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"Começam a agir mudando regras eleitorais", diz autor sobre ditaduras

Autor do livro "O Povo Contra a Democracia: Por que Nossa Liberdade Corre Perigo e Como Salvá-la" diz que há uma epidemia global de líderes contra a democracia

Yascha Mounk: "No pós-Guerra Fria surgiu um liberalismo pouco democrático, que beneficiou apenas uma elite" (Iguana Press/Getty Images)

Yascha Mounk: "No pós-Guerra Fria surgiu um liberalismo pouco democrático, que beneficiou apenas uma elite" (Iguana Press/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 11 de julho de 2021 às 10h12.

Foi inocência pensar que a democracia liberal seria o regime político incontestado no mundo. Ela agora enfrenta seu maior desafio, com as pessoas perdendo a fé no sistema e elegendo líderes que atacam a ordem institucional.

É assim que o cientista político alemão Yascha Mounk, autor do livro O Povo Contra a Democracia: Por que Nossa Liberdade Corre Perigo e Como Salvá-la descreve a epidemia global de líderes não liberais dispostos a erodir a democracia. "Depois que o campo estiver arruinado, começam a instaurar uma ditadura", diz. A seguir, veja os principais trechos de sua entrevista.

Yascha Mounk: "No pós-Guerra Fria surgiu um liberalismo pouco democrático, que beneficiou apenas uma elite" (Iguana Press/Getty Images)

Depois da Guerra Fria, muitos pensavam que a democracia seria o destino da maioria dos países, mas agora ela está sendo ameaçada em todo o planeta. O que deu errado?

Foi inocência pensar que a democracia liberal seria o regime político incontestado no mundo e as pessoas seriam sempre felizes com o sistema político que tinham. Ao falar no fim da história, Francis Fukuyama fez duas previsões: as maiores alternativas à democracia - em particular se você olhar para o século 20, com o comunismo e o fascismo - perderam legitimidade ideológica e as pessoas na maior parte do mundo não voltariam a elas.

A outra previsão é que a democracia liberal seria capaz de satisfazer seus cidadãos. Fukuyama estava certo sobre não existir uma alternativa sólida à democracia liberal que atraia e seja significativa para a maioria das pessoas. Mas errou na segunda previsão: em muitas partes do mundo, a democracia liberal perdeu a capacidade de manter a segurança e a satisfação da maioria dos cidadãos, que estão insatisfeitos com os rumos de seus países.

Quando você vê a ascensão de populistas como Jair Bolsonaro no Brasil, eleições sendo apresentadas como fraudadas em países como o Peru, ou o vigor de nacionalistas de extrema-direita como Marine Le Pen na França, tudo isso está enraizado nas falhas das instituições democráticas em ganhar a confiança dos cidadãos.

Quais seriam essas falhas?

No pós-Guerra Fria surgiu um liberalismo pouco democrático, em que eleições regulares e competitivas não se reverteram em participação popular ou melhoria da qualidade de vida das pessoas, beneficiando apenas uma pequena elite.

Isso levou a uma incapacidade das democracias liberais de assegurar crescimento econômico e, particularmente, fazer com que os benefícios do crescimento econômico cheguem a todos os cidadãos. As pessoas estão compreensivelmente frustradas com os problemas que temos hoje em dia e o quanto estamos distantes dos nossos ideais. Sentem que sua opinião não conta, mesmo vivendo em uma democracia.

Mesmo que tenham alguma coisa, a maioria é mais pobre do que outros membros da sociedade, mais pobre do que os pais foram, e tudo indica que os filhos delas vão ser ainda mais pobres.

Portanto, todos têm muito medo do futuro. Nem todos os cidadãos se beneficiam do crescimento econômico, e essa disparidade acentua a raiva das pessoas com a democracia. Há muita gente desorientada com as mudanças culturais e demográficas no mundo, e a maioria das sociedades falhou em encontrar uma nova narrativa de pertencimento diante dessas rápidas mudanças.

Muitos lugares viram um rápido influxo de imigrantes, um rápido crescimento das minorias, o crescimento das liberdades para as mulheres, a secularização das sociedades. A maioria das sociedades falhou em encontrar uma maneira de debater essas mudanças que incluísse essas populações em rápido crescimento, mas que também garantisse àqueles que estavam perdendo status social o direito de ser respeitado e ter um papel.

Como isso se reflete na ascensão do populismo?

A alienação da população comum daqueles que os governam leva à ascensão dos populistas. Quando aqueles que estão no Parlamento, que estão nas universidades, nas grandes empresas, nos jornais, na televisão, se desconectam ou ignoram o cidadão comum, está pavimentado o caminho para o populismo.

Essa alienação ajudou a levar muitos países a uma polarização profunda em que não apenas 1% da população, mas 20% a 30% da população olha para as elites com raiva e ressentimento.

A população não está errada ao perceber que sua participação política é pequena em muitos casos. E querer mudar isso é um fator muito positivo. O problema é que populistas como Chávez, Orbán e Jair Bolsonaro se aproveitam desse sentimento.

Quais são os sinais comuns dessa erosão democrática?

O cerne do populismo é o ataque às instituições. Populistas no poder começam por atacar a liberdade de imprensa, fragilizar as instituições democráticas e cercear a oposição. Uma das primeiras ações é alterar regras eleitorais consolidadas, subjugar o Judiciário e tentar desmerecer a legitimidade do processo eleitoral e das instituições democráticas. Depois que o campo estiver arruinado, começam a instaurar uma ditadura.

Como reconhecer quando um populista começa a agir?

Populistas são muito diferentes entre si em termos de ideologia, de trajetórias pessoais e aspirações. Mas a retórica é surpreendentemente parecida e consistente. E o que me preocupa mais nessa retórica de populistas de direita, de esquerda, de centro, é que eles, e apenas eles, são os verdadeiros e legítimos representantes do povo.

No momento em que um político começa a falar como se ele fosse a única força política legítima e quem disser o contrário não é apenas um adversário político, mas um inimigo do povo, eu começo a me preocupar que ele não vá aceitar os tipos de controles de poder que fazem parte essencial de uma democracia funcional.

As alegações de fraude mundo afora mostram como as normas e regulamentos da democracia estão sendo erodidas e esvaziadas. A pedra angular de qualquer democracia funcional é a admissão da derrota. O fato de Donald Trump ter iniciado essa onda de ataques ao sistema eleitoral e milhões de americanos terem acreditado que houve uma fraude em massa nas eleições prova quão fragilizadas estão as instituições democráticas.

Quantos danos essas alegações terão em cada país dependerá de quanto poder político detêm aqueles fazem tais alegações. Quando um político de oposição alega fraude é menos perigoso do que quando alguém no poder o faz. Um presidente alegar fraude é mais grave e perigoso, porque ele concentra todo o poder federal em suas mãos. No caso dos EUA, por exemplo, Trump conseguiu postergar o resultado e ameaçar de verdade um processo eleitoral consolidado. Os EUA brincaram com fogo nesse período.

Como evitar que uma democracia sofra essa erosão?

Você precisa olhar para os sinais de quanto as pessoas estão satisfeitas não com governos em específico, mas com a democracia de maneira geral, e o quanto elas estão abertas à alternativas autoritárias à democracia e essa é uma medida de quanto a democracia se deteriorou nos últimos anos.

A democracia hoje enfrenta seu maior desafio. As pessoas estão perdendo a fé no sistema e elegendo líderes que, dizendo representar a vontade popular, atacam a ordem institucional. O risco resulta de demandas da sociedade. Um primeiro passo é implementar políticas para reduzir a desigualdade e elevar o padrão de vida do cidadão.

Em seguida, para se opor a esses movimentos, é preciso entregar às pessoas o que elas querem, a detectar onde está o ressentimento delas, e garantir que a vida delas melhore e elas possam ser otimistas acerca do futuro. E mostrar que a democracia valoriza todos os grupos de pessoas, seja um pequeno grupo da minoria, seja um grande grupo da maioria, e não favorecem grupos específicos e uma elite. Todos têm que se sentir representados pela democracia.

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