Ricky Martin, Residente e Bad Bunny: artistas porto-riquenhos lideram a população nas ruas da capital San Juan e ajudam a divulgar o movimento internacionalmente (Marco Bello/Reuters)
Carolina Ingizza
Publicado em 24 de julho de 2019 às 15h04.
Última atualização em 24 de julho de 2019 às 16h16.
Mensagens vazadas podem derrubar políticos? Há algumas semanas, conversas privadas de um político importante no aplicativo Telegram foram publicadas na mídia.
Nas mensagens analisadas, por ora, não foram constatados crimes claros, mas sim comportamentos antiéticos que levantaram questões sobre a viabilidade de ele continuar com seu cargo. Apesar das semelhanças, este texto não é sobre o ministro brasileiro da Justiça, Sergio Moro, mas sim sobre o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló.
Em 13 de julho, dias depois de uma investigação da polícia federal dos Estados Unidos ter prendido duas ex-secretárias do governo porto-riquenho envolvidas em um esquema que desviou 15,5 milhões de dólares, o Centro de Jornalismo Investigativo de Porto Rico divulgou 889 páginas de conversas entre Rosselló e seu círculo político próximo.
As mensagens divulgadas na ilha arranharam a imagem construída pelo jovem governador, de 40 anos, do partido Novo Progressista.
“Rosselló apresentava-se publicamente como um defensor dos direitos das mulheres e dos homossexuais. Mas no privado, ele revelava todas as suas atitudes machistas e autocentradas”, explica Charles Venator-Santiago, professor do departamento de ciência política da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos.
Grande parte das mensagens enviadas pelo governador são ofensivas e fazem piadas com mulheres, gays e pessoas acima do peso. Na época do furacão Maria, que destruiu a ilha em 2017, ele brincou sobre os corpos estarem se empilhando nas ruas.
Em uma conversa específica sobre Melissa Mark-Viverito, ex-presidente do Conselho da Cidade de Nova York, disse que deveriam “bater naquela vagabunda”.
Duas diferenças marcam o desdobramento do caso na comparação com o episódio que ficou conhecido como VazaJato. Em Porto Rico, a validade das conversas não foi questionada, embora elas tenham sido obtidas de fonte anônima. Rosselló tampouco desmentiu a veracidade das conversas publicadas. Longe disso, na verdade: ele veio a público e pediu desculpas. “Sou o governador de Porto Rico, mas também sou um ser humano que tem seus defeitos”, afirmou em uma coletiva de imprensa após o escândalo. Em sua defesa, ele alega que as mensagens foram inapropriadas, mas que não mostram nenhum comportamento ilegal.
Mas sobram polêmicas em torno das conversas. A certeza de legalidade não é unânime e a secretária de Justiça Wanda Vázquez ordenou que uma investigação fosse feita para averiguar se crimes foram cometidos ou não por parte do governo.
“Com as mensagens, fora a controvérsia que revelou a homofobia e misoginia do governo, houve a confirmação de que o governador e seus amigos estão, em essência, movendo recursos públicos para amigos e membros do partido político”, afirma Venator-Santiago.
Em algumas das mensagens vazadas, é possível ver Rosselló discutindo temas internos do governo com pessoas que não são funcionárias públicas, como seu antigo chefe de campanha política, Elías Sánchez Sifonte. “Não havia espaço para especular que as críticas haviam sido propaganda da esquerda”, diz Venator-Santiago.
Na sexta-feira, Carlos Méndez, presidente da Câmara dos Deputados de Porto Rico, criou um comitê para auxiliá-lo a decidir se o governador cometeu ou não atos que possibilitem a abertura de um processo de impeachment. Dez dias foram dados aos advogados para produzir um relatório analisando as mensagens divulgadas.
Caso o comitê conclua que Rosselló cometeu irregularidades e a votação de impeachment passe na Câmara, o assunto será redirecionado ao Senado local.
A partir daí, um julgamento será feito com o presidente da Suprema Corte agindo como juiz e os senadores como membros do júri. Para que o impeachment seja aprovado, são necessários dois terços dos votos das duas Casas.
Desde a publicação das mensagens, multidões foram às ruas pedindo que o governador renuncie ao cargo já. Há uma semana e meia, grandes protestos tomaram as ruas da capital San Juan. Ao longo da semana passada, Rosselló tentou conter os ânimos, mas afirmou que não deixaria o governo. No último domingo, em vídeo ao vivo no Facebook, reconheceu que “uma grande parte da população estava infeliz” e anunciou que estava deixando a presidência do partido e que não buscaria a reeleição em 2020.
A notícia não acalmou em nada a população, que organizou o maior protesto até então na última segunda-feira, 22. A maior estrada da ilha foi fechada por manifestantes e muitos trabalhadores porto-riquenhos entraram em greve exigindo que Rosselló saia do cargo. A polícia local fala em cerca de 200.000 manifestantes, mas o professor Venator-Santiago afirma que os números podem chegar a quase um milhão de pessoas. “Um protesto deste tamanho em uma ilha onde vivem 3 milhões de pessoas é significativo. O governo foi eleito com 650.000 votos”, pontua o cientista político.
Protestos assim são inéditos na história recente de Porto Rico. Apesar da grande quantidade de pessoas nas ruas, não há lideranças políticas claras. Artistas porto-riquenhos influentes, como o ator Lin-Manuel Miranda, o cantor de reggaeton Bad Bunny, a banda Calle 13 e o cantor Ricky Martin estão inflamando as ruas e ajudando a levar os protestos para fora da ilha.
Mesmo aliados políticos e antigos governadores de Porto Rico estão pedindo que Rosselló saia. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou na última segunda-feira, 22, que Rosselló “é um governador terrível”, mas não pediu sua demissão diretamente. Já Bill de Blasio, prefeito de Nova York, foi mais explícito: “enquanto os porto-riquenhos tentam superar o furacão Maria, ele zomba das vítimas por risadas baratas. Ele deveria renunciar imediatamente”.
A procuradora geral de Nova York, Letitia James, divulgou também uma nota em que concorda com de Blasio. “As recentes demonstrações feitas por corajosos manifestantes que demandam mudança e a atual crise de confiança no governador Rosselló tornam a continuação de sua liderança impossível e ele deveria renunciar”, afirmou no texto.
Porto Rico é um território associado aos Estados Unidos e, em 2017, aprovou em plebiscito se transformar no 51º estado do país, uma das principais bandeiras de Rosselló. Mas o resultado ainda não foi referendado pelos Estados Unidos. Porto Rico tem governo e congresso próprios, mas elege representantes para o congresso americano, e vota nas primárias das eleições presidenciais americanas. Uma pesquisa do instituto Gallup, divulgada na terça-feira, 23, indicou que dois a cada três americanos apoiam que a ilha seja integrada como estado.
O grande objetivo de vida de Ricardo Rosselló, de acordo com José Javier Colón Morera, professor de ciência política na Universidade de Porto Rico, era ser governador do país. Filho do ex-governador Pedro Rosselló, ele é formado em engenharia e economia na prestigiosa universidade americana MIT, ele assumiu o cargo no início de 2017.
Antes de desistir do cargo agora, portanto, precisa se convencer do que os analistas já perceberam: não tem nenhum apoio. “Ele está equivocado e já não pode governar, porque não tem apoio suficiente em nenhum lugar na legislatura de Porto Rico, no governo dos EUA, na opinião pública. É uma situação bastante constrangedora”, diz o professor.
Outro impasse que preocupa analistas locais é sobre quem assumiria o governo caso Rosselló saia ou seja impugnado. Pela constituição, o sucessor teria que ser o secretário de Estado de Porto Rico. O problema é que ele renunciou ao cargo no dia 14. Nesse caso, o poder passaria para a secretária de Justiça, que também está envolvida em escândalos. Para piorar a situação, o congresso local está em recesso.
Especula-se que o partido e Rosselló estejam, nesse meio tempo, tentando escolher alguém para assumir a secretaria de Estado. Dessa forma, um nome de consenso poderia assumir o poder no caso de uma renúncia e vir a representar a legenda nas eleições do próximo ano. “Há uma pessoa que está sendo apontada pelos meios de comunicação, a representante de Porto Rico no congresso dos Estados Unidos, Jennifer Gonzales”, diz Morera.
Outra suspeita é a de que o governador esteja tentando ganhar tempo com esse imbróglio político para ver se os protestos cessam espontaneamente. Na prática, é difícil que isso aconteça, como afirma o professor Venator-Santiago. “As pessoas vão continuar a protestar, há um comprometimento agora. Especialmente porque boa parte dos protestos são conduzidos por jovens, que têm mais tempo e energia disponíveis”, diz.
Os porto-riquenhos têm vivido em uma situação econômica e social difícil por pelo menos uma década. A economia local está colapsada há 13 anos e, em 2016, o Congresso dos Estados Unidos impôs um comitê de fiscalização da gestão de fundos federais na ilha. Além disso, em 2017, os furacões Maria e Irma destruíram a infra-estrutura da ilha. No ano seguinte, a administração impôs severas medidas de austeridade para tentar controlar a crise de dívidas, o que gerou pequenos protestos locais. Hoje, as taxas de desemprego estão em 9% e mais de 40% dos residentes vive em situação de pobreza.
“Esses protestos deveriam ter acontecido há um ano, depois do furacão Maria. As pessoas não deveriam precisar ler conversas do Telegram para perceber os abusos do governo”, opina o professor Venator-Santiago. “Mas, por alguma razão, foram as mensagens que mudaram algo na mente dos eleitores”.