Estudo com população indígena pode acelerar aprovação de medicamentos no Brasil
Projeto criado pela Sail for Health e a Universidade de Oxford, da Inglaterra, busca tirar proveito da diversidade brasileira para universalizar os testes de medicamentos e facilitar sua aprovação por agências reguladoras
Última atualização em 27 de agosto de 2024 às 13h58.
Um olhar integrado para a saúde das pessoas, dos animais e do planeta: é o que prega o conceito “One Health” da Organização Mundial da Saúde (OMS) e também guiou uma imersão na Amazônia realizada em 2023 pela fundadora da SAIL for Health,Marina Domenech, a convite da Sthorm e PlanetaryX. Fundada em 2022, a empresa atua como um hub de inovação para catalisar iniciativas de impacto na saúde econectar players, academia e indústria para desenvolver soluções – seja para atrair investimentos, reter e desenvolver tecnologia no país ou promover o acesso.
No ano passado, um investimento de£ 5 milhões (R$ 31,75 milhões) daSAIL financiou a criação de uma cadeira perpétua de Saúde Global e Desenvolvimento Clínico na Universidade de Oxford – o que seriauma porta para o Brasil adentrar em fundações e instituições internacionais, e se tornar protagonista da ciência no mundo.
A experiência nas comunidades de Mauês, município do Amazonas, foi transformadora e abriu um leque de oportunidades para pensar a saúde de forma holística e também com uma atuação mais efetiva junto aos povos originários, contou Marina à EXAME. A partir dela, a empresa vem se dedicando a projetos pioneiros na área. “Entendemos que oprimeiro passo seria ouvir essa população, entender suas reais necessidades, o que querem, e traçar estratégias que os incluam no desenho e na execução de políticas públicas. O Brasil é o país com a maior biodiversidade do mundo, e a cultura indígena, com toda sua tradição e conhecimento, tem muito a nos ensinar”, disse.
O mais recente e que está sendo desenvolvido é um estudo pioneirode saúde dedicado a pesquisas de povos originários na própria comunidade, em parceria com o International Vaccine Institute (IVI) e com apoio de organizações locais. O projeto foi desenhado inicialmente para estudar a febre tifoide e compreender se os indígenas locais possuem anticorpos para a doença, sua incidência, além de apontar caminhos e estratégias para garantir o acesso ao tratamento. Em um segundo momento, o foco será em entender a relação entre as condições de vida (moradia, alimentação, saneamento) e relação com os casos de doenças no território – a fim de desenvolver políticas públicas efetivas.
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“Na prática, um protocolo é como se fosse uma ‘bíblia’, que você é obrigado a seguir em testes clínicos de novos medicamentos ou terapias. Mas o que garante sua segurança, eficácia e se de fato irá funcionar em indígenas?”, questionou Marina. Para exemplificar, ela cita os diversos medicamentos aprovados nos EUA ou na Ásia e que demoram a chegar no Brasil pela necessidade de testes na população. No momento em que se analisam grupos diferentes e diversos, se inverte a rota e o estudo clínico passa a ser aceito em qualquer país.
“A Ásia, por exemplo, não é uma população miscigenada, então se você faz um estudo lá, ele não é aplicável a nenhum lugar do mundo, é viável só para aquele público. A miscigenação é fator primordial para uma agência reguladora comprovar uma droga de uso global. É um diferencial competitivo, não só uma questão cultural” explicou Marina.
Devido ao isolamento geográfico de Mauês, caracterizada por ser remota e de difícil acesso, o primeiro passo foi adaptar o protocolo para que pudesse fornecer o atendimento da população por meio de uma ‘UBS fluvial’ – em ação articulada com o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde do Amazonas. A UBS, primeira da região a receber internet em sua operação e que chegará até os indígenas, também funcionará como um centro de pesquisa. Após a assinatura de um termo, os locais passam por uma triagem e estarão aptos para o estudo.
UBS fluvial: opção para chegar a localidades remotas na Amazônia (SAIL/Divulgação)
Para de fato promover equidade na saúde pública, a SAIL leva em conta que um país tão diverso como o Brasil precisa considerar as necessidades e características de grupos diferentes – especialmente da população indígena. De acordo com dados do último Censo de 2022 do IBGE, o Brasil tem 1,7 milhão de indígenas pertencentes a mais de 300 etnias, sendo que aproximadamente 40% dessa população vive no Amazonase na Bahia, seguidos pelos demais estados da região Norte – historicamente a região com maior carência de acesso a serviços de saúde.
“A base da população brasileira, que depende de saúde pública e do sistema, no final não tem acesso. Nós queremos mudar este ciclo. Enquanto o mundo discute terapias gênicas vendidas a milhões de dólares, muitas comunidades estão morrendo de diarreia. O acesso é zero. E então a minha diversidade, que é a minha força competitiva como nação em todos os aspectos – seja de cor, genética, das plantas ou da própria natureza – e de onde eu posso tirar drogas, é a mesma que não alcança aos tratamentos”, disse Marina.
Neste trabalho de ouvir e aprender com os povos originários, a SAIL também lançou o seu “Creative Lab” e convidou a artista e indígena Yaka Hunikuin, do povo Huni Kuin, para a implementação de um primeiro projeto. Visando unir arte, ciência e inovação, a exposição “Injecting Hope: The Brazilian Contribution” inaugurou no dia 20 de agosto e é uma parceria com a Embaixada do Brasil em Londres e Science Museum para celebrar o papel do Brasil no desenvolvimento das vacinas para a Covid-19 e destacar seu potencial – especialmente no quesito biodiversidade. Ao todo, sete artistas trazem oito obras que podem ser conferidas na embaixada até o final deste mês.
“ A pandemia foi uma escola para mim”, disse Marina, que também é administradora e durante muitos anos fez carreira como CEO da Intrials Clinical Research. Segundo ela, a Covid-19 despertou um estado de guerra que fez o Brasil tomar a frente – com o Instituto Butantã e a própria Fiocruz encabeçando o desenvolvimento de vacinas. Ao mesmo tempo, ela percebia na época um distanciamento muito grande entre a academia e a índustria, com consequências para o ecossistema de saúde do país.
“A vida acadêmica é criada para a publicação, não para você conceber uma nova terapia ou medicação. Quando olhamos para este cenário, começamos a entender o motivo de mais de 95% das nossas tecnologias dependerem da China e da Índia. Temos muito conhecimento e pouca aplicação”, explicou.
E foi essa inquietação do porquê das descobertas das universidades não chegarem de fato ao mercado e da vontade de colocar o Brasil como protagonista da ciência, que a SAIL nasceu em 2022. “Temos soluções incríveis dentro de casa e nosso propósito era justamente fazer com que essas criações e tecnologias pudessem evoluir e escalar.Eu sempre quis ser um pouco ativista, no sentido de querer ser uma ferramenta de transformação”, contou.