Alimentação: ONU aponta que é preciso ampliar o acesso da população à alimentação barata e de qualidade (Andrew Lichtenstein/Corbis/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 6 de julho de 2022 às 18h57.
Última atualização em 8 de julho de 2022 às 13h03.
A fome aumentou em todo o mundo nos últimos dois anos, e a situação não está perto de melhorar, aponta novo relatório de braços de agricultura, alimentação e saúde da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado nesta quarta-feira, 6.
Entre 702 e 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome no mundo em 2021, segundo o estudo.
"São números deprimentes para a humanidade. Continuamos nos afastando da nossa meta de acabar com a fome até 2030", disse em nota o Presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, Gilbert F. Houngbo.
No Brasil, o número de pessoas em insegurança alimentar grave (que inclui situações de fome) supera 15 milhões de pessoas. No índice de subalimentação da ONU, anteriormente usado para calcular o "Mapa da Fome" (veja abaixo), o Brasil chegou a seu pior cenário desde 2010.
Os índices de fome devem seguir altos nos próximos anos com a guerra na Ucrânia e a inflação global, e a ONU aponta que são necessárias políticas para baratear alimentos saudáveis e ampliar o acesso a eles. Veja abaixo os principais destaques do relatório da ONU e as citações sobre o Brasil.
O contingente de pessoas afetadas pela fome nos dados de 2021 tem 46 milhões de pessoas a mais do que em 2020, o equivalente a uma população inteira da Argentina ou da Espanha que passou a conviver com a fome no último ano.
As regiões mais afetadas seguem sendo África, Ásia e América Latina.
Os motivos para a piora no cenário incluem os problemas econômicos gerados pela pandemia. Se o combate à fome já era um desafio antes, a situação se intensificou com questões como o aumento da cotação de grãos e outros itens essenciais no mercado internacional, além dos gargalos na cadeia de suprimentos que têm gerado inflação em todo o mundo.
Para além das pessoas com fome, a insegurança alimentar grave ou moderada também subiu e atinge uma em cada três pessoas no mundo (29% da população), um total de 2,3 bilhões de pessoas.
Só o grupo com insegurança alimentar grave é de 924 milhões de pessoas (12% da população mundial).
No ritmo atual, a projeção é que 670 milhões de pessoas (ou 8% da população mundial) ainda enfrentarão fome em 2030, mesmo passada quase uma década, segundo o relatório.
Se confirmado, o número será na prática um retrocesso aos patamares de 2015, quando foi lançado o objetivo de acabar com a fome e a insegurança alimentar até 2030.
Enquanto isso, no curto prazo, o cenário de fome no mundo pode ainda piorar com a guerra na Ucrânia e seus efeitos, diz o diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos da ONU, David Beasley. Para ele, o mundo está diante de uma "catástrofe iminente".
"Há um perigo real de que esses números subam ainda mais nos próximos meses. Os aumentos globais de preços de alimentos, combustíveis e fertilizantes que estamos vendo como resultado da crise na Ucrânia ameaçam empurrar os países ao redor do mundo para a fome", disse Beasley em nota sobre o relatório.
"O resultado será a desestabilização global, a fome e a migração em massa em uma escala sem precedentes. Temos que agir hoje para evitar essa catástrofe iminente."
O Brasil chegou a 15,4 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, o equivalente a 7,3% da população no cálculo de prevalência da ONU.
A organização aponta que a situação vem piorando. Em 2014, quando o Brasil atingiu um de seus melhores patamares, a insegurança alimentar grave afetava 3,9 milhões de pessoas, ou 1,9% da população.
Se incluída também a população com insegurança alimentar moderada, são 61,3 milhões de pessoas, quase um terço da população brasileira (29%) sendo forçada a reduzir a alimentação algumas vezes durante o ano por falta de recursos.
A ONU deixou de usar o chamado "Mapa da Fome" como métrica de divulgação específica. Se fosse o caso, o Brasil teria voltado a partir de 2018 ao grupo de países onde a fome é um problema estrutural, do qual saiu em 2014.
Para "sair" do mapa - não ter mais o país pintado com cores quentes -, era preciso ter menos de 2,5% da população em situação de subalimentação (no índice Prevalence of Undernourishment, ou PoU, em inglês).
A prevalência de subalimentação, no entanto, é usada até hoje pela ONU para definir o número de pessoas com fome no mundo - uma condição em que "o consumo habitual de alimentos de um indivíduo é insuficiente para fornecer a quantidade de energia dietética necessária para manter uma vida normal, ativa e saudável".
O Brasil voltou a ter prevalência de subalimentação de 2,6% no biênio 2018-2020, e o número subiu para 4,1% da população no biênio 2019-2021 (nos dados do relatório divulgado hoje). O número atual no Brasil é o pior desde o período 2008-2010.
Em entrevista anterior à EXAME, o economista e diretor do Programa Mundial de Alimentos da ONU no Brasil, Daniel Balaban, já alertava também que a situação no Brasil vinha piorando desde antes da pandemia, com o empobrecimento da população. “A pandemia não é a culpada pela volta da fome no Brasil. Apenas acelerou o processo”, disse no ano passado.
Hoje, a ONU segue divulgando dois mapas, e o Brasil não está com a situação da fome equacionada em nenhum deles. Há o mapa com prevalência de índice de subalimentação, o antigo "Mapa da Fome" (onde o Brasil está pintado por ter mais de 2,5% de subalimentação; no caso do Brasil, 4,1%); e o com prevalência de insegurança alimentar grave ou moderada (onde o Brasil também está pintado, por ter mais de 9,9% de prevalência; no caso do Brasil, 29%). Ambas métricas fazem parte dos indicadores de desenvolvimento sustentáveis medidos pela ONU.
O relatório aponta que uma das prioridades no combate à fome — não só para ampliar o acesso a alimentação a todos, mas para ampliar o acesso a uma alimentação mais saudável — deve ser a redefinição de políticas agrícolas por parte dos governos. A estratégia, de acordo com a ONU, deve ser pensada acordo com as necessidades específicas de cada lugar, que podem ser diferentes.
O apoio mundial ao setor alimentício agrícola foi de quase US$ 630 bilhões entre 2013 e 2018, segundo o relatório. No entanto, a maior parte desse investimento vai diretamente para agricultores — seja via políticas comerciais, como proteção de importações, ou via subsídios.
Embora essa estratégia faça sentido em alguns países, a ONU aponta que governos devem pensar também que muitas políticas em vigor deixam de lado parte dos agricultores, sobretudo os que produzem itens não valorizados no mercado internacional, mas que são importantes para a segurança alimentar da população. Frutas, legumes e verduras, por exemplo, costumam ser menos apoiados, sobretudo em países de baixa renda, ao contrário de grãos, açúcar e carnes, valorizados no mercado internacional.
Uma das possibilidades, segundo o relatório, é usar parte desses recursos também para subsídios diretos aos consumidores em grupos cuja renda ainda não alcança o mínimo necessário para uma alimentação saudável.
"Com as ameaças de uma recessão global iminente, e as implicações que isso tem sobre as receitas e despesas públicas, uma forma de apoiar a recuperação econômica envolve a redefinição do apoio alimentar e agrícola para alimentos nutritivos direcionados onde o consumo per capita ainda não corresponde aos níveis recomendados para dietas saudáveis", diz a ONU em nota sobre o relatório.
"As evidências sugerem que, se os governos repensarem o destino dos recursos que estão usando para incentivar a produção, o fornecimento e o consumo de alimentos nutritivos, eles contribuirão para tornar as alimentações saudáveis mais baratas, mais acessíveis e equitativas para todas as pessoas."
O relatório "The State of Food Security and Nutrition in the World 2022" (veja aqui a publicação completa) se trata da edição atual do estudo publicado anualmente por braços da ONU ligados a agricultura, saúde e infância, com base em dados oficiais e projeções. O relatório foi elaborado em conjunto pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).