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Claudia Woods, da Uber Brasil: “ Não podemos atuar na ponta sem antes pensar as mudanças internas que colocam tudo em movimento” (Uber/Divulgação)
Filipe Serrano
Publicado em 25 de novembro de 2020 às 07h03.
Última atualização em 25 de novembro de 2020 às 10h09.
Para escrever sobre violência contra as mulheres, especialmente em pleno Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, é preciso já iniciar o texto com um parênteses. Tenho, cada vez mais, consciência do quão privilegiada sou e de que tive ao longo da vida oportunidades que não são igualmente acessíveis para todo mundo. Para mim, reconhecer que esse não é o caminho da maioria das mulheres é fundamental para qualquer reflexão e é também o ponto de partida para a tomada de ação.
Pouca gente sabe, mas quando fui chamada para uma entrevista de emprego na Uber, minha primeira resposta foi simplesmente: não. Não queria trabalhar em uma empresa que, ao meu ver, não estava de acordo com meus valores pessoais. A impressão que eu tinha — e acredito que não estava só — era de uma cultura imprópria, especialmente com as mulheres.
E eu não estava errada. Só não estava conjugando no tempo certo. A empresa que passei a conhecer e ajudar a transformar, depois de muito trabalho, já era bem diferente da imagem que eu tinha antes de entrar. Já havia implementado diversas medidas para mudar o cenário que me preocupava e estava disposta a avançar ainda mais, mas fazendo apostas no longo prazo. Mudanças significativas e duradouras não são feitas em uma campanha de marketing, e contar a história para quem está do lado de fora é a última coisa da lista. Primeiro é preciso fazer o dever de casa, equiparando salários, contratando mais mulheres e contando com mulheres em posição de liderança. Fazer todas as mudanças corporativas necessárias e priorizar isso.
Hoje o quadro de funcionários da Uber no Brasil é composto por 50% de mulheres. E metade dos cargos de liderança da nossa frente de mobilidade também está sob responsabilidade de mulheres. Não digo isso com o orgulho de "chegamos lá", nem acredito que exista um teto para a quantidade de mulheres que estão em posições de liderança — afinal, como dizia Ruth Bader Ginsburg, juíza da Suprema Corte americana, os homens sempre ocuparam todos os cargos e ninguém nunca se espantou com isso. Posso dizer que estamos na rota certa, mas temos muito o que avançar, especialmente quando olhamos para as mulheres negras.
Investir em equidade e inclusão se tornou parte de quem somos, mas além disso, sabemos que é também estratégico para qualquer tipo de negócio. Equipes inclusivas e diversas são o maior ativo de uma empresa, porque contestam suposições, estimulam a inovação e, por isso, são uma vantagem competitiva. E por mais que um CNPJ seja feito de muitos CPFs, essas políticas precisam ser maiores que uma pessoa ou uma ideia, é necessário transformá-las em processos estruturados.
Na Uber, penso essa estruturação em três blocos: 1) definição de metas públicas e cascateadas para todos os níveis de liderança, com metodologia clara de acompanhamento — como tudo mais que é feito em nossa empresa; 2) revisão de todo o sistema de recrutamento, das entrevistas à definição de remuneração — com garantia de paridade, e também de avaliação de performance. Instituímos, por exemplo, a Rooney Rule, para que todos os processos seletivos tenham necessariamente mulheres concorrendo e, mais recentemente, pessoas negras; 3) escuta ativa da opinião de nossos funcionários — ouvir o que funciona e o que pode ser melhorado e agir em cima disso é fundamental.
Tudo isso faz parte do caminho para uma empresa abraçar iniciativas de combate à violência contra a mulher. Não podemos atuar na ponta sem antes pensar as mudanças internas que colocam tudo em movimento. São times diversos e plurais que vão pensar em soluções igualmente diversas e plurais. Começa de dentro para fora.
Além disso, é também preciso ter clareza que a preocupação com segurança é em si um desafio para a entrada de mulheres no mercado de trabalho. Nós crescemos ponderando que roupa vestir, qual meio de transporte utilizar, quanto tempo vai durar o deslocamento e fazendo uma análise de risco mental automática em busca da autopreservação. O direito de ir e vir é marcado pelas precauções, mas ainda assim, de acordo com pesquisa realizada pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão com nosso apoio, 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte e, para 72% delas, o deslocamento para o trabalho influencia na decisão de aceitar e/ou ficar em um emprego.
O fato é que a violência contra a mulher segue crescendo. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio aumentaram em 1,9% no primeiro semestre de 2020, sendo que durante o ano de 2019 já havia tido um aumento de 7,1% em relação ao ano anterior. Dentro desse universo, vale ressaltar que a maioria das vítimas são as mulheres negras — 66,5%, uma predominância que vem se repetindo ao longo dos anos.
E, se tem uma coisa que foi bastante explicitada pela pandemia de covid-19, é que se a rua e o deslocamento não são totalmente seguros, tampouco são as casas. Outra epidemia que infelizmente é uma velha conhecida, se intensificou: a da violência doméstica. Caíram os registros, mas aumentaram as denúncias de terceiros sobre as brigas entre marido e mulher, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Aqui quero lembrar de novo a importância de medidas de dentro para fora. Nos mobilizamos para unir forças com o Instituto Avon no desenvolvimento de um chatbot que, por WhatsApp, aplicativo de amplo acesso, permite às mulheres pedirem ajuda de forma discreta. Mas, antes disso, nossa preocupação foi com as funcionárias da empresa. Temos um programa de assistência para vítimas de violência doméstica, que inclui realocação, alteração de contas bancárias, desenvolvimento de um plano de segurança, concessão de tempo livre e, acima de tudo, o compromisso com a não discriminação.
Se hoje a Uber tem um compromisso público com o enfrentamento à violência contra as mulheres, com investimentos na casa dos 5 milhões de reais e que já rendeu projetos em parceria com dez organizações da sociedade civil, é porque antes conseguimos arrumar a casa, pedimos desculpas e ouvimos (e continuamos a ouvir) quem entende do assunto.
Estamos em um processo contínuo de aprendizado e posso dizer pessoalmente que tenho aprendido muito. Entendo que problemas complexos e sistêmicos não possuem soluções simples, muito menos rápidas. Quando se trata do combate à violência de gênero os compromissos são no médio e no longo prazo e a viagem é extensa. Mas ela é compartilhada com uma rede de mulheres que se fortalecem — e quanto antes entendermos isso, melhor.
* Claudia Woods é diretora-geral da Uber para o Brasil