas rasas e profundas em 2022, o que Caracas rejeitou, considerando-as ilegais.

Veja as últimas notícias:

Acompanhe tudo sobre:VenezuelaGuiana

Mais de Mundo

Azerbaijan Airlines diz que avião caiu devido a 'interferências externas, físicas e técnicas'

EUA veem indícios de que míssil atingiu avião fabricado pela Embraer, dizem emissoras

Companhia do Azerbaijão cancela voos para sete cidades russas após queda de avião da Embraer

Presidente do Panamá rechaça reduzir pedágio de canal após exigência de Trump