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(Arquivo pessoal/Divulgação)
Rodrigo Caetano
Publicado em 28 de julho de 2020 às 16h11.
Karine Vieira foi presa em 2005 por um crime que não cometeu. Branca, de classe média e com alguma estrutura familiar, ela não tem o perfil típico da detenta brasileira -- a maioria parda ou negra, pobre e com pouco estudo. Passou 6 meses no cárcere, até ser absolvida, no ano seguinte. O crime em questão não era dela. A palavra inocente, no entanto, não se aplicava ao seu caso. “Em todo tempo que passei na vida do crime, fui presa por um B.O. que não era meu”, afirma.
Estelionato, tráfico de drogas e assaltos fizeram parte da sua vida por 15 anos. Vieira entrou para esse mundo em função das dores que sentia pela separação conturbada dos pais. Em meio ao caos sensorial da adolescência, ela se sentia deslocada, como se não fizesse parte de seu mundo. Encontrou algum pertencimento na rua, junto aos amigos. “Todo mundo quer se sentir parte de alguma coisa”, diz ela. Infelizmente, a coisa em questão eram os delitos.
A vida nem sempre faz sentido. Ao buscar acolhimento, Vieira se enveredou por um caminho de perdas e miséria, que a deixou “enterrada viva” em uma penitenciária estadual, como ela descreve a situação dos presos de longa data. Mas, ao tentar entender o processo que a levou ao fundo do poço, encontrou, finalmente, seu lugar no mundo. “Mais do que o encarceramento, foram as perdas pessoais que me fizeram largar o crime”, diz a ex-detenta. “O mais difícil foi redescobrir minhas habilidades”.
Essa experiência em se reinventar como pessoa e cidadã agora é repassada a outros egressos do sistema prisional por meio da Responsa, organização idealizada por ela que ajuda ex-detentos a encontrar trabalho. Criado há pouco mais de dois anos, o projeto já conta com mais de mil presos cadastrados e cerca de 350 pessoas empregadas.
Num momento em que o governo planeja privatizar parte do sistema prisional, por meio de parcerias público privadas (PPP), iniciativas como a Responsa podem servir de modelo para solucionar os problemas do sistema prisional brasileiro. Segundo Martha Seillier, secretária especial do programa de PPPs do Ministério da Economia, o plano é conceder terrenos para a iniciativa privada construir presídios, com direito de exploração por 35 anos. Os detentos, nesse modelo, terão a opção de trabalhar e estudar.
“Vamos falar a verdade, hoje, não existe trabalho na cadeia. Nem educação, apesar de ser uma exigência legal”, afirma Vieira. “É muito mais barato recuperar o preso do que construir mais presídio. O investimento no encarceramento gera improdutividade. E quando o preso sair, vai voltar para o crime. Não é isso que a sociedade precisa.”
O sucesso da Responsa em recuperar criminosos segue uma lógica econômica. Em sua maioria, os presos cadastrados no sistema não chegaram a terminar o ensino fundamental. Mesmo fora da cadeia, são pessoas improdutivas. “Essa é a questão, se a sociedade não oferece oportunidade para eles produzirem, o crime oferece”, explica Vieira. “No fundo, todos precisam prover, para si mesmo ou para suas famílias, de algum jeito”.
A Responsa encara o crime não como uma atividade fim, mas como uma externalidade gerada pela necessidade que os excluídos socialmente têm de produzir para sobreviver. É uma visão mais realista da situação. A maneira tradicional de combater o crime é tratar da externalidade encarcerando o indivíduo. Dentro do sistema prisional, a pessoa segue sem produzir, mas às custas da sociedade, que tem de pagar pelo presídio.
Para recolocar os egressos no mercado de trabalho (ou mesmo colocar, pois muitos nunca tiveram um emprego formal), a Responsa tem parcerias com empresas, entre elas a seguradora Porto Seguro, a empresa de serviços e manutenção Tejofran e a Uber. O apoio inicial veio dos institutos Ação pela Paz e Humanitas360, fundado pela ativista social Patrícia Villela Marino, integrante de uma das famílias controladoras do banco Itaú.
O processo se inicia com o cadastro na plataforma. Os presos são atraídos pelo boca a boca. O sistema prisional, sem trocadilho, é uma comunidade fechada, em que as informações correm muito rapidamente. A Responsa conta com assistentes sociais e psicólogos para auxiliar o ex-detento nessa jornada de deixar a vida de crime.
Há um acompanhamento contínuo, por no mínimo seis meses, do criminosos transformado em trabalhador. Conforme ele vai se adaptando à nova vida, o monitoramento é retirado. No primeiro semestre deste ano, o nível de reincidência se manteve na casa dos 2% -- no sistema prisional, o índice supera os 70%. “O turnover nas empresas também é menor. As pessoas ficam tão empolgadas com a oportunidade que chegam no trabalho uma hora antes”, relata Vieira. No auge da pandemia, entre abril e junho, as faltas registradas dos "responsas" ficaram abaixo de 10 dias.