Manifestante contrária ao texto da nova Constituição chilena: "rejeito" ganhou com 62% dos votos (Marcelo Hernandez/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 5 de setembro de 2022 às 20h23.
Última atualização em 6 de setembro de 2022 às 23h41.
O eleitorado do Chile rejeitou de forma massiva neste domingo, 4 de setembro, o texto proposto para uma nova Constituição no país, que vinha sendo elaborado ao longo dos últimos dois anos.
Houve discordância sobretudo em temas polêmicos como o Estado plurinacional para populações indígenas e reformas na Justiça, além de críticas ao processo de elaboração do texto. Com o resultado, a carta chilena segue sendo a de 1980, herdada da ditadura de Augusto Pinochet.
A rejeição teve 62% dos votos e a aprovação, só 38%. A EXAME ouviu analistas para entender o resultado no Chile e o que significa para o futuro do governo Boric, eleito em 2021 prometendo fazer do Chile o "cemitério do neoliberalismo". Veja abaixo os destaques da votação.
O "rechazo" (rejeito) foi vencedor em todas as regiões do Chile. Apenas em oito de 346 municípios houve maioria em favor da proposta constitucional. A principal mensagem do resultado é que o texto elaborado pela Constituinte não foi capaz de convencer eleitores de centro e parte da centro-esquerda, dizem analistas.
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"Não é que o 'pinochetismo' derrotou a esquerda. Não há possibilidade de imaginar que 62% da população que votou é de direita puramente, ou a favor da Constituição de Pinochet", diz o historiador Alberto Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp.
O resultado, com só quatro em cada dez eleitores aprovando o texto, chamou atenção pela redução no público potencial de aprovação em relação a 2020, quando 78% dos eleitores haviam votado a favor de começar a escrever uma Constituição substituta, e de 2021, quando 56% votaram em Gabriel Boric no segundo turno das eleições.
Para o cientista político Jaime Bordel, que escreve sobre Chile e América Latina, o entendimento da proposta como "radical" pelos eleitores, uma leitura muito repetida nas últimas horas, explica apenas parte da rejeição.
Ele aponta que, com exceção da nacionalização da água (o Chile é o único país do mundo com água privatizada), não havia propostas econômicas fora da curva, como nacionalizações de outros setores. Pelo texto, o Chile também se manteria como economia de mercado. E outros temas, como sistema de saúde público ou mudanças na Previdência, já eram demandados pela população.
"Acredito que a desconfiança contra o texto decorre não tanto do conteúdo, mas das ações de alguns constituintes durante o processo", diz.
O rascunho da Constituição que foi levado a votação foi elaborado por uma Constituinte de 154 membros, com maioria de visões progressistas. Havia entre os constituintes membros independentes (eleitos da sociedade civil), além de políticos profissionais. Houve também paridade de gênero e vagas específicas para representantes de populações indígenas.
Bordel cita como erros no processo casos de displicência entre os constituintes independentes, que fizeram a Assembleia ser mal vista entre a população. Entre os casos mais marcantes estão o de um membro que fingiu ter câncer e foi desmentido, ou outro que votou uma proposta enquanto estava no banho.
Além disso, para Bordel, há outros dois fatores responsáveis pela rejeição ao texto. Primeiro, a campanha do "aprovo" não soube, em sua opinião, responder a notícias falsas ou exageradas divulgadas pela oposição sobre o conteúdo da nova Carta. E, por fim, parte da centro-esquerda se mobilizou contra o texto e se tornou protagonista da campanha de rejeição.
A maioria dos eleitores, líderes políticos e organizações sociais afirmaram em mensagens nesta segunda-feira que o Chile ainda quer uma nova Constituição - mas que será talvez mais moderada do que o texto inicial.
A ideia de uma nova Constituição chilena começou a ser gestada sobretudo nos protestos massivos de 2019, chamados de estallido social, quando a população pediu mudanças em frentes como saúde, previdência e desigualdade - o que exigiria uma Constituição mais próxima de um Estado de bem-estar social aos moldes europeus do que do neoliberalismo dos anos 1980 do qual bebe a Constituição de Pinochet.
Essas demandas não desapareceram completamente, diz Aggio, da Unesp. "O que os eleitores rejeitaram foi esse texto, além de todo um processo constituinte marcado por muitos problemas. Mas o que tem de ficar claro é que o sentimento de uma nova Constituição ainda é um sentimento majoritário no Chile", diz o historiador.
O fato de que o processo constituinte não terminou também foi citado por Boric no discurso após o resultado. "Como presidente, aceito com humildade esta mensagem e tomo como minha. É preciso escutar a voz do povo", disse, mas afirmou em seguida que a redação de uma nova Carta Magna foi a saída para um "mal-estar que continua latente" e que o Chile não pode "ignorar".
Porém, com a rejeição ao texto no referendo, o processo constitucional agora muda de figura. A Constituinte foi encerrada e o protagonismo ruma para o Congresso, onde a direita tem maioria de 50%.
Nesta manhã, Boric teve uma reunião com os presidentes do Senado e da Câmara para discutir os próximos passos. Após a reunião, o presidente do Senado, Álvaro Elizalde, informou que todos os partidos, movimentos sociais e representantes da sociedade civil serão convocados "para promover um diálogo que nos permita o quanto antes transmitir uma certeza para o Chile" e "honrar o compromisso de avançar para uma Constituição".
Não se sabe que via os políticos chilenos no Congresso e o governo Boric adotarão a partir de agora, com mudanças podendo ser feitas por um comitê entre os parlamentares, por exemplo.
Ainda que uma nova Constituição deva surgir, a oposição comemorou a reprovação do texto inicial. "Presidente Boric: esta derrota é também a sua derrota", disse o ex-candidato de ultradireita à Presidência, José Antonio Kast, a quem Boric venceu em 2021.
A expectativa é também que Boric promova já nos próximos dias trocas em seu ministério e dê mais espaço ao centro, de modo a retomar algum apoio e garantir governabilidade. "Encontrar um caminho rápido para seguir em frente beneficiaria o governo, que recebeu um duro golpe com o resultado", afirmou à AFP Mariano Machado, analista de riscos da Verisk Maplecorf.
Como no restante da América Latina, a inflação no Chile também é um dos principais motivos de preocupação da população, e teve impactos na votação sobre a nova Constituição, para alguns analistas. O principal índice inflacionário chileno bateu 13% ao ano em julho, e a aprovação de Boric desde que assumiu o governo em março despencou, chegando perto de 40% (abaixo dos mais de 50% que ele obteve para vencer a eleição).
Não à toa, o índice de desaprovação de Boric e o percentual da população que rejeitou a Constituição foi parecido. "Está claro que a inflação influencia, sobretudo ao gerar um estado de ânimo contrário ao governo de Boric", diz Bordel, embora afirme que, em sua visão, a economia é somente "um fator a mais" além dos erros durante o processo.
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Para além do processo de negociação no Congresso a partir de agora e trocas no gabinete, o governo Boric terá de lidar com problemas urgentes na economia e sociedade chilenas - sem a ajuda da nova Constituição que poderia embasar as ações do governo.
"Tudo dito, nós mantemos a opinião de que o caminho para possíveis reformas constitucionais terá um cenário macro complexo, com potencial recessão para o próximo ano e alta inflação", escreveram os analistas Andrea Casaverde, Roque Montero e Rafael De La Fuente, do banco suíço UBS, em relatório a clientes. O banco aponta que os mercados chilenos receberam de forma positiva a rejeição da nova Constituição. O principal índice da bolsa de Santiago fechou a segunda-feira com alta de 2,23%.
(Com informações da AFP)