O dia em que Pelé me ajudou a editar uma revista black
Ídolos não deveriam partir nunca, mas o rei deixa um legado de referências positivas no esporte e na sociedade, escreve Celso Athayde
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Pelé: legado de referências positivas no esporte e na sociedade (Anindito Mukherjee/Reuters)
Publicado em 30 de dezembro de 2022 às, 11h55.
Última atualização em 30 de dezembro de 2022 às, 12h46.
Faz dias que eu penso em escrever sobre nosso rei. O rei Pelé. Queria deixar um texto preparado para sua partida, que, tristemente, se avizinhava. Mas eu não conseguia. Me dava uma sensação ruim, como se eu quisesse acelerar o processo.
Hoje ele partiu, e deixa muitas histórias lindas, por todo o mundo. Pelé parou guerras e construiu narrativas importantes para a sociedade e para o movimento negro. Sei que serei apenas mais um a homenageá-lo, o que ele merece. Mesmo assim, resolvi contar uma história minha com ele, que, acredito, resume o tamanho da sua majestade.
Era 1994, governo Fernando Henrique Cardoso, e Pelé ocupava o cargo de secretário especial do Esporte, com status de ministro. Eu e meu irmão havíamos criado o Baile de Charme de Madureira, embaixo do viaduto, e, para divulgar a empreitada, lançamos uma revista: Charme na Rua. A primeira edição, com a sensação do rádio Andrea Gasparetty, foi um sucesso.
Logo depois, porém, meu irmão foi assassinado, e segui no projeto sozinho, aos trancos e barrancos. Eu vendia que estava construindo a primeira revista black do Brasil, mas era marketing. Antes da Charme, um pessoal do rap havia lançado a Pode Crer, essa sim a primeira. Nem assim, eu consegui emplacar.
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Na oitava edição, a situação era pré-falimentar. Um dia minha mãe me chama. “Filho, sabe quem vem aqui amanhã? O rei Pelé”, ela disse. “E daí?”, respondi, carinhosamente. “Não está falido? Ele é preto, como você. Vai lá e pede dinheiro.”
Achei que era maluquice. O Pelé era um deus, intocável para um reles mortal como eu — e isso me parecia justo por tudo que ele representava. Mas, como era minha mãe falando, resolvi ver o que ele viria fazer na Favela da Maré.

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O rei lançaria a pedra fundamental da Vila Olímpica. Parti para lá pronto para ser ignorado e para culpar minha mãe por me colocar nessa furada. Não tive dificuldade em chegar perto dele. Na primeira brecha, puxei sua camisa e falei: “Tenho uma revista, quero você na capa, mas sou pobre e não posso te pagar.”
Mostrei as edições anteriores e ele sorriu. Apontou para um cara, Carlos Alberto Medeiros, um assessor dele no Rio, e mandou eu procurá-lo. Dois meses depois, saiu a edição número 8, graças a ele, que me viabilizou recursos.
A falência não foi evitada — mas isso está na conta da minha inexperiência em tentar editar uma revista sem equipe e sem nada. Pelé, no entanto, me viu, me atendeu e me ajudou. Esse era o rei.
Ídolos não deveriam partir nunca. Pelé viverá para sempre, por ser sinônimo de coisas boas e referências positivas no esporte e no cotidiano do brasileiro e de todo cidadão do mundo. Vida longa ao rei.
*Celso Athayde é CEO da Favela Holding e fundador da Cufa