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O risco da terceirização da responsabilidade

A criação de uma sociedade ética passa pela reflexão crítica individual sobre até que ponto nos importamos com as pessoas o suficiente para nos responsabilizarmos por elas

É preciso o envolvimento ativo de todas as pessoas para a construção de uma rede de proteção coletiva capaz de mitigar riscos individuais (Prostock-Studio/Getty Images)
Daniela Grelin

Diretora Executiva do Instituto Avon

Publicado em 27 de agosto de 2023 às 08h40.

O mundo dos negócios oferece um campo de teste para múltiplas experiências de terceirização, com graus variados de sucesso e sustentabilidade. Participamos da terceirização de serviços entre economias e culturas quando utilizamos os serviços de um help desk na Índia para resolver os nossos chamados de assistência técnica a programas de software e computadores.

Experimentamos também a terceirização de algumas de nossas funções cognitivas à tecnologia, pois não faz mais sentido nos preocuparmos em memorizar rotas de deslocamento quando o Waze pode fazer isso por nós, com acesso a um volume incomparavelmente maior de dados e informações em tempo real. Os bancos terceirizam riscos por meios de sofisticados instrumentos financeiros numa cadeia de delegação de responsabilidades e consequências que, em caso de crise, transferem o “mico” para ombros mais incautos.

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O desejo de terceirizar custos e riscos é um critério empregado em nossas decisões cotidianas, desde as mais banais até as de mais alto envolvimento. Mas qual o limite do que pode ser terceirizado? É possível terceirizar a responsabilidade pela criação de uma sociedade que valoriza a vida de suas mulheres e meninas?

Um trágico episódio recente em Minas Gerais nos confronta com esta questão. Uma jovem de 22 anos foi estuprada ao ser deixada desacordada na porta de casa na madrugada de 30 de julho. Ela havia ido a um show no estádio do Mineirão e, ao decidir ir embora, alcoolizada, um amigo chamou um motorista de aplicativo e compartilhou o trajeto com o irmão da vítima, que deveria acompanhar a viagem e esperá-la na porta de casa.

Ao chegar ao destino o motorista tentou acionar o irmão, pelo interfone e celular, sem sucesso. Alguns minutos depois, retirou a jovem desacordada do carro, com auxílio de um transeunte e deixou-a inconsciente na rua, onde foi posteriormente carregada pelo agressor. O estuprador foi identificado por imagens de câmeras de segurança e preso preventivamente.

Assim como em um acidente aéreo, uma cadeia de falhas humanas e condições latentes se somaram neste evento para oportunizar um desfecho terrível. O episódio nos convoca a pensar sobre a sequência de negligências evitáveis que se alinharam para resultar em mais uma estatística de uma sociedade tragicamente violenta. Talvez um olhar mais profundo sobre esta intricada rede de interações humanas nos ajude a repensar as responsabilidades morais indelegáveis, que são a matéria-prima de uma sociedade mais justa e segura.

No caso em Minas Gerais, fica claro que negligências individuais, intencionais ou não, foram deflagrando a exposição da jovem, inconsciente e vulnerável, ao risco da abordagem de um agressor oportunista. Potencialmente, se qualquer uma das decisões – do amigo, do irmão, do motorista, do transeunte – tivesse ocorrido no sentido do comprometimento com a proteção da segurança da jovem vulnerabilizada, a corrente de erros teria sido quebrada, evitando o crime.

Isto nos traz à memória que uma sociedade livre e justa não é um presente, mas uma conquista ética. Sem a capacidade de seus cidadãos de praticarem virtudes coletivas, ou seja, afetos e hábitos não terceirizáveis tais como a empatia, a solidariedade, o engajamento moral e interesse genuíno pela vida humana, a liberdade e os direitos inevitavelmente se perdem.

É preciso o envolvimento ativo de todas as pessoas para a construção de uma rede de proteção coletiva capaz de mitigar riscos individuais. Eu destaco todas as pessoas, para evitar a tentação generalizada de atribuir a responsabilidade a instituições como o ‘Estado’, o ‘setor privado’, a ‘sociedade’ como se as instituições fossem os outros, e eu apenas o sujeito de direitos.

Se insistirmos em um modelo mental que reconhece nos outros as falhas que eu tenho o poder e a responsabilidade de evitar, abriremos mão de transformar o único elo desta rede de relações que tenho a oportunidade de fortalecer: a minha própria consciência. Não podemos terceirizar as consequências das nossas más escolhas sem efeitos trágicos, assim como não podemos terceirizar a nossa consciência aos órgãos regulatórios.

Não estamos fadados a fazê-lo. Podemos resgatar a sensibilidade àquele compasso moral que está dentro de nós e que estabelece uma ponte entre o nosso bem-estar e o dos outros, tornando-nos solidariamente responsáveis pelo bem comum. Todos nós, homens e mulheres, individual e coletivamente, somos arquitetos desta casa que gostaríamos de chamar de lar

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