Foi criada a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, órgão para preservar a legitimidade dos Poderes. (José Cruz/Agência Brasil/Reprodução)
Por Volgane Oliveira Carvalho
O uso da desinformação como artifício em disputas políticas não é uma novidade no Brasil. Apesar disso, é indubitável que há um quê de ineditismo naquilo que aconteceu na eleição de 2018. Naquela oportunidade, houve uma profissionalização do processo de difusão da desinformação, o que potencializou a capacidade de influir na decisão política dos cidadãos.
Além disso, as pessoas se descobriram capazes de produzir e difundir quaisquer informações, inclusive algumas sem nenhum compromisso com a realidade. Com uma ideia na cabeça e um celular na mão, surgiram milhares de produtores de conteúdo, alguns de qualidade e veracidade questionáveis.
Após a eleição, estava aberta a caixa de Pandora. A difusão de desinformação tornou-se quase um modo de vida e passou a abranger todas as áreas de interesse humano, do futebol à medicina. Esse, aliás, foi mais um ponto de inflexão no processo, tendo em vista que, no curso da pandemia de Covid-19, a divulgação de informações falsas criou obstáculos reais que dificultaram o combate à doença.
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No pleito de 2022 estava claro que o Brasil possuía uma sociedade em que a desinformação era endêmica. Se no biênio anterior a ameaça rondava a saúde pública, a nova vítima em potencial é a democracia.
O processo eleitoral foi marcado pela difusão de informações que desacreditavam o sistema eletrônico de votação, questionavam ministros das cortes superiores e defendiam medidas inconstitucionais para a manutenção do poder em caso de resultados desfavoráveis nas urnas. O desfecho foi um ambiente não democraticamente saudável ou aceitável sob o prisma da Constituição Federal de 1988.
Esse é o cenário de fundo para a criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, instituída através do Decreto nº 11.328/23, que tem como atribuições principais representar a União: em assuntos eleitorais, em temas relacionados à preservação da legitimidade dos Poderes e de seus membros, e em ações que visem o combate à desinformação em políticas públicas.
A criação de tal estrutura dentro da Advocacia Geral da União (AGU) gerou polêmica. Enrolados no manto da liberdade de expressão, muitos enxergaram na medida uma ação de caráter autoritário, que buscava estabelecer a verdade com vinculação puramente ideológica. Tal interpretação mostrava-se, desde logo, equivocada e fundada em falsas premissas.
A partir daí foi ensaiado um interessante debate jurídico e sociológico acerca da pertinência da criação de tal órgão e dos limites de suas atribuições. Contudo, a realidade se interpôs à discussão.
Em 8 de janeiro, Brasília esteve sob ataque. Os eventos causaram revolta, perplexidade e uma sensação de impotência nos brasileiros. A visão da destruição física e moral das sedes dos três Poderes representou, em certo sentido, o debacle da democracia liberal brasileira. A destruição dos símbolos nacionais é tratada pelo Direito Penal com uma palavra: ultraje.
Desse cenário de ruína moral emergiram lições acerca da fragilidade da democracia e sobre a necessidade de se criar e aprimorar mecanismos institucionais para garantia de sua salvaguarda. Poucos lembraram de retomar o debate que mal se iniciara, mas os fatos demonstraram às escâncaras o valor da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia. Não se trata obviamente de uma estrutura estatal de cunho antidemocrático, ao inverso, é apenas um órgão responsável por levar demandas relacionadas com a defesa da democracia ao Poder Judiciário, único órgão com poder de decidir tais temas.
A reestruturação servirá para especializar o trabalho e a formação técnica dos procuradores, tornando a atuação mais eficiente. A prova disso foi a atuação da AGU após o fatídico domingo. Mesmo sob uma situação extrema, não houve excesso ou autoritarismo. A ação foi cirúrgica: foram formulados pedidos e a Justiça acolheu a maioria deles.
A complacência com a desinformação e a busca por uma liberdade de expressão que autoriza toda sorte de desvarios já nos custou muito, é hora de maturidade institucional e social para lidar com essa chaga. De outro modo, a ferida não será curada e permaneceremos com uma sociedade doente.
*Servidor da Justiça Eleitoral, secretário geral da ABRADEP (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e mestre em Direito pela PUC- RS