Debate sobre regulação dos meios de comunicação esbarra em temor de censura
Em meio a fake news e big techs, o tema ganhou amplitude nacional com o presidente Lula, mas divide opiniões
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Publicado em 8 de maio de 2023 às 11h30.
Última atualização em 8 de maio de 2023 às 11h43.
Por Giulia Alecrim
Eleito pela terceira vez para ocupar o cargo de presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já expressou, em diferentes entrevistas e coletivas de imprensa, o interesse em voltar a debater e desenvolver a regulação da mídia ou dos meios de comunicação durante seu mandato. Contudo, o assunto, quando discutido, é permeado pela estranheza de que possa envolver regulação de conteúdo, imprensa ou informação.
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A proposta começou a ser desenvolvida no Brasil inicialmente durante o segundo mandato do petista na Presidência, em 2010; foi chamada de Anteprojeto de Lei dos Serviços de Comunicação Eletrônica, elaborado pelo então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Franklin Martins, e posteriormente entregue ao sucessor do cargo no governo de Dilma Rousseff, em 2011.
O Anteprojeto foi engavetado no mesmo ano, embora o tema tivesse o apoio de Dilma, e nunca chegou a ser formalmente divulgado. Depois de anos de sigilo, foi acessado apenas em 2019 pelo jornalista Camilo Vannuchi durante o desenvolvimento de sua tese de doutorado intitulada Direito humano à comunicação: Fundamentos para um novo paradigma na regulação dos meios no Brasil. Na pesquisa, ele conta que a minuta, que tinha 93 páginas e 297 artigos, atendia a outros assuntos, como regulação econômica, “mas incorporava também orientações relativas à regulação de conteúdo e à garantia dos direitos humanos”.
Dois anos após o engavetamento, em 2013, o Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) da Mídia Democrática foi elaborado como uma nova proposta sobre o tema, com o objetivo de regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação, mas não chegou a ter assinaturas suficientes para ser analisado no Congresso.
Sobre a proposta, Pedro Rafael Vilela, atual secretário executivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), entidade que atua desde 1991, explica que o PLIP procurou mostrar a necessidade de atualização da Legislação acerca dos meios e reitera que poucas normas previstas na Constituição a respeito da comunicação foram regulamentadas, “a exemplo de regras para impedir a formação de monopólios e oligopólios”. Como o PLIP proposto em 2013 conta com pontos ainda atuais, foi apresentado pelo FNDC ao governo Lula durante a campanha e, posteriormente, à equipe de transição, no documento Por uma Comunicação Democrática. “Não se está falando de algo novo, mas de atualizar mecanismos democráticos de regulação que estão defasados e não refletem o disposto na Constituição”, afirma Vilela.
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Tanto Lula quanto Dilma já reiteraram que “ regulação de mídia ” não é sinônimo de “regulação de conteúdo”, muito menos uma forma de censura. Durante o período eleitoral de 2022, ao falar sobre o tema, o presidente eleito se colocou como “inimigo da censura” e citou o “atraso” do ainda vigente Código Brasileiro de Telecomunicações, que vigora há 60 anos e, na época, regulamentou as áreas de radiodifusão e de telecomunicações no Brasil, como um dos motivos para a necessidade de uma nova regulação.
O presidente também já disse que, caso um modelo fosse desenvolvido, seria nos moldes das regulações inglesa ou americana e que o processo caberia ao debate público, para que todos pudessem participar. Lula, entretanto, costuma complementar o assunto citando casos que remetem a um possível controle de imprensa, quando, por exemplo, diz ter sido vítima de alguns veículos de imprensa no período da Operação Lava-Jato, que culminou em sua prisão em 2018.
Para Francisco Rabello, um dos fundadores e atual diretor de Marketing da Associação Brasileira de Imprensa e Comunicação (Abricom), a regulação significaria, sim, um controle. “É controle de comunicação, não de mídia. Há a pretensão de controlar a informação. Se você não tem liberdade de informar e ser informado, você não é mais livre. Não tem democracia numa instituição que tira a possibilidade da pessoa de se comunicar. A partir do momento que o estado interferir nisso, acabou a liberdade.”
Por outro lado, Vilela, do FNDC, avalia que “no quadro democrático atual, isso nem sequer é possível. Nem uma lei que contivesse isso poderia ser aprovada. A democratização dos meios de comunicação, tal como defendida pelos movimentos sociais, passa por uma nova legislação que atualize as regras do setor e contemple um ambiente com mais diversidade de conteúdo e pluralidade de fontes de informação, como forma de aprofundar a democracia, e não a restringir. A ideia é justamente ter mais informação, mais meios, menos concentração, menos poder em poucos grupos econômicos”.
O advogado constitucionalista e especialista em liberdade de expressão e imprensa, André Marsiglia, demonstra preocupação em relação à falta de clareza sobre o que seria o plano proposto pelo governo. “Isso não está claro em momento nenhum. Há exemplos de modelos estrangeiros que regularam a mídia com sucesso, mas a experiência brasileira é mais autoritária e, por isso, temos o receio da censura. Todas as manifestações [ do governo eleito ] que vimos até agora foram sobre concentração de poder da imprensa. Se essa regulação for sobre a imprensa e trazer algum tipo de possibilidade de censura ou autoritarismo, será muito nocivo sem o debate da sociedade. Precisamos entender o que o governo quer e mostrar que os caminhos que podem direta ou indiretamente levar à censura são piores do que qualquer tipo de regulação”, comenta.
A medida sobre regulação é uma discussão impopular no Brasil e há inúmeras propostas barradas pelo Poder Legislativo. À época em que o PLIP da Mídia Democrática foi proposto, outros 500 projetos sobre o tema tramitavam no Congresso. “Esse número fazia parte de um projeto de pesquisa de mestrado da Universidade de Brasília. Uma das conclusões sobre esse cenário é a de que projetos estruturais para os serviços de comunicação social de massa dependem, como acontece, por exemplo, com reformas administrativas ou previdenciárias, de uma atuação direta e protagonista do governo federal, que mobilize uma base de apoio capaz de gerar adesão em torno do projeto”, diz Vilela. O Brasil tem pelo menos 650 normas — portarias, decretos ou leis — que regulamentam o setor de comunicação social, de acordo com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Mas o que é, afinal, regulação de mídia?
A mídia já é regulada no Brasil, e um exemplo é o próprio Código Brasileiro de Telecomunicações. Um dos argumentos comuns àqueles que defendem a regulação, como o próprio PLIP da Mídia Democrática, é que há a necessidade de regulamentar algumas normas constitucionais no Congresso — um tema que enfrenta resistência até mesmo no Supremo Tribunal Federal (STF). Entre as normas passíveis de regulamentação, estão:
- a proibição de que políticos com mandato tenham concessões de rádio e TV;
- a proibição de monopólios e oligopólios na mídia;
- a obrigatoriedade de um percentual mínimo de programas regionais em rádios e televisões.
A Constituição de 1988 detém cinco artigos que compõem atribuições à Comunicação Social. Um dos mais conhecidos pela população é o artigo 222, que assegura que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição” e a vedação de “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Já foram regularizadas, porém, as propagandas comerciais de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e medicamentos, assim como o prazo de concessão de 10 anos para as emissoras de rádio e 15 para as de televisão. Aos que defendem uma nova regulação, entretanto, falta transparência nas concessões.
Para além dos meios de comunicação, o advogado André Marsiglia também chama a atenção para um dos problemas centrais que precisa ser observado pela legislação brasileira: a regulação de plataformas digitais, as chamadas big techs — grandes empresas de tecnologiaque dominam o mercado, como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube.
“As plataformas digitais vivem numa situação muito confortável do ponto de vista legislativo. Há leis extremamente benéficas e pouca responsabilização. A concentração de poder está hoje nessas plataformas. A audiência de um veículo de imprensa depende de 60% a 80% da divulgação desse material no Google. Então é preciso que as plataformas se manifestem sobre o gerenciamento que fazem do conteúdo. Qual o critério para dar mais audiência para um perfil? Quais as formas de impulsionamento de ordem? Isso tudo é privado, e eles se escoram na privacidade do algoritmo. Não há transparência”, explica.
Em complemento à discussão e se referindo a uma das respostas do atual governo, que associou o caso brasileiro aos moldes estrangeiros, André diz: “O modelo inglês funciona muito bem na Inglaterra. Se fosse tão fácil assim, a gente não precisaria da legislação brasileira. O Direito é resultado da cultura, o ambiente sociocultural é constitutivo do Direito, e uma lei é resultado da sua sociedade. Se os conceitos do que se entende por mídia e regulação não forem discutidos, não podemos nem começar uma discussão”.
É possível que, com base nos conflitos informativos e expressivos que o Brasil observou, sobretudo durante o último período eleitoral, seja acrescido ao debate da regulação da mídia uma discussão sobre fake news e liberdade de expressão. Marsiglia também alerta para o cuidado com o tema, já que são pontos que não possuem consenso na sociedade. “O limite da liberdade de expressão é o cometimento de um crime. Sempre que a liberdade for restrita, ela deve ser restrita da forma menos gravosa, porque é um direito fundamental. Você não pode banir o direito da pessoa de se expressar. Sempre que se restringe a liberdade de alguém, é preciso harmonizar para que a pessoa continue se expressando”, acrescenta.