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A tentativa de golpe na Turquia em 9 pontos essenciais

Há exatos sete dias, a Turquia foi alvo de uma tentativa de golpe que está mudando os rumos do país. Entenda como e por que isso aconteceu

Militares são presos após tentativa de golpe na Turquia: com histórico de golpes militares, país vive momento de tensão e instabilidade (Getty Images / Stringer)

Militares são presos após tentativa de golpe na Turquia: com histórico de golpes militares, país vive momento de tensão e instabilidade (Getty Images / Stringer)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 22 de julho de 2016 às 12h50.

Última atualização em 19 de outubro de 2016 às 10h26.

São Paulo – Há exatos sete dias, a Turquia foi alvo de uma tentativa de golpe que está mudando os rumos do país.

Na ocasião, um grupo de militares tomou as ruas da capital Ancara e de Istambul com tanques, fechou pontes e declarou ter assumido o controle. Mas esse anúncio se mostrou falso depois da reação do presidente Recep Tayyip Erdogan, que convocou uma ofensiva militar e incentivou a população a ir para as ruas.

Desde então, para eliminar a influência daqueles que conspiraram contra o seu governo, Erdogan anunciou medidas duras com o objetivo de estabilizar o controle sobre o território turco e estruturas de poder, como a possibilidade de reintroduzir a pena de morte e a declaração do estado de emergência por três meses.

Os detalhes acerca dessa tentativa de golpe militar, algo que não é exatamente uma novidade na história da Turquia enquanto República, ainda não foram totalmente esclarecidos, assim como também não se sabe ao certo quem são as pessoas envolvidas nesse evento.

Para que seja possível entender o que aconteceu na Turquia na semana passada e como as coisas devem ser daqui em diante, EXAME.com preparou um guia com os pontos principais que rondam o assunto e os esclareceu com a ajuda de especialistas.

Qual o papel dos militares nessa história?

Para compreender o que acontece hoje na Turquia, é essencial olhar para as últimas décadas da sua história. Desde 1921, suas constituições deixaram claro que os militares têm o direito e o dever de interferir em nome dos interesses da nação, como explica o artigo “Turquia entre o Império Otomano e a União Europeia”, publicado pela Fordham International Law Journal.

Com a dissolução do Império Otomano e a fundação do país que conhecemos hoje pelo oficial do exército Mustafa Kemal Ataturk em 1923, a noção de que os militares são os “guardiões” do secularismo, da constituição e da democracia turca se fortaleceu.

Ataturk é considerado o pai da Turquia moderna, o responsável pela introdução de reformas que tinham como objetivo de aproximá-la do ocidente, sem que o islamismo tivesse um protagonismo na esfera pública e política.

Como resultado da secularização do país, em tempos de instabilidades políticas e econômicas, são frequentes as interferências das Forças Armadas. E é por essa razão que golpes militares e tentativas de tomada de poder não são uma novidade para os turcos.

Quantos golpes já aconteceram no país?

Bem, desde 1960, foram quatro golpes bem-sucedidos, veja a linha do tempo abaixo:

O primeiro da história da República da Turquia aconteceu exatamente em 1960, quando houve uma tentativa do governo de amenizar as reformas colocadas em prática por Ataturk no que diz respeito à religião.

Anos depois, já na década de 70, notou-se uma maior polarização no cenário político do país e as instabilidades culminaram em embates entre grupos de direita e esquerda. Em 1971, os militares editaram um memorando no qual informavam ter assumido o controle do governo. Acontecia o evento que ficou conhecido como “golpe por memorando”.

Os anos seguintes foram de dificuldades econômicas na Turquia e de ataques terroristas. Em um espaço de nove anos, o país trocou 11 vezes de primeiro-ministro. A violência e a desordem tomavam conta das ruas e, novamente, os militares levaram a cabo um novo golpe, agora em 1980, no qual prenderam mais de 100 mil pessoas.

O mais recente deles aconteceu em 1997, quando o país tentava se tornar membro da União Europeia (UE) e era liderado por um governo de coalizão islâmico. Os militares emitiram então recomendações que deveriam ser seguidas com o objetivo de manter a tradição secular.

O primeiro-ministro Necmettin Erbakan, que era parte do partido islâmico Refah Partisi e mentor de Erdogan, foi eventualmente deposto e viu seu partido ser banido por ter sido considerado nocivo aos princípios modernos.

O que motivou essa tentativa de golpe?

Erdogan não é exatamente um personagem carismático e conhecido pelo apego às instituições democráticas. Seu partido AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) nasceu em 2001 das cinzas do partido islâmico de Erbakan e reunia seus ex-membros.

Esse autoritarismo é demonstrado em ações recentes nas quais atuou com força para reprimir a liberdade de imprensa, o judiciário, Forças Armadas e até mesmo as universidades. Embora os detalhes do golpe ainda estejam vindo à tona, é inegável o papel que essa pressão teve em todo o evento.

No entanto, a oposição se juntou a Erdogan e a população também. Todos se manifestaram contra essa interferência. E isso, explica Tim Eaton, diretor do Programa do Oriente Médio e Norte da África da Chatham House, mostra um elemento ideológico importante e que revela que a Turquia ainda está dividida em relação ao papel do islamismo na esfera política.

Quão frágil é o governo de Erdogan?

Erdogan foi primeiro-ministro da Turquia entre 2003 e 2014, quando ascendeu a presidência do país. É o primeiro presidente diretamente eleito pelos turcos e um admirador dos tempos do Império Otomano, no qual a religião tinha um papel fundamental na sociedade. Essa posição, no entanto, é vista como uma afronta aos valores trazidos por Ataturk.

Segundo Eaton, há tempos a oposição vem criticando Erdogan por ter ampliado seus poderes no sistema político e por sua cada vez menor tolerância a quaisquer formas de discordância. “Eles argumentam que o governo hoje nada mais é que uma extensão do presidente, que é um governo de um homem só. ”

Na sua avaliação, embora Erdogan esteja encarando uma oposição crescente, segue fortalecido, especialmente por conta do apoio popular e do controle que tem sobre o partido. No entanto, ainda há desafios, como na esfera econômica e em relação à segurança interna, por conta dos ataques terroristas recentes.

Shelly Culberston, analista da RAND Corporation, lembra que Erdogan foi eleito com 52% dos votos, numa eleição que polarizou a esfera política. De acordo com ela, é possível que Erdogan use essa tentativa de golpe como uma desculpa para conseguir minar a influência dos seus opositores e se fortalecer. “Ainda não está claro como as coisas vão se desenrolar, mas é possível que ele tente abraçar ainda mais o poder”, explica.

O que significa esse estado de emergência?

Dias depois de ter iniciado o expurgo de seus opositores, Erdogan declarou que o país estará em estado de emergência pelos próximos 3 meses para atacar “as ameaças à democracia”. Na prática, no entanto, essa ação aumenta ainda mais o poder que ele tem em mãos.

Organizações de direitos humanos e nações ocidentais, especialmente aquelas que fazem parte da União Europeia, rapidamente reagiram com críticas aos atos de Erdogan, alegando que ele estaria abusando dos seus poderes para justamente esmagar a oposição.

De acordo com o jornal The New York Times, a constituição do país permite que um conselho de ministros, liderado pelo presidente, declare esse estado de emergência, mas a medida ainda deve ser aprovada pelo parlamento turco.

Segundo a publicação, essa declaração não inclui poderes para restrição de liberdades civis, mas permite que sejam aprovadas leis com maior rapidez e a perseguição de indivíduos suspeitos de terem feito parte dessa tentativa de golpe.

O medo é que esse movimento seja usado também contra a oposição pacífica e que torne ainda mais extenso o severo expurgo que Erdogan vem realizando em todos os setores do poder e da sociedade turca.

Quais as consequências para os envolvidos nessa tentativa?

As piores possíveis. A reação do governo de Erdogan foi imediata e dura. Momentos depois de retomadas as rédeas da situação na última sexta-feira, foi dado início a uma espécie de limpeza, especialmente focada nos indivíduos que teriam alguma ligação com o clérigo Fethullah Gülen, a figura central das acusações do governo, e seu movimento, o Hizmet.

Veja abaixo os números desse expurgo até o momento:

A situação no país, agora, é descrita como delicada. Kamil Ergin, jornalista turco que reside há 10 anos no Brasil e parte do Hizmet, disse a EXAME.com que há incentivos do governo para que a população proteste contra os seguidores de Gülen e os denunciem. Ele conta que há relatos de prédios associados ao movimento que foram alvo de vandalismo.

O que é movimento Hizmet e qual o seu papel nessa história?

Também conhecido como movimento Gülen, é uma organização da sociedade civil formada por seguidores do clérigo Fethullah Gülen, um intelectual que ganhou notoriedade a partir dos anos 60 e que vive exilado nos Estados Unidos desde o final da década de 90.

Segundo Ergin, o movimento adota uma interpretação diferenciada do Islã, que preza que a religião não deve servir a meios políticos e que somente com a educação é que será possível tornar o mundo um lugar melhor. De acordo com o jornalista, o movimento prega a união e a integração da comunidade muçulmana com o mundo e o uso da religião para fins pacíficos.

Para Erdogan, no entanto, essa tentativa de golpe teria sido orquestrada por Gülen e seus seguidores e pediu que os Estados Unidos extraditassem o clérigo para a Turquia para que responda às acusações de traição. O intelectual, por sua vez, nega ter participado do incidente.

Gülen e Erdogan não eram inimigos, mas a relação entre eles teria azedado de vez em 2013, quando foi dado início a uma investigação de corrupção no país que tinha como alvo o filho do presidente. Em sua defesa, Erdogan disse que essa era uma tentativa de golpe e reagiu arquitetando o arquivamento do processo e prendendo promotores e policiais.

Para Eaton, a perseguição de Erdogan a Gülen é clara. “Enquanto o Ocidente pedia que ele se concentrasse no combate ao Estado Islâmico, os seguidores do movimento eram a sua prioridade”, explicou.

Na sua opinião, a questão quanto ao envolvimento do clérigo e seus seguidores nessa última tentativa de golpe é se eles teriam a capacidade de implementar uma ação coordenada como aquela e que envolveu a tomada de bases militares, da inteligência e centros de comunicação, além da participação de juízes, oficiais do governo e até o alto escalão das Forças Armadas.

Há chances de observarmos novas tentativas de golpe?

A reação de Erdogan foi dura, abrangente e esse expurgo foi conduzido com a clara intenção de remover os conspiradores e minar a capacidade para uma nova tentativa. “Esse evento será usado por ele como uma justificativa para aprofundar o seu autoritarismo e para pressionar o seu desejo de realizar uma reforma constitucional”, crê Eaton.

“A ironia”, continuou o pesquisador, “é que a oposição popular ao golpe militar para defender a democracia possa vire apoio a um governo que continua a corroer os freios e os contrapesos democráticos ”, pontuou.

Quais os riscos nucleares?

Enquanto o governo da Turquia lida com essa tentativa de golpe, uma pergunta inevitável e não menos importante surgiu: quão seguras estão as armas nucleares baseadas no país?

Durante a última sexta-feira, uma das bases que estiveram no alvo das autoridades turcas era a base de Incirlik. É lá que os EUA estariam armazenando ao menos 50 armas nucleares. Naquela fatídica noite do dia 15 de julho, oficiais cercaram o local, cortaram a energia e fecharam temporariamente o espaço aéreo.

Localizada ao sul do país, quase na fronteira com a Síria, essa base é controlada pelos Estados Unidos e também pela Turquia e é parte fundamental da estratégia da coalizão no combate ao EI. As instabilidades nessa região parecem só aumentar, trazendo à tona a preocupação quanto aos riscos que um arsenal como esse estaria exposto.

Hans Kristensen, da Federação dos Cientistas Americanos, em entrevista ao jornal The Guardian, enxergou essa situação com extrema preocupação e disse que a lição maior, no que tange a segurança nuclear, é que os benefícios em se armazenar um arsenal na Turquia são mínimos. “É hora de retirá-las de lá”, cravou o cientista, “você só tem alguns avisos antes que algo dê terrivelmente errado. ”

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