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A praga do enochato

Girando a taça incessantemente, fungando estrepitosamente e falando sem parar sobre os aromas de bosques úmidos da Bavária, essa espécie em expansão está em todo lugar

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Da Redação

Publicado em 12 de outubro de 2010 às 18h11.

Repare bem. Ele é o sujeito que eleva a taça à altura dos olhos e a gira incessantemente, enquanto capricha na expressão de quem demonstra um Teorema de Fermat ou está em via de dar um xeque-mate na final do mundial de xadrez. É aquele que discorre longamente sobre as qualidades de um obscuro produtor neozelandês quando a conversa da turma na mesa é a separação de Marília Gabriela e Reynaldo Gianecchini. Com freqüência enfia o nariz dentro do copo e, após intermináveis e barulhentos segundos de aspiração, sai-se com um veredicto do tipo "frutas vermelhas maduras dos bosques da Bavária com um toque de grafite e pêlo de husky siberiano", diante de seus atônitos companheiros -- que até então acreditavam tratar-se de apenas um vinho razoável. Nos últimos anos, o aumento do interesse por vinhos no Brasil colocou em evidência os sommeliers, profissionais que ajudam a escolher a garrafa certa nos restaurantes, multiplicou o número de enófilos e trouxe a admiração pelos enólogos, aqueles que elaboram os vinhos. Infelizmente, deu origem também a uma praga: o enochato.

Reconheça um enochato
Algumas das atitudes mais comuns dos supostos entendidos em vinhos
Tremedeira
Ele não pára de sacudir sua taça, mesmo que contenha vinhos de garrafão
Verborragia
O enochato só tem um assunto: aromas, aromas e mais aromas
Falta de noção
Vai direto na garrafa mais cara da carta, sem saber se é adequada ou não ao jantar
Exibicionismo
Adora devolver a garrafa no restaurante, mesmo que não haja nada de errado com o vinho

Há muitas variantes dessa incômoda tribo. Alguns fazem questão de demonstrar um pretenso conhecimento que não possuem para impressionar sua audiência. É o tipo que adota um ar professoral para falar os piores disparates. Há o enochato endinheirado, que compra pelo rótulo e gasta fortunas em garrafas que são verdadeiros ícones. O vinho torna-se uma forma de obter status, ainda que a pessoa em questão entenda -- e aproveite -- muito pouco do que está bebendo. Recentemente, no restaurante Fasano, um espécime harmonizou uma garrafa do reverenciado vinho francês Mouton Rothschild, vendido por 5 694 reais, com café e um doce, deixando meia garrafa intacta. Há outros que realmente conhecem o assunto a fundo, mas simplesmente não conseguem discernir o momento e o local adequados para usar esse arcabouço de informações. São capazes de discursar sobre os taninos da uva cabernet sauvignon durante uma disputa de pênaltis na Copa do Mundo. Um exemplo é o de um conhecido apresentador de televisão que certa vez levou suas taças Riedel para o camarote da Brahma, em plena Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, para espanto dos foliões.

Vocabulário bizarro

O que todos têm em comum é o que, em geral, define os chatos de qualquer espécie: a incapacidade de perceber que estão sendo inconvenientes. Na apostila da Associação Brasileira de Sommeliers, o médico Mario Telles, um dos maiores especialistas brasileiros em vinho, tenta educar os novos enófilos a fim de que não escorreguem para a enochatia. "Não seja chato. Deguste na hora de degustar e beba socialmente quando indicado. Não contribua para a injusta imagem de esnobismo que a degustação de vinhos tem junto ao público", escreveu Telles. Essa é a origem do vocabulário bizarro do enochato. A analogia com plantas e frutas é um recurso de que os especialistas lançam mão para tentar descrever o aroma e o gosto de um produto a quem nunca o experimentou. Como essa tradição surgiu na Europa, os termos usados são de elementos presentes no Velho Mundo: bosque úmido, cassis pisado, trufas brancas. Nossos enochatos adotaram o mesmo léxico, sem considerar que nada disso faz parte da realidade brasileira. Também é preciso considerar que esse tipo de discurso, assim como o ato de dar longas aspiradas na bebida, é bem mais adequado durante degustações que à mesa de refeição. E a clássica girada no copo? Ao contrário do que alguns pensam, não se trata apenas de esnobismo. Há um efeito prático: o vinho é arejado e seus aromas se desprendem. Por isso, a prática é considerada indispensável nas degustações. Pode ser tolerada em encontros informais, mas deve ser evitada -- ou ao menos feita de forma discreta -- em ocasiões sociais.

Ao longo da carreira, o sommelier da World Wine/La Pastina, Mauricio Leme, travou diversos confrontos com enochatos. Durante suas palestras sobre vinho, já foi interrompido por pessoas que faziam observações inúteis recheadas de pretensos termos técnicos. "É fácil detectar o enochato. Geralmente ele junta um grupinho para dar sua palestra particular assim que termina a apresentação. Depois vai falar com o palestrante para mostrar que sabe mais que ele." Para um sommelier, o pior enochato é aquele que devolve o vinho no restaurante após provar o primeiro gole, apenas para impressionar os amigos que estão com ele. É absolutamente correto pedir ao sommelier que troque uma garrafa -- contanto que esteja mesmo estragada. A rigor, só existem dois casos em que isso ocorre. O mais comum é o vinho estar oxidado devido à idade avançada ou por ter sido mal armazenado. O outro motivo é o que os sommeliers chamam de vinho bouchonné, um gosto ruim proveniente de um fungo que ataca as rolhas.

Um dos restaurantes cuja equipe foi treinada por Leme chegou a ter oito devoluções de vinho numa mesma semana. É altamente improvável que todos estivessem inadequados ao consumo. Também já houve um caso em que a pessoa, não satisfeita em mandar trocar o vinho uma vez, repetiu o ato assim que a nova garrafa chegou à mesa. Detalhe: a bebida estava em perfeitas condições. Quando o sommelier prova a garrafa rejeitada e constata que não há problema algum, é preciso ter muito tato para não melindrar o cliente. A recomendação é acatar o pedido mesmo se ele for infundado. Uma forma de tentar recuperar o prejuízo é vender o vinho em taças para os demais clientes. E torcer para que esses não sejam enochatos também.

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