Economia

Uma história do capitalismo americano

Um novo livro explica os caminhos da experiência capitalista nos Estados Unidos – e traz uma nova perspectiva sobre os sucessos e as mazelas do país

CAPITALISMO AMERICANO: Andrew Carnegie, ao centro, com alguns de seus sócios em 1900  (Keystone/Hulton Archive/Getty Images)

CAPITALISMO AMERICANO: Andrew Carnegie, ao centro, com alguns de seus sócios em 1900 (Keystone/Hulton Archive/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 24 de fevereiro de 2018 às 10h49.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2018 às 10h49.

Americana: A 400-Year History of American Capitalism (“Americana: uma história de 400 anos do capitalismo americano”, numa tradução livre)

Autor: Bhu Srinivasan

Editora: Penguin Publishing Group

576 páginas

Preço: US$ 18,16; e-book US$ 13,89

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A economia, como muito bem alertam os críticos da teoria econômica clássica, não explica tudo. Mas explica muita coisa. Tanto – talvez mais – do que a história das ideias, ou aquela contada a partir dos indivíduos. É certo que as pessoas fazem diferença: o mundo seria outro se não tivesse nascido um Adolf Hitler, um Albert Einstein, um Jesus Cristo. Mas eles só puderam agir porque as condições externas lhes possibilitaram ser quem foram, fazer o que fizeram e provocar o impacto que provocaram. Por isso é tão elucidativo o livro do empreendedor Bhu Srinivasan, um indiano que emigrou para os Estados Unidos ainda criança. Em Americana: a 400-Year History of American Capitalism (“Americana: uma história de 400 anos do capitalismo americano”, numa tradução livre), ele mostra a formação e o funcionamento do sistema econômico por trás do poder e das realizações dos Estados Unidos.

Os grandes agentes políticos estão lá, é claro, dos peregrinos que viajaram para colonizar a América até os patriarcas da independência e o refundador da república, Abraham Lincoln; dos barões da indústria até os empreendedores de garagem do Vale do Silício. Mas suas histórias são contadas menos pelos seus ímpetos particulares e mais pelas condições de contorno que explicam seus atos. E as principais forças a moldar essas condições de contorno têm a ver com a economia.

Uma das vantagens desse olhar é que ele desmistifica alguns mantras. Por exemplo, o da “busca de liberdade” como motivação para emigrar para os Estados Unidos. Como afirma Srinivasan, o persistente contraste do poder de compra dos países de Primeiro Mundo com o restante das nações atualmente “tem mais brilho que qualquer direito civil”. Assim o provam, diz ele, os milhões de imigrantes ilegais que “abandonaram seus direitos democráticos de cidadania no México para viver como não-cidadãos de uma subclasse norte-americana”.

Outro exemplo de como a narrativa econômica pode gerar conclusões bem diferentes da narrativa político/ideológica é a análise da década de 1960. Repleta de momentos dramáticos – a crise dos mísseis soviéticos em Cuba e a fracassada tentativa de invasão americana, o assassinato do presidente John Kennedy, a luta por direitos civis, os protestos contra a Guerra do Vietnã –, “é fácil imaginar um país inquieto, à beira de alguma revolução”.

Um olhar para as páginas de negócios dos jornais, no entanto, mostra “um país em meio a um de seus maiores progressos econômicos”, diz o autor. “Dada a narrativa histórica dominante, rever a economia dos anos 1960 parece com a exploração de um universo paralelo.”

A prática da servidão voluntária

Comparar economia e política a universos paralelos é um exagero. Mas a análise de Srinivasan enriquece a compreensão histórica não só dos Estados Unidos mas das forças que interagem para provocar mudanças. É um pouco como resgatar o significado original da palavra “empresa”: tratava-se, nos séculos 15 e 16, de uma missão para realizar algo, em geral grandioso. Não é à toa que as primeiras empresas foram as que organizaram as grandes navegações para o Novo Mundo.

Já em sua colonização, o capitalismo esteve imbricado com os Estados Unidos. No século 16, as aventuras marítimas eram tão caras e tão arriscadas que elas propiciaram o surgimento das companhias abertas: no lugar das tradicionais sociedades, criaram-se os mercados de ações, em que qualquer pessoa podia comprar um pequeno pedaço da empresa, com liberdade para vendê-lo na hora que quisesse e, especialmente, com responsabilidades limitadas sobre eventuais fracassos – o investidor não perdia mais do que o valor que tinha aplicado, estando livre de processos na Justiça.

Essa diluição de riscos foi fundamental para as empreitadas da colonização. Uma vez que os riscos eram delimitados, mas os ganhos podiam ser praticamente ilimitados, as viagens exploratórias se tornaram atrativas o suficiente para levar à colonização da América.

Da mesma forma que o capital, o trabalho obedeceu a essa equação de riscos calculados e ganhos potenciais extraordinários. Os tão afamados primeiros peregrinos dos Estados Unidos, uma dissidência religiosa que supostamente fugia de perseguições, foram na verdade instrumentos da extensão do poder do rei para as novas terras.

Ante as dificuldades econômicas que enfrentavam na Inglaterra, os peregrinos aceitaram contratos que os tornavam servos da Coroa durante sete anos. Em vez de pagar 10 libras pelas ações do empreendimento, compravam-nas com seu trabalho.

No que seria, talvez, um prenúncio da dificuldade das relações entre capital e trabalho, os peregrinos haviam a princípio negociado que trabalhariam quatro dias da semana para a Coroa, dois para si mesmos, e descansariam no sábado – mas em pouco tempo os investidores exigiram que a divisão fosse de seis dias para o empreendimento e um para descanso. Além disso, as casas que eles construíssem seriam adicionadas ao capital da empresa, ao final do contrato, em vez de lhes pertencer.

Esses primeiros contratos capitalistas de certa forma espelhavam a fé dos primeiros colonos. Eles faziam como a Bíblia diz que fez Jacó, um dos patriarcas da religião judaico-cristã: serviu a seu tio, Labão, durante 14 anos, para casar-se com suas duas filhas, e depois mais seis em troca de um salário. Só que Jacó, depois disso, retornou para Canaã; os peregrinos ficaram.

A economia da escravidão

Mais do que contar fatos desconhecidos, a narrativa de Srinivasan os conecta à (como diz Caetano Veloso) força da grana, que ergue e destrói coisas belas. A relação dos índios com os colonos, por exemplo, não foi a princípio belicosa. Os índios viam os estrangeiros como oportunidades comerciais – e vendiam-lhes peles de castor, já que na caça desses animais tinham uma vantagem competitiva forjada pela tradição e gerações de aprimoramentos.

O resultado foi que, com o aumento da população de colonos (e a chegada de franceses e espanhóis), a competição acabou com os castores da Nova Inglaterra – assim como quase três séculos mais tarde a expansão das ferrovias transformaria em esporte a tradicional caça aos búfalos no oeste americano, e o búfalo teria o mesmo destino do castor (só entre 1872 e 1874 quase 4 milhões de búfalos foram mortos na região, por turistas que atiravam dos trens por diversão e por caçadores que exportavam iguarias como suas línguas e olhos para o Oriente, além dos que matavam para comer).

Também a escravidão ganha outra luz quando vista sob a perspectiva econômica. Para começar, não é que o Norte tenha tido desde o início uma superioridade moral sobre o Sul escravagista.

Ocorre que, no século 17, a mortalidade era tão alta nos Estados Unidos que o custo de um escravo não compensava. Era melhor contar com os servos, que aliás não faltavam. As condições de vida na Inglaterra eram tão precárias que em 1620 a cidade de Londres enviou para a Virgínia 100 crianças órfãs para trabalhar como servas (com a permissão do rei para que elas viajassem contra a sua vontade).

A vantagem do servo sobre o escravo era que, em caso de morte, o senhor não perdia seu investimento; ao contrário, ele ficava livre de uma obrigação (já que o escravo era pago adiantado, e o servo recebia terras quando seu contrato terminasse).

Quando finalmente as condições de vida melhoraram a ponto de a escravidão valer a pena (para os senhores, evidentemente), os estados do Norte não conseguiam competir com as plantações de açúcar da América Espanhola e do Brasil, que requeriam centenas de milhares de escravos e davam retorno muito maior. Sem contar que a viagem dos navios negreiros da África para o Brasil saíam pela metade do preço de uma viagem até os Estados Unidos.

Como se vê, uma vantagem competitiva pode ser uma condenação futura. Muito antes da suposta “maldição do petróleo”, segundo a qual países que acham uma riqueza fácil se acomodam e destroem outras vias de desenvolvimento, o Brasil teve a sua maldição da escravidão (sem aspas, e nos dois sentidos, econômico e, com muito mais vigor, humano).

Foi só com o ciclo do algodão – e com um monopólio estabelecido pelo rei da Inglaterra para o tráfico de escravos para suas colônias – que as plantações do Sul puderam aderir à prática da escravidão em larga escala.

Em pouco tempo, a escravidão se tornou o eixo principal da economia do Sul. Mas não do jeito como se pensa usualmente – como mão de obra da principal commodity exportada. De um modo parecido com a especulação no mercado imobiliário que deflagrou a crise mundial de 2008, os escravos eram um bem que se podia alavancar.

Muito mais fácil do que hipotecar um terreno, que não sai do lugar, era hipotecar um ser humano, que podia ser usado de diversas maneiras. Essas hipotecas serviam até para alguém comprar escravos dando os próprios escravos como garantia.

O crédito que adveio dessa generalizada prática acabou contaminando toda a economia do Sul. A economia estava indexada à escravidão. “Os sulistas não podiam libertar seus escravos voluntariamente mais do que um americano contemporâneo pode doar sua casa hipotecada para a caridade”, escreve Srinivasan.

Os escravos deixaram de ser apenas mão de obra, tornaram-se moeda. Ou melhor, derivativos.

As várias vidas do capitalismo

O maior feito de Srinivasan, no entanto, não é apresentar uma nova perspectiva à história dos Estados Unidos. É fazer um apanhado da evolução do capitalismo. Por essa história se entendem algumas das conexões que forjaram a maior economia do planeta – e é possível extrair algumas lições valiosas.

No início, a vida sob o capitalismo era dura. Tome-se como exemplo as lidas de um descendente de imigrantes holandeses chamado Cornelius.

No começo do século 19, ele trabalhava incessantemente nos barcos que atravessavam os canais de Nova York, enquanto sua mulher, Sophia, cuidava de uma hospedaria perto do cais, para conseguir dinheiro que sustentasse os 14 filhos do casal.

Todo esse esforço acabou fazendo de Cornelius Vanderbilt o homem mais rico do país. Sua história é um ícone dos primeiros tempos do capitalismo. Trabalhador braçal, Vanderbilt era tão dedicado ao serviço que em 1826, quando William Gibbons herdou a companhia de barcos a vapor de seu pai, decidiu alugar-lhe um barco por uma taxa fixa, em vez de lhe pagar salário.

Com o dinheiro que ganhou (e que não gastava, já que a mulher sustentava a família), Vanderbilt mandou construir outro barco. Aos poucos, dominou o transporte dos canais com uma estratégia simples: quando entrava em alguma rota, oferecia preços 50%, ou até 75% mais baratos que os do concorrente.

Esse processo se repetiu várias vezes: entrar num mercado, cortar os preços até causar dor nos concorrentes… e vender suas operações para um desses concorrentes. E um certo momento, ele vendeu alguns barcos para comprar um pedaço de ferrovia. Como fazia o transporte completo (trem e barco que se ligavam), levava vantagem sobre a concorrência. Em breve, vendeu mais três barcos para investir em ferrovias.

A simples entrada de Vanderbilt no mercado fez crescer o temor de que os preços iriam despencar, e as ações de outras ferroviárias perderam um bom pedaço de seu valor. Como se vê, a Amazon de Jeff Bezos vem de uma longa tradição nos Estados Unidos. Vanderbilt inclusive se intitulava um antimonopolista.

Pois foi dessa forma que em uma dúzia de anos o antimonopolista, que jamais havia comandado a construção de um único trilho, se tornou o principal empresário do setor ferroviário.

O próximo homem mais rico do país, Andrew Carnegie, também começou nas ferrovias. Como empregado. Perto da época da Guerra Civil americana, ele foi incumbido de preparar a infraestrutura de telégrafos e ferrovias para o Exército da União.

Ao final da guerra, tinha tão bons contatos na ferrovia da Pensilvânia que pediu demissão – e passou a viver de investimentos em companhias que prestavam serviços à ferrovia.

Ficou rico. Muito rico. E então deixou a gestão dos negócios com o irmão e foi aproveitar umas “pequenas” férias: nove meses de turnê pela Europa. Mas parece que quanto mais fugia dos negócios, mais os negócios alcançavam Carnegie. Na Europa ele testemunhou um processo mais barato de produzir aço, e comprou os direitos para os Estados Unidos.

Como diz Srinivasan, “se o capitalismo americano alguma vez fosse a julgamento, a carreira de Carnegie seria a prova número um da defesa”. Ele era alguém que enfrentou a miséria na infância, foi trabalhador infantil, um imigrante da classe trabalhadora que matava sua curiosidade intelectual em bibliotecas públicas, e subiu ao topo da riqueza – apenas para doar tudo o que ganhou.

Para Carnegie, morrer rico era uma desgraça. Sua ânsia em doar toda a fortuna que acumulara foi tanta que despertou o espírito competitivo de John Rockefeller, o magnata do petróleo que ao fim da vida quis ultrapassar Carnegie na disputa de quem doava mais dinheiro para a filantropia.

O poder do Estado

Se os exemplos de empresários como esses (e mais Henry Ford, Thomas Edison e tantos outros) dominam o capitalismo americano nos séculos 18 e 19, a partir dos anos 1930 outro ator roubaria a cena: o governo.

Não foram só as políticas do New Deal que transformaram o capitalismo americano, incluindo uma mais presente regulamentação estatal. Por trás do mito de terra do liberalismo, os Estados Unidos sempre tiveram a mão do Estado a guiar suas vias de desenvolvimento.

Se o “espírito animal” e a “mão invisível” explicam boa parte do progresso humano, as regras políticas (e às vezes as idiossincrasias do governo) explicam outro tanto.

Assim, uma tecnologia aplicada a uma ação governamental (a tabulação de dados inventada por Herman Hollerith) deu origem à Tabulating Machine Company, cujo sucesso logo virou internacional e suscitou a troca de nome para International Business Machines, ou IBM.

Assim, a Coca-Cola, uma mistura que continha folha da coca, uma folha africana chamada kola e álcool e era vendida como remédio num tempo em que a medicina era incipiente, foi obrigada a se ver livre da coca, para não pagar impostos sobre drogas, e em seguida do álcool, para cumprir uma proibição do governo de Atlanta – de forma que a política de impostos ajudou a definir sua estratégia de se vender como refrigerante.

No correr do século 20, os Estados Unidos foram paulatinamente aderindo a mais e mais controles: agências para supervisionar a fabricação de drogas e alimentos, regras para corrigir excessos de empresários e financistas.

E essa mudança define os negócios. A própria IBM é um exemplo. Suas máquinas eram cruciais para os programas de controle de preços, seguridade social e serviços públicos da era Roosevelt – assim como foram entusiasticamente usadas pela Alemanha de Hitler e pela União Soviética de Stalin.

Mas, se as empresas são influenciadas pelo Estado, o que difere o capitalismo americano de um socialismo da União Soviética? A diferença é que, embora o Estado possa ser um grande cliente e um pronunciador de regras em todo lugar, nos Estados Unidos a grande maioria de contratos é passada para o setor privado. Isso possibilita que as tecnologias naveguem entre setores, sejam usadas e adaptadas de diferentes formas, para diferentes fins.

O dinheiro público perpassa a economia privada, enriquece alguns… e acaba beneficiando a sociedade como um todo, pela criação de mais riqueza.

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