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Entenda como a decisão da Suprema Corte sobre o aborto dividiu a política dos EUA

País está dividido entre 20 estados que decretaram proibições ou fortes restrições, sobretudo no sul e no centro, e outros nas costas, que reforçaram as garantias

Em junho de 2022, o tribunal anulou a decisão Roe vs. Wade, que garantia o direito das mulheres americanas a interromper uma gravidez (AFP/AFP Photo)

Em junho de 2022, o tribunal anulou a decisão Roe vs. Wade, que garantia o direito das mulheres americanas a interromper uma gravidez (AFP/AFP Photo)

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Agência de notícias

Publicado em 23 de junho de 2023 às 13h56.

Última atualização em 23 de junho de 2023 às 15h39.

A histórica decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, há um ano, que anulou o direito ao aborto tornou-se um pesadelo para muitas mulheres, causou uma confusão jurídica e deixou o Partido Republicano diante de um dilema.

Em 24 de junho de 2022, o tribunal, remodelado pelo ex-presidente republicano Donald Trump, anulou a decisão Roe v. Wade, que garantia desde 1973 o direito das mulheres americanas a interromper uma gravidez, e permitiu que cada estado legislasse a respeito.

No mesmo dia, alguns estados proibiram qualquer procedimento de aborto em seu território, obrigando as clínicas a fechar ou mudar de endereço.

Desde então o país está dividido entre 20 estados que decretaram proibições ou fortes restrições, sobretudo no sul e centro, e outros nas costas, que reforçaram as garantias.

O impacto geral em números permanece limitado. De acordo com um estudo da organização Sociedade de Planejamento Familiar, uma média de 79.031 abortos foram realizados por mês em todo o país de julho de 2022 a março de 2023, ante 81,73 mil em abril/maio de 2022, uma queda de 3,3%.

"Muitas pessoas continuam fazendo os abortos que precisam, mas enfrentam grandes obstáculos", resumiu à AFP Ushma Upadhyay, professora de saúde pública e ginecologia na Universidade da Califórnia, em São Francisco, e coautora do estudo.

Roleta russa

O fechamento das clínicas em vários estados forçou dezenas de milhares de mulheres a viajar para realizar o procedimento.

Mas nem sempre é fácil. Além do custo financeiro, algumas precisam conseguir um dia de folga no trabalho ou dar explicações aos parentes. Às vezes, elas se veem obrigadas a adiar o procedimento, o que pode ter um impacto psicológico. Sem falar no risco à saúde.

Em uma denúncia, Anna Zargarian, moradora do Texas, afirmou que sua bolsa estourou muito cedo para o feto sobreviver, mas ela teve de viajar para o Colorado para realizar o aborto.

O voo foi "aterrorizante". "Era como jogar uma roleta russa, sabendo que estava em risco de infecção, hemorragia ou parto a qualquer momento".

No primeiro trimestre, as americanas podem tomar a pílula abortiva. Mas o medicamento é ilegal em alguns estados e aquelas que o compram online ou por meio de redes de ajuda "correm o risco de serem processadas", afirmou Ushma Upadhyay.

As mulheres obrigadas a levar a gravidez até o fim são "as mais pobres entre as pobres" e, em um país com profundas desigualdades raciais, geralmente são negras ou hispânicas, acrescenta a especialista.

Cinco milhões

Na opinião de Ushma, o futuro é incerto. Durante um ano, muitos doadores se mobilizaram para apoiar financeiramente as mulheres que precisam de um aborto, "mas em um ano ou dois, esses esforços privados vão se esgotar", prevê. "Não é sustentável".

E o panorama jurídico continua instável. Todas as leis restritivas acabam nos tribunais. O resultado da maioria das apelações é desconhecido, mesmo em estados do sul como a Geórgia ou a Carolina do Sul.

Mas a principal incógnita é a pílula abortiva. Em abril, um juiz federal retirou a autorização de comercialização da mifepristona (RU 486), usada por 5 milhões de pessoas desde que a agência de medicamentos americana dos EUA (FDA) a aprovou em 2000.

A Suprema Corte interrompeu a aplicação da sentença, mas um tribunal de apelações poderia validá-la.

Sob pressão

A batalha também continua no cenário político. Os democratas, liderados pelo presidente Joe Biden, um católico praticante, fizeram da defesa do direito ao aborto uma de suas prioridades. A estratégia parece ter ajudado a salvá-los de uma derrota anunciada nas eleições de meio de mandato do ano passado.

O fracasso dos referendos antiaborto nos estados muito conservadores de Kansas e Kentucky também moderou o ardor dos republicanos.

Para satisfazer a direita religiosa, parte essencial de seu eleitorado, eles exercem uma pressão a nível local a favor de legislações restritivas. Mas são mais flexíveis a nível federal, para não assustar os eleitores moderados, apesar da pressão das principais organizações antiaborto.

Entre elas, destaca-se o grupo SBA Pro-Life, que já avisou que apoiará os candidatos às eleições presidenciais de 2024 que se comprometam a promover uma lei que limite o aborto em todo o país.

O atual candidato à indicação republicana para disputar a Casa Branca Donald Trump, que se vangloria por ter "enterrado Roe vs. Wade" ao colocar três juízes conservadores na Suprema Corte, ainda não assumiu o compromisso.

Aborto se impõe na campanha das eleições presidenciais nos EUA

O direito ao aborto já é uma questão crucial na campanha presidencial de 2024 nos Estados Unidos e Joe Biden obteve, nesta sexta-feira, 23, o apoio de importantes associações de defesa dos direitos das mulheres. 

As organizações Planned Parenthood, Naral e Emily's List convidaram oficialmente a votar no presidente Biden e na vice-presidente, Kamala Harris.

"Eles não vacilam" na defesa do direito ao aborto, escreveu a Planned Parenthood, enquanto a Naral afirmou que ambos os líderes fizeram "mais do que qualquer outro governo para defender e expandir as liberdades reprodutivas".

O apoio será formalmente expresso nesta sexta-feira durante um evento público em Washington.

Quase simultaneamente, também na capital americana, terá início uma grande manifestação do movimento evangélico e conservador "Fé e Liberdade". Uma de suas principais causas é a proibição do aborto.

Espera-se que os candidatos à indicação republicana de 2024, incluindo o ex-presidente Donald Trump e o governador da Flórida, Ron DeSantis, discursem neste evento.

A direita cristã americana desempenhou um papel crucial na decisão da Suprema Corte, há quase um ano, de revogar as garantias do direito ao aborto.

Em 24 de junho de 2022, o tribunal superior, reconfigurado por Donald Trump, anulou a decisão Roe v. Wade, que garantiu o direito das mulheres americanas ao aborto em 1973 e dava poder a cada estado para legislar sobre o assunto.

Desde então, o país encontra-se dividido entre os 20 estados que estabeleceram proibições ou fortes restrições, sobretudo os do sul e centro do país, e os do litoral que adotaram novas garantias.

"A vontade de Deus"

Joe Biden, um católico devoto, nem sempre foi um defensor enérgico do direito ao aborto.

No entanto, o democrata de 80 anos, cujos índices de popularidade permanecem baixos, assumiu o papel de principal defensor do direito ao aborto, uma convicção que não deixa de lhe dar algumas oportunidades políticas.

Na sexta-feira, um de seus porta-vozes lembrou no Twitter que, de acordo com uma pesquisa recente da CBS/YouGov, 63% dos americanos se opõem à proibição federal do aborto, que se aplicaria a todos os Estados Unidos.

Por outro lado, Trump, o antecessor de Biden e atualmente considerado seu principal adversário para 2024, disse recentemente que a decisão da Suprema Corte foi "a vontade de Deus". Ao contrário de muitos conservadores, no entanto, o ex-presidente não defende uma proibição federal.

Os republicanos continuam lambendo as feridas pelo fracasso dos referendos contra o aborto em Kentucky e Kansas, dois estados muito conservadores que mostraram nuances em seu eleitorado.

Com essa premissa, Biden multiplicou as declarações para as mulheres, embora seu poder de manobra seja limitado sem uma maioria forte no Congresso.

De qualquer forma, ele emitiu uma série de decretos para proteger marginalmente o acesso ao aborto. Nesta sexta-feira também anunciou medidas para garantir, na medida do possível, o acesso à contracepção.

O direito ao aborto é um tema que evidencia as divisões políticas nos Estados Unidos e que, para muitos eleitores, será o único fator para decidir em quem votar, principalmente a partir da decisão da Suprema Corte.

De acordo com uma pesquisa da Gallup divulgada em 21 de junho, 28% dos americanos habilitados ao voto decidirão exclusivamente de acordo com a posição dos candidatos sobre a interrupção voluntária da gravidez.

Em maio de 2022 esse número era de 27%, um recorde para a data, segundo a empresa de pesquisas.

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