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A hora da verdade para o etanol

Passada a depressão, o setor se transforma para enfrentar o maior desafio de sua história: crescer e conquistar o mercado internacional

Carros flex: eles já representam quase 40% da frota total de veículos no Brasil (.)

Carros flex: eles já representam quase 40% da frota total de veículos no Brasil (.)

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.

Há quase 40 anos, o engenheiro João Camilo Penna, ministro da Indústria e Comércio do presidente João Baptista Figueiredo, recebeu a missão de fazer crescer um programa lançado no governo anterior, de Ernesto Geisel: a substituição de combustíveis fósseis pelo etanol de cana-de-açúcar. Penna, que ganhou da história a alcunha de "pai do Proálcool", costuma contar em entrevistas que a motivação principal era o preço do petróleo, mas havia também certa preocupação com a poluição do ar. Difícil saber se esse viés ambiental existiu mesmo. O fato é que ao longo das décadas seguintes as credenciais verdes do combustível brasileiro se solidificaram. Com a ameaça do aquecimento global e a urgência de encontrar um substituto para o petróleo, elas ganharam ainda mais fôlego. Aqui e lá fora, são muitos os especialistas renomados que vêm há anos alardeando que o consumo do etanol de cana não ficaria restrito ao Brasil. Um deles é o físico José Goldemberg, um dos maiores especialistas do mundo na área de energia. "Devido a seu baixo custo de produção e grande capacidade de reduzir as emissões de poluentes provocadas pela gasolina, não tenho dúvidas em afirmar que o etanol de cana-de-açúcar é o melhor biocombustível do mundo", diz Goldemberg. A despeito do número de entusiastas, a conquista dos mercados mundiais pelo produto tipicamente brasileiro sempre ficou apenas na promessa. Mais de uma vez - e a mais recente aconteceu em 2006 e 2007 - o setor sucroalcooleiro do país acreditou que o mundo o reconheceria como a grande fronteira dos biocombustíveis, e foi inebriado por um clima festivo de "agora vai".

Sinais positivos

Mas não foi. As expectativas não se concretizaram, e o que se seguiu foi um período muito difícil para as usinas e para os investidores que apostaram no biocombustível brasileiro. Agora, porém, a esperança está voltando. Ainda não se pode falar em uma nova onda de euforia. Mas os sinais são claros: desta vez, há menos espuma e mais fatos concretos. O setor, com suas 438 usinas e 150 grupos, está finalmente passando por uma consolidação, algo fundamental em um negócio que tem pretensões de conquistar o mercado internacional. Seja qual for a motivação - valorizações mais realistas, altos índices de endividamento das empresas ou questões estratégicas -, as movimentações que têm sido vistas recentemente apontam para um amadurecimento de um setor que historicamente andou ao sabor das circunstâncias. As barreiras protecionistas erguidas no exterior, especialmente nos Estados Unidos, ainda seguem firmes e fortes, mas o lobby organizado pelos produtores de cana daqui já começa a mostrar resultados concretos. A questão ambiental, que até agora esteve em segundo plano, vai ser observada com um microscópio, dentro e fora do país. Mas a tecnologia e os avanços na agricultura indicam que o país pode multiplicar a produção várias vezes sem que o resultado seja mais desmatamento. Depois de idas e vindas, tantos avanços e retrocessos, a indústria brasileira do etanol vive hoje dias decisivos. Nunca houve tantas chances de conquistar o mundo - e, também, nunca houve tantos desafios a superar.

O sinal mais claro de que o cenário é favorável para o etanol de cana surgiu nas últimas semanas. No início de fevereiro, a Environmental Protection Agency (EPA), órgão ambiental americano que seria comparável ao Ibama, colocou o combustível brasileiro na categoria "avançado". Isso significa que ele é menos nocivo ao meio ambiente do que seu competidor direto, o etanol de milho, classificado apenas como "convencional". A chancela da EPA não veio da noite para o dia. Os Estados Unidos sempre relutaram em admitir que o etanol de cana emite muito menos CO2, em comparação com a gasolina. A EPA mudou de ideia porque, durante mais de um ano, sob a coordenação de executivos da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), associação que reúne as empresas do setor, um grupo de cientistas brasileiros trabalhou para mostrar aos técnicos americanos que o modelo usado para calcular as emissões de CO2 do combustível possuía distorções. As classificações da EPA são importantes porque direcionam a política americana de redução do uso do petróleo. O governo determinou que 15% dos combustíveis de origem fóssil sejam substituídos por renováveis até 2022. Com isso, esse mercado, que hoje é de 42 bilhões de litros, alcançará a marca de 136 bilhões. Dentro desse volume, uma regra determina que parte seja reservada para a categoria de combustíveis avançados. Ainda há barreiras a superar antes que se abra o mercado americano, e a principal delas é a sobretaxa imposta ao combustível brasileiro. Mas a reclassificação do etanol foi uma notícia que trouxe esperanças para os produtores brasileiros."Ganhamos uma batalha importante da guerra", diz Marcos Jank, presidente da Unica.


Oportunidades

Outro motivo para otimismo está no avanço lento do etanol de celulose, produzido de diferentes tipos de material orgânico. Em tese, o celulósico de nova geração seria a principal alternativa verde aos derivados do petróleo. As novas tecnologias sempre figuraram com destaque nos planos americanos que visam reduzir seu consumo. Mas nem tudo correu como o planejado. As empresas que se dedicam à criação dessa nova classe de combustíveis têm enfrentado todo tipo de dificuldade, da formação do preço (ele ainda custa muito mais que o etanol de milho) à confiança dos investidores. Mesmo que não haja celulósico à venda, o que os especialistas afirmam é que as metas obrigatórias de mistura de biocombustíveis com gasolina serão mantidas. Conclusão? Ponto para o etanol brasileiro. "O impasse do celulósico pode representar um ganho para o Brasil", diz Ethan Zindler, da Bloomberg New Energy Finance, consultoria especializada em energias limpas. "O país terá de encontrar uma maneira de cumprir as regras, e me parece que a melhor alternativa é o etanol de cana." A pressão para que as empresas de petróleo entrem na onda dos renováveis não é exclusividade dos Estados Unidos. Na Europa, uma lei aprovada em 2008 definiu que, em todos os países do bloco, 10% do combustível usado no transporte terá de vir de fontes renováveis. Os carros elétricos podem contribuir, mas para fechar a conta será preciso usar biocombustíveis. Ou seja, descortina-se mais uma oportunidade para o etanol produzido no Brasil.

Os obstáculos

Essa suposta rendição do mundo ao combustível brasileiro está por trás de um movimento recente que sacudiu o mundo dos negócios: a fusão no valor de 12 bilhões de dólares da maior empresa do setor sucroalcooleiro do Brasil, a Cosan, com a anglo-holandesa Shell, a maior empresa do mundo no ano passado, segundo a revista americana Fortune. Nos últimos anos, a petrolífera fez várias investidas em tecnologias limpas. Colocou mais de 1 bilhão de dólares em projetos de energia eólica e solar e usou sem parcimônia imagens dos cataventos em suas campanhas de marketing. Há um ano, anunciou que abandonaria essa estratégia para centrar esforços nos biocombustíveis de segunda geração, como o celulósico. Ao se associar à Cosan e a seu etanol de primeira geração, a Shell não está mais uma vez mudando de rumo. A empresa continua investindo em algumas empresas de celulósico. O que seus executivos perceberam, porém, é que não é mais possível esperar pelo desenvolvimento dessa tecnologia. "Além de estarem enfrentando dificuldades em acessar novas reservas de petróleo, devido à sua crescente concentração em áreas politicamente instáveis, as petrolíferas estão sendo paulatinamente pressionadas a ficar mais verdes", diz José de Sá, sócio da consultoria Bain&Company, especializado em óleo e gás.

Ainda que os ventos sejam favoráveis, se quiser remar a seu favor, o etanol brasileiro precisará superar desafios, aqui e lá fora. A classificação da EPA não é garantia de acesso imediato ao mercado americano. Afinal, cada galão (equivalente a 3,78 litros) de etanol brasileiro tem de pagar uma sobretarifa de 54 centavos de dólar. Os especialistas são unânimes em afirmar que essa tarifa tem chances remotas de cair no curto e médio prazo. "O lobby do etanol de milho é fortíssimo no país, e terá de existir muita pressão de empresas e consumidores para que o Senado americano acredite que vale a pena comprar a briga de derrubá-la", diz Zindler, da New Energy Finance. De qualquer maneira, a Unica já contratou empresas de lobby e de relações públicas nos Estados Unidos para ajudá-la nessa empreitada. "O embate com a EPA foi de foro mais técnico, científico", diz o americano Joel Velasco, que dirige o escritório da entidade em Washington. "Agora, o que temos pela frente é mesmo uma briga política."


Existem entraves à expansão do etanol mesmo aqui no Brasil. Em meio ao frenesi gerado pelo sinal verde da EPA e pela fusão da Cosan com a Shell, alguns especialistas ousaram colocar na mesa um fato indigesto: para que tanto blá-blá-blá sobre exportação se falta álcool no mercado interno? A seca de etanol tem algumas razões. Uma delas é que os carros flex conquistaram mesmo os consumidores. Hoje eles já respondem por quase 40% do total de veículos do país e por mais de 90% dos novos vendidos pelas montadoras. Com isso, de 2008 para 2009, a demanda por etanol subiu 23,9%. Houve também desvio de parte da cana para a produção de açúcar - graças à alta de preços no mercado internacional - e, nos últimos meses, a ocorrência de muitas chuvas, que impediram a colheita de cerca de 50 milhões de toneladas de cana. Independentemente da falta ser provocada por uma intempérie climática ou pelo fato de o usineiro ter optado por usar a cana para produzir aquilo que dá mais dinheiro, o que alguns especialistas brasileiros e estrangeiros afirmam é que essa falta de etanol depõe contra as ambições do setor de conquistar o mundo. "O preço do produto pode variar, mas o governo e o setor precisam entender que é necessário ter garantia de suprimento para todo o ano", diz Manfred Wefers, gerente de etanol da Delta Trading. "Assim teremos credibilidade para exportar." Criada no final de 2008 pelo grupo Delta Energia para comercializar e exportar etanol para o mercado externo, a Delta Trading começou a investir em meados de 2009 em tanques para estocagem do produto. "É preciso dar segurança aos clientes", diz Wefers.

Para Jank, da Unica, o problema dos estoques tende a ser amenizado à medida que o setor for se fortalecendo financeiramente por meio de parcerias estratégicas, como a realizada entre a Shell e a Cosan. "Hoje, muitas usinas são forçadas a vender álcool barato no auge da safra para fazer caixa", afirma. "Empresas mais capitalizadas não precisarão fazer isso e poderão estocá-lo para vendê- lo a preços melhores na entressafra." Companhias em melhor situação financeira também poderão investir na expansão da produção e em novas tecnologias para a melhoria da produtividade, algo essencial para garantir que esse crescimento não virá acompanhado de danos ao meio ambiente. Afinal, uma das preocupações dos estrangeiros é que a demanda por etanol possa vir a comprometer a manutenção das florestas, e muito esforço também será necessário para provar que isso não vai acontecer. Com tantas variáveis em jogo, o conselho de quem acompanha de perto há anos os vários reveses do setor é o de que é bom manter sob controle as expectativas: "O etanol entrou no jogo mundial e isso é fato", afirma Plínio Nastari, diretor da consultoria Datagro e um dos mais respeitados especialistas do país no setor sucroalcooleiro. "Qual o tamanho da participação que ele terá nesse jogo é algo que ainda está para ser definido."

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